[Archport] César, Virgílio, Joviano, António e o mosaico mais belo do império
César, Virgílio, Joviano, António e o mosaico mais belo do império
PÚBLICO
16.02.2009
Um mosaico romano de características únicas foi encontrado em Alter do
Chão. É do século IV e representa o último canto da Eneida. Em ano
eleitoral, a obra de Virgílio poderá fazer pelo presidente
da câmara, Joviano Vitorino, o que, há dois mil anos, fez pelo
imperador César Augusto. Vai poder ser visto a partir de 21 de Maio.
Por Paulo Moura (texto) e João Henriques (fotos)
Caio Júlio César Otaviano Augusto, em Roma, à semelhança de Joviano
Vitorino, em Alter do Chão, precisava de consolidar o seu poder. A
república tinha-se transformado em império, em 23 a.C., e, para o
manter unido e submisso, era importante criar uma mitologia, uma
epopeia e uma crença na natureza divina do poder imperial.
César chamou um poeta com provas dadas, Virgílio. Ou melhor: pediu a
um amigo, também seu conselheiro e agente diplomático, muito rico e
que gostava de apoiar as artes, um mecenas, que falasse com Virgílio.
O mecenas que, não por acaso, se chamava Mecenas, pagou ao poeta para
escrever uma obra melhor do que a Ilíada e a Odisseia juntas. No ano
19 a.C., o mesmo em que morreu, Virgílio compôs então a Eneida, um
poema épico em 12 cantos que começa, mil anos depois, onde a Ilíada
termina - a queda da cidade de Tróia.
Os primeiros seis cantos da Eneida, aliás, emulam a Odisseia, em
termos de enredo e também na forma, enquanto a primeira parte da obra
imita a Ilíada. Tudo junto, garantia Virgílio, superava a obra de
Homero. Mas não a ignorava. Através de um sistema de referências a que
os literatos chamam intertextualidade, alimentava-se dela. São comuns
algumas personagens, bem como locais e eventos, para que ao leitor que
conheça a Ilíada e a Odisseia esteja acessível uma fruição superior da
própria Eneida.
Ao contrário do que se passa na Odisseia, protagonizada por um grego
(Ulisses), o herói da obra de Virgílio é Eneias, um troiano que, a
pedido da sua ilustre mãe, foge, após a destruição da cidade pelos
gregos, com o objectivo de erguer uma nova cidade, uma nova Tróia, que
será Roma. Eneias era um rapaz de boas famílias: o pai era Anquises,
um príncipe troiano, mas a mãe era nada menos do que a deusa Vénus,
que tivera com o mortal Anquises uma aventura extraconjugal. Também
estava muito bem relacionado: o seu escudo foi construído por Vulcano,
marido de Vénus e deus do fogo (à semelhança do que acontece com o
escudo de Aquiles, na Ilíada), frequentava a casa de Plutão, o
guardião dos Infernos, e aconselhava-se regularmente com Júpiter, o
deus dos deuses.
Após muitas peripécias, guiado por um oráculo, Eneias chega à Itália.
Aí, tem de combater o rei dos rútulos, Turno, a quem tinha sido
prometida a mão de Lavínia, filha de outro líder local, Latino, rei
dos latinos. Mas um oráculo aconselhara Latino a aceitar como genro um
guerreiro estrangeiro. Eneias conta então com a ajuda de Latino e,
protegido com o escudo forjado por Vulcano (onde estão gravados todos
os acontecimentos da futura História de Roma), e aconselhado por um
génio do rio Tibre, vence, numa luta corpo a corpo, o rei Turno.
Tombado no chão, este implora pela sua vida, mas Eneias, após um
momento de hesitação, trespassa-o com a espada. Desposa Lavínia, e o
seu filho Ascânio, neto de Anquises e Vénus, será o avô dos futuros
reis de Roma, que assim vêem garantida uma linhagem divina e uma
História mítica, ligada aos gregos e aos povos da Itália. Virgílio
cumpriu a sua missão, o imperador César Augusto ficou satisfeito.
A Casa da Medusa
Jorge António encontrou primeiro a cabeça de uma estátua de mármore
representando uma rapariga. O penteado, em longas tranças puxadas para
trás e apanhadas em rabo de cavalo, denuncia a moda da sua época.
