Diria que voltamos ao velho problema da
construção e transmissão da informação sobre estes assuntos. Que discurso
construir sobre as fotos de sapatos, e como fazê-las chegar às pessoas pelos
canais certos? Baudrillard achou uma metáfora que tinha
tanto de certeira como de polémica: na era dos media
automáticos e frios, a televisão tornara-se numa outra forma de “solução
final”. Justamente pelo seu carácter dissuasório, esvaziando o conteúdo
do acontecimento e da sua ligação ao telespectador. Por outras palavras, é como
se o Holocausto tivesse sido exorcizado pelo desligamento das pessoas a uma
narrativa, e à faculdade de construir o seu próprio imaginário a partir dela. É
mais ou menos o fim da imaginação (algo que ele associava à substituição
simbólica do cinema pela televisão): como “dava” na televisão, e
toda gente “sabia”, o acontecimento desenrolava-se e tinha as suas
implicações colectivas (a culpa) no preciso espaço de tempo em que durava o
programa. No fim de contas, construía-se uma espécie de memória artificial, que
era outro modo de esquecer o real. Quando li aquele senhor no sítio da BBC
lembrei-me imediatamente desta imagem. Assustado. Sobretudo porque além de se
relativizarem os acontecimentos, se chega ao ponto de sugerir a obliteração das
suas materialidades mais directas. É o esfriamento da consciência colectiva
levada ao seu momento derradeiro. No entanto, nem tudo é obscuro. O facto de
esta discussão ter lugar é desde logo um importante catalisador, e há outros
sinais de que as pessoas se mexem por uma determinada memória. E isso é ainda
mais significativo quando não se trata propriamente das vítimas, ou dos seus
familiares. Falava de Espanha porque lá se têm sucedido campanhas de escavações
em diversos lugares, quer em campos de batalha da guerra civil (as defesas de
Madrid, hoje no que é uma Universidade), quer em valas comuns das vítimas do
franquismo. Essas intervenções têm implicado organizações locais, equipas
académicas (espanholas e até dos EUA), e mobilizam a opinião pública. Constroem
e transmitem uma memória “quente” (para usar o jogo de contrastes
baudrillardiano). Ali não há apenas fotos de sapatos, desenterram-se sapatos. E
bem podemos considerar as consequências psíquicas colectivas deste simples
acto, num destes contextos. Isto, só para falar no papel que a
arqueologia pode ter neste tipo de coisas. Claro que há gente que se preocupa e,
sobretudo, há também quem queira que os outros saibam. Mas para isso é preciso
construir uma narrativa, é necessário começar por encontrar os destinatários.
Em todo o caso, é bom dizer que as democracias ocidentais que passaram por
ditaduras tiveram todas de assumir um projecto de “reconciliação
nacional”, e isso tem acondicionado nas suas caves muito trauma, e muito
luto por concretizar. E é por isso que às vezes só há placas a assinalar um
lugar, ou nem isso. Nada disto resolve as perguntas do
Alexandre Monteiro. Repito-as para mim próprio: Que
fizemos nós, sociedade, do Rossio e do Terreiro do Paço onde queimámos cristãos
novos (ou outros não assim tão novos?) Que
fizemos nós do Campo dos Mártires da Pátria, para além de lhe termos dado o
nome? Saudações De: V í tor Oliveira
Jorge [mailto:vojorge@clix.pt] Isso. A arqueologia ganha
consciência da sua amplitude e da sua responsabilidade política. E ética! Precisamente. E são já muitos os
arqueólogos que, mundo fora, têm contribuído para estas questões. Em especial
na América Latina e na nossa vizinha Espanha, onde em diversas circunstâncias
se tem procedido à construção da memória da guerra civil e do franquismo com o
estudo sistemático dos seus vestígios. De: V í tor Oliveira Jorge [mailto:vojorge@clix.pt] No virus found in this incoming message. |
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