[Archport] Política para o património tem "resultados catastróficos"
Política para o património tem "resultados catastróficos"
Público, 16.10.2008, Alexandra Prado Coelho
Sessão pública no São Luiz vai alertar para o "risco de regressão
significativa e irremediável" numa área que é de "valor estratégico"
Os "resultados catastróficos" da actual política para a protecção do
património cultural levaram um conjunto de associações - pelo menos
17, até ontem - a juntar-se na Plataforma pelo Património Cultural,
que será apresentada hoje às 15h no Teatro São Luiz, em Lisboa, numa
sessão com entrada livre.
"O património continua num estado de degradação muito acelerado",
afirma Luís Raposo, presidente do ICOM Portugal e membro do
secretariado permanente da Plataforma. "E nós achamos que é importante
lançá-lo como um valor estratégico e uma oportunidade nacional."
Numa declaração, que hoje será lida no São Luiz, a Plataforma denuncia
"a perda de horizonte político estratégico e a desqualificação
operacional e técnica dos serviços do Estado na área do património",
considerando que se atingiram "extremos inimagináveis". Por isso,
alertam, "corre-se o risco de regressão significativa e irremediável".
O texto enumera os problemas: das "denúncias de escândalos
relacionados com a destruição de bens patrimoniais e a paralisia de
serviços" à "gritante inadequação da legislação criada nesta
legislatura às necessidades reais da gestão do património nacional",
passando pela "indefinição sobre o modelo de gestão a aplicar", a
"desorçamentação galopante", a "insuficiência de quadros técnicos e de
suporte" e a "dispersão de serviços por instalações deficitárias".
Um exemplo de mau funcionamento, segundo a Plataforma, é "a elevada
percentagem de pedidos de licenciamento de obras em áreas de protecção
de monumentos e sítios deferidos tacitamente, quer por incapacidade
dos serviços do Estado em emitirem parecer em tempo útil, quer pela
dificuldade crescente em exercer a fiscalização arqueológica efectiva
do território". Perante a ausência de respostas dos serviços do
Estado, explica Luís Raposo, "as pessoas avançam com as obras" sem
qualquer fiscalização nas zonas em torno dos monumentos. A isto
somam-se, continua Raposo, "os monumentos em ruínas e os sítios
arqueológicos abandonados" e os museus com salas fechadas por falta de
guardas.
"Reconfigurar" o ministério
"Não existem políticas para o património. É necessário despertar a
sociedade para este problema", sublinha João Neto, presidente da
Associação Portuguesa de Museologia (Apom). "Os turistas vêm a Lisboa
não para ver as praias, mas para conhecer a História e o património"
e, se não se fizer nada, "está-se a pôr em risco um elo contínuo de
herança, que pode um dia desaparecer completamente".
Uma das razões da "regressão" nas políticas prende-se com o próprio
modelo administrativo do sector criado no Ministério da Cultura, que é
"confuso e sinuoso". O arquitecto Walter Rossa - que participa hoje no
São Luiz num painel onde falarão outros especialistas em museus e
património, como Simonetta Luz Afonso, Vítor Serrão e Raquel Henriques
da Silva - dá um exemplo ligado à área que lhe é mais familiar, a do
património urbano. "Os patrimónios urbano e paisagístico, que nunca
tiveram grande protecção no quadro legislativo, são agora considerados
problemas de habitação [passaram para a alçada do Instituto de
Habitação e Reabilitação Urbana]. Houve uma desarticulação de todo o
aparelho", lamenta.
Uma proposta da Plataforma - considerada "especialmente urgente" - é a
"reconfiguração do Ministério da Cultura, assumindo de vez o erro
trágico que, sobretudo na área do património arquitectónico e
arqueológico, constituiu a última revisão orgânica". Revisão que, no
entender dos signatários do texto, "falhou todos os seus propósitos,
dando origem a estruturas (Igespar IP e direcções regionais de
Cultura) mais burocráticas (...), mais ineficazes e dispendiosas,
(...) e em situação muito próxima da inoperacionalidade total".
País esquizofrénico?
A par destes problemas, Luís Raposo lamenta que "a margem de
intervenção dos cidadãos na definição das políticas tenha diminuído" e
que "até no interior do mesmo Governo cada ministro aplique o seu
cunho pessoal, com políticas que por vezes são antagónicas em relação
ao anterior".
Críticas que o texto da declaração repete: "Promovem-se campanhas
milionárias na promoção turística do país e anunciam-se projectos que
mobilizam milhões de euros na criação de novos equipamentos culturais,
inclusive patrimoniais, os quais na maior parte dos casos ninguém
pediu nem considera prioritários e têm origem em políticas erráticas."
E avança com um exemplo: o novo Museu Nacional dos Coches, projecto
que "todos os especialistas e organismos técnicos representativos
consideram não só dispensável como nefasto".
A declaração - que representa profissionais ligados à arqueologia,
antropologia, castelos, museus, conservação e restauro, bibliotecas,
arquivos, ambiente e turismo - deixa uma pergunta: "Vivemos num país
esquizofrénico, onde de um lado se alinham a propaganda oficial e as
'obras de regime' e do outro a dura realidade que se vive todos os
dias?"