Basta averiguar quando se usava aquele visual feminino, e saberemos a
que período pertence a estátua. Foi isto que pensou Jorge António, que
é natural de Faro e arqueólogo da Câmara Municipal de Alter do Chão.
Uma coisa era certa: a presença da escultura era sinal da existência
de uma casa muito rica, uma verdadeira domus. Até agora, já tinha sido
descoberta a base de uma outra estátua, de Apolo, perto de uma zona de
balneários termais, daquela que terá sido uma importante cidade romana
e está hoje soterrada sob a vila alentejana de Alter do Chão. A cidade
chamava-se Abelterium e começou a ser escavada em 1954. A estação
arqueológica desenvolveu-se na área entre o campo de futebol, uns
terrenos pertencentes à coudelaria, e o pavilhão desportivo que viria
a ser construído. Tornou-se perfeitamente visível a zona do
hipocausto, onde o ar aquecido por uma fornalha de lenha circulava por
baixo do chão, a do frigidário, onde corria água fria, a zona de
massagens e a latrina comunitária. No decorrer das escavações,
surgiria também a necrópole, onde, a julgar pelo luxo dos objectos
depositados junto a cada corpo, estariam sepultados os elementos da
elite da sociedade romana da época. Tudo levava a crer, portanto,
estar-se na presença de uma grande cidade - uma civitas, e não um
simples vicus (povoado).
Jorge António, 38 anos, trabalha há oito na Câmara de Alter do Chão.
Concluíra a licenciatura em História e Arqueologia na Faculdade de
Letras da Universidade Clássica de Lisboa e estava desempregado.
Enviou um currículo para a Câmara de Alter e conseguiu o lugar. Logo
nesse ano de 2001, elaborou um projecto para a Estação Arqueológica de
Ferragial d'El Rei, que só viria a ser aprovado em 2004. Foi nessa
altura, com alguns apoios financeiros, que se iniciaram os trabalhos.
No seu Gabinete de Arqueologia, instalado em duas salas do edifício do
Cineteatro de Alter do Chão, Jorge armazena, organiza e estuda os
achados dos últimos anos, distribuídos por caixas rotuladas -
"Fragmentos de estuque", "Elementos de adorno", "Cerâmica comum",
"Moeda", "Vidro", "Aplicações para mobiliário", "Têxteis", "Lazer",
"Iluminação doméstica"... Sobre uma mesa, o esqueleto quase completo
de um homem, sepultado há cerca de 1500 anos. Tinha 1m e 62 cm de
altura, entre 40 e 49 anos à data da morte, e era rico. É o que se
sabe sobre ele.
Com estes elementos, e mais alguns fragmentos de estátuas, de frescos,
de paredes, Jorge António ia imaginando a cidade que existiu naquele
lugar, e que, a jugar pelos vestígios, nunca foi propriamente
abandonada, até hoje. Terá havido uma continuidade de ocupação, desde
as povoações pré-romanas, as visigóticas, árabes, cristãs, até ao
castelo, construído em 1349 por D. Pedro, e à actual vila de Alter do
Chão.
Mas foi há um ano e meio que fez a grande descoberta.
O mosaico
Perto do local onde encontrara a cabeça feminina, em mármore, viu
surgir a figura de Eneias, composta em minúsculas tesselas de calcário
colorido e outras de pasta vítrea, azuis, verdes e amarelas. Foi
alargando a área exposta e trouxe à luz o imenso mosaico, de 53 metros
quadrados, constituído por uma moldura geométrica e uma zona
figurativa de inédito esplendor. Eneias, com o seu penacho
característico, quebrado por ter sido atingido por uma lança. Dos dois
lados do painel, frente a frente, guerreiros gregos e frígios,
definidos pelos respectivos capacetes. Entre as duas hostes, um
medalhão com a figura da Medusa. Ao centro do painel, prostrado aos
pés de Eneias, o rei Turno, implorando pela sua vida. Em baixo, à
direita, a figura de Vulcano, cuspindo fogo, e à esquerda a do génio
do Tibre, de cujo jarro verte a água do rio, representada em tesselas
de pasta vítrea azul e verde.
