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Re: [Archport] Should Auschwitz be left to decay?

To :   "Archport" <archport@ci.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] Should Auschwitz be left to decay?
From :   "Rui Gomes Coelho" <ruigomescoelho@gmail.com>
Date :   Tue, 27 Jan 2009 02:09:46 -0000

Title: Re: [Archport] Should Auschwitz be left to decay?

Diria que voltamos ao velho problema da construção e transmissão da informação sobre estes assuntos. Que discurso construir sobre as fotos de sapatos, e como fazê-las chegar às pessoas pelos canais certos?

 

Baudrillard achou uma metáfora que tinha tanto de certeira como de polémica: na era dos media automáticos e frios, a televisão tornara-se numa outra forma de “solução final”. Justamente pelo seu carácter dissuasório, esvaziando o conteúdo do acontecimento e da sua ligação ao telespectador. Por outras palavras, é como se o Holocausto tivesse sido exorcizado pelo desligamento das pessoas a uma narrativa, e à faculdade de construir o seu próprio imaginário a partir dela. É mais ou menos o fim da imaginação (algo que ele associava à substituição simbólica do cinema pela televisão): como “dava” na televisão, e toda gente “sabia”, o acontecimento desenrolava-se e tinha as suas implicações colectivas (a culpa) no preciso espaço de tempo em que durava o programa. No fim de contas, construía-se uma espécie de memória artificial, que era outro modo de esquecer o real.

 

Quando li aquele senhor no sítio da BBC lembrei-me imediatamente desta imagem. Assustado. Sobretudo porque além de se relativizarem os acontecimentos, se chega ao ponto de sugerir a obliteração das suas materialidades mais directas. É o esfriamento da consciência colectiva levada ao seu momento derradeiro.

 

No entanto, nem tudo é obscuro. O facto de esta discussão ter lugar é desde logo um importante catalisador, e há outros sinais de que as pessoas se mexem por uma determinada memória. E isso é ainda mais significativo quando não se trata propriamente das vítimas, ou dos seus familiares. Falava de Espanha porque lá se têm sucedido campanhas de escavações em diversos lugares, quer em campos de batalha da guerra civil (as defesas de Madrid, hoje no que é uma Universidade), quer em valas comuns das vítimas do franquismo. Essas intervenções têm implicado organizações locais, equipas académicas (espanholas e até dos EUA), e mobilizam a opinião pública. Constroem e transmitem uma memória “quente” (para usar o jogo de contrastes baudrillardiano). Ali não há apenas fotos de sapatos, desenterram-se sapatos. E bem podemos considerar as consequências psíquicas colectivas deste simples acto, num destes contextos.

 

Isto, só para falar no papel que a arqueologia pode ter neste tipo de coisas.

 

Claro que há gente que se preocupa e, sobretudo, há também quem queira que os outros saibam. Mas para isso é preciso construir uma narrativa, é necessário começar por encontrar os destinatários. Em todo o caso, é bom dizer que as democracias ocidentais que passaram por ditaduras tiveram todas de assumir um projecto de “reconciliação nacional”, e isso tem acondicionado nas suas caves muito trauma, e muito luto por concretizar. E é por isso que às vezes só há placas a assinalar um lugar, ou nem isso.

 

Nada disto resolve as perguntas do Alexandre Monteiro. Repito-as para mim próprio:

 

Que fizemos nós, sociedade, do Rossio e do Terreiro do Paço onde queimámos cristãos novos (ou outros não assim tão novos?)

Que fizemos nós do Campo dos Mártires da Pátria, para além de lhe termos dado o nome?
Que fizemos nós do Forte de Peniche? Da sede da PIDE-DGS, na António Maria Cardoso?

 

Saudações

 


De: V í tor Oliveira Jorge [mailto:vojorge@clix.pt]
Enviada: segunda-feira, 26 de Janeiro de 2009 23:37
Para: Rui Gomes Coelho
Assunto: Re: [Archport] Should Auschwitz be left to decay?

 

Isso. A arqueologia ganha consciência da sua amplitude e da sua responsabilidade política. E ética!
Estamos de acordo. Uma das figuras mais impressionantes do “traço”, do “vestígio”, são aquelas fotos de sapatos empilhados dos que morreram. Nada dizem sobre o que perdemos, e no entanto... Estão apontados directamente à maldade horrível do mundo! São uma chapada na cara da nossa pretensa superioridade de ocidentais, que tanto mal fizemos ao mundo. E continuamos a fazer... Alguns rindo e com belos cartazes em que alguns acreditam... Mas, rindo e sendo boas pessoas, de fundo simples, estão inscritos num sistema que está fechado... Que não tem hipótese.
Veja-se os desempregados todos os dias. O crime que se cometeu, que se comete todos os dias, aos nossos olhos. E ninguém se revolta...
Um abraço
Vitor Jorge


On 09/01/26 23:09, "Rui Gomes Coelho" <ruigomescoelho@gmail.com> wrote:

Precisamente. E são já muitos os arqueólogos que, mundo fora, têm contribuído para estas questões. Em especial na América Latina e na nossa vizinha Espanha, onde em diversas circunstâncias se tem procedido à construção da memória da guerra civil e do franquismo com o estudo sistemático dos seus vestígios.
 
Saudações
 


De: V í tor Oliveira Jorge [mailto:vojorge@clix.pt]
Enviada: segunda-feira, 26 de Janeiro de 2009 20:17
Para: Rui Gomes Coelho
Assunto: Re: [Archport] Should Auschwitz be left to decay?

Creio que nunca se poderá eliminar Auschwitz. Esse apagamento não pode ser feito.
Há sobre isso reflexões de muitos autores, como sabe.
Por exemplo, J. Derrida. As suas reflexões fundamentais sobre o luto, o perdão, e o esquecimento.
Saudações cordiais
VOJ

 

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