Espólio nacional arqueológico aguarda despejo sem ter nova casa
Público, 27.10.2008, Ana Machado
Obras do novo Museu dos Coches, nas instalações do ex-Instituto Português de Arqueologia, deviam ter arrancado em Setembro
A construção do novo Museu dos Coches deveria ter arrancado em
Setembro. Foi isso que foi avançado na apresentação, a 9 de Julho, do projecto
que vai crescer nas antigas Oficinas Gerais de Material do Exército, em Belém
(Lisboa), onde actualmente estão guardados os tesouros da arqueologia nacional,
o espólio do ex-Instituto Português de Arqueologia (IPA). Mas o Ministério da
Economia, responsável pela obra, não diz quando arrancarão os trabalhos. E o
Ministério da Cultura ainda não sabe onde vai colocar a arqueologia. A hipótese
da Cordoaria Nacional (também em Lisboa) está a ser estudada.
A morada desta autêntica gruta de Ali Babá da arqueologia portuguesa fica no
n.º 136 da Avenida da Índia. É para lá de um enorme portão verde, mesmo em
frente à estação da CP de Belém, que se concentram, por 12 mil metros quadrados
de área, os mais importantes achados realizados em território nacional. Tudo começa
e tudo acaba ali na arqueologia. Mas poucos sabem o que lá está guardado.
Visitados quase em exclusivo por investigadores, os armazéns de depósitos
arqueológicos, a biblioteca de arqueologia (a mais importante em Portugal), o
Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências e o espólio do
Centro Nacional de Arqueologia Náutica (CNAS) estendem-se por vários edifícios
dispersos por corredores de terra batida.
Cinquenta e cinco mil obras
Jacinta Bugalhão, arqueóloga, já não está ao serviço do IPA, onde coordenava a
divisão de arqueologia preventiva. Mas foi nessa condição que, à altura desta
visita, acompanhou o PÚBLICO. Tinha estado a embalar algumas das peças do
depósito onde se contam mais de 600 contentores de peças arqueológicas. "Ainda
não temos ordem para empacotar, mas já estou a empacotar porque me
preocupa".
Um dos casos que mais têm preocupado a comunidade de investigadores de
arqueologia, quando se fala na mudança de casa, é o da biblioteca. Foi aliás a
biblioteca que motivou o lançamento de uma petição on-line, dirigida ao
ministro da Cultura, onde os subscritores mostravam preocupação com o futuro do
espólio de cerca de 55 mil obras. Este espólio foi aumentado quando, em 1999,
encerrou em Lisboa a delegação da biblioteca do Instituto Arqueológico Alemão. Esta
cedência foi feita em regime de comodato, o que significa que continua a ser
património do Estado alemão, que a pode reclamar se, por exemplo, não estiver
acessível ao público.
Arqueologia náutica
Mergulhando mais nas ruas de terra batida das antigas instalações das oficinas
do Exército, Jacinta Bugalhão aponta uma porta metálica que dá acesso a um
outro grande armazém. A porta range para dar acesso a um ambiente de filme ao
estilo Indiana Jones, acentuado pela arquitectura industrial, com varandins de
ferro, que caracterizam o espaço. É a sala da divisão de arqueologia náutica.
Pirogas monóxilas (feitas de um único tronco de árvore) encontradas no rio Lima
e datadas com 2300 anos, mergulhadas em enormes tanques para preservar o estado
de conservação, são as protagonistas de um cenário onde se espalham caixotes
com inúmeras peças e peças de artilharia em bronze encontradas ao longo dos
anos na costa portuguesa ou apreendidas em feiras quando alguém se preparava
para vendê-las sem conhecer o valor do que tinha em mãos.
"Nós temos toda esta linha de costa, o que nos faz um dos países do mundo
com maior património náutico e subaquático. As peças aqui preservadas são muito
importantes em termos patrimoniais", frisa Bugalhão. "Temos das
maiores reservas de arqueologia náutica do mundo. Este sector é um
quebra-cabeças. Não se pode parar o tratamento das peças".
Do imensamente grande - as pirogas monóxilas - para o imensamente pequeno, a
visita guiada segue para uma outra sala do complexo, onde Cristina Araújo
investiga, à maneira do CSI, através da paleobotânica, o que, por exemplo, os
pólens das plantas podem dizer sobre a vida e hábitos das espécies animais. "Aqui
trabalhamos em contextos antigos, com mais de 70 mil anos". Estamos no
CIPA, o Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências.
Simon Davis, zoólogo, veio em 1999 do English Heritage, onde trabalhava, para
Lisboa. É hoje um dos investigadores do CIPA, onde se ocupou a recolher, desde
2000, milhares de ossinhos que compõem a maior osteoteca do país. Representam
50 espécies de mamíferos e 300 de aves. São dezenas de pequenas gavetas de
madeira onde estão meticulosamente alinhados todos os ossos dessas espécies ali
catalogadas. "Deve ser a melhor colecção da Península Ibérica."
"Não podemos mudar isto de um momento para o outro. Talvez sejam
necessários dois meses, não sei se estarei a errar", diz Cristina Araújo. "É
o nosso trabalho que está em causa." Muitos artefactos armazenados no
edifício de Belém do antigo IPA exigem cuidados de tratamento complexos.
Estudos de impacto em risco de parar
Desligar base de dados do ex-Instituto de Arqueologia pode causar atrasos em obras públicas
É pelos responsáveis da sala de inventário do ex-Instituto Português de Arqueologia, onde se actualiza a megabase de dados da investigação arqueológica em Portugal, que são recebidos os estudos de impacto das grandes obras públicas. Estão ali referenciados, ao todo, 26 mil sítios arqueológicos de reconhecido interesse registados em todo o território de Portugal continental. Sofia Gomes, uma das responsáveis por esta base de dados, aponta para o ecrã e pousa o dedo precisamente em cima do traçado do futuro TGV, que aparece no ecrã do computador: "Há um sítio de interesse arqueológico a 32 metros do traçado, no Poceirão." Desligar a base de dados implica atraso nas obras ou risco de perda de património arqueológico. A arqueóloga Jacinta Bugalhão explica o que significa desligar, por um dia que seja, toda a base de dados da investigação arqueológica nacional: "Todos os dias surgem sítios novos. Se isto pára, a arqueologia pára. Sem sabermos para onde vamos, estou a ver isto muito mal parado". Mais extenso que esta base de dados, só o arquivo. "Temos um quilómetro e meio de dossiers. O que está no sistema informático em síntese aqui aparece com toda a informação", explica Bugalhão. A informação começou a ser ali arquivada desde os anos 40. "Mas nos últimos 10 anos explodiu", diz João Mendes, especialista em arqueologia preventiva.
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