"A cena representa o último canto da Eneida", explica ao P2 Teresa
Caetano, investigadora do Instituto de História da Arte da
Universidade Nova de Lisboa e da Associação de Investigação e Estudo
do Mosaico Antigo e da Associação Portuguesa para o Estudo e
Conservação do Mosaico Antigo. "Turno está a pedir a Eneias que lhe
salve a vida", diz a especialista, que já está a estudar o achado de
Alter do Chão. "Há o deus Tibre, representado por um génio do rio,
apoiado num vaso que deita água. Do outro lado está Vulcano, amigo da
mãe de Eneias, que era Vénus, secando o rio, afrontando o génio do
Tibre..."
Teresa Caetano nunca tinha visto um mosaico como este. Não há, no
país, nem na península, nem talvez no mundo, mais nenhum desta
qualidade e neste estado de conservação. O estudo, que vai durar, pelo
menos, até ao final deste ano, ainda está no início. Mas já é possível
tirar algumas conclusões: o mosaico é do século IV, do império romano
tardio, e pertencia a uma casa muito rica. Naquela altura, como
reacção ao cristianismo que alastrava, tornaram-se moda, entre os
romanos não-cristãos, os mosaicos com motivos da Ilíada, Odisseia ou
Eneida. Os homens ricos e influentes do mundo romano faziam questão de
ostentar uma profunda cultura clássica, e uma ligação aos valores
pagãos, que consideravam superiores aos do cristianismo. Era uma
demonstração de status e poder.
Nada se sabe sobre o homem que mandou construir o mosaico de
Abelterium, excepto que era muito rico e culto e que teria uma grande
importância na cidade. O mosaico terá custado uma fortuna. Não foi
feito, decerto, por um artista da região, porque não havia na
península, que se saiba, uma escola com tal mestria. Mas sobre isto há
várias teorias. Jorge António fala de artistas itinerantes que iam de
casa em casa, com um catálogo de imagens. Teresa Caetano imagina uma
espécie de "multinacional" da arte do mosaico, que teria "sucursais"
em vários pontos do império. As próprias tesselas, que alguns
historiadores pensavam serem feitas com materiais de cada local,
parece afinal que eram produzidas numa mesma "fábrica", e
transportadas de barco para as várias regiões. Os despojos de um
navio, carregado de tesselas coloridas, naufragado ao largo das
Berlengas, vieram confirmar esta teoria.
A maior parte dos mosaicos eram feitos por artesãos, que copiavam as
imagens concebidas pelos "designers" da "multinacional", com ligeiras
adaptações. Não terá sido o caso do painel de Alter do Chão. "A
riqueza de pormenores, as sombras, a musculação, a própria técnica da
perspectiva" denunciam a presença de um artista. Um verdadeiro pictor
imaginarius, que terá vindo expressamente de Emerita Augusta (Mérida),
capital da Lusitânia, ou mesmo de Roma, para produzir a obra na casa
do magnata de Abelterium. Era um mestre, que se faria pagar a peso de
ouro, mas terá desenhado o que o seu cliente pediu, como era normal na
época. Mais ou menos pasta vítrea, para os detalhes dos olhos, a água
ou o fogo, mais uma cena mitológica, mais uma personagem, tudo isto
era decidido por artista e cliente, numa discussão erudita de quem
dominava os clássicos.
Jorge António não duvida de que o proprietário da sua Casa da Medusa,
como baptizou a domus do mosaico, era um homem culto. Entre as várias
divisões que descobriu, conta-se um escritório (tablinum), o que
mostra tratar-se de um intelectual. Desta divisão sai um corredor que
liga aos quartos, ao peristilo - o jardim interior - e ao triclinium,
ou sala de jantar, coberto pelo mosaico da Eneida.
"A casa deveria ter pelo menos o dobro do tamanho do que está à vista
e, provavelmente, um segundo andar", explica Jorge António. "Era aqui
que o dono recebia os seus convidados para jantar", continua,
caminhando sobre o mosaico. "Ao centro ficava a mesa e aqui, à volta,
os sofás, onde as pessoas se deitavam, como é descrito no Banquete de
Trimalquião, de Satiricon", prossegue o arqueólogo municipal, que
considera "urgente" continuar as escavações, e preservar os tesouros
encontrados, não obstante a descoberta do mosaico ter ocorrido há um
ano e meio e só agora ter sido divulgada. "Era um homem muito
importante. Um aristocrata, um sacerdote. Talvez um político."
A epopeia de Joviano
Está a chover. A água infiltra-se nos interstícios das tesselas,
fazendo-as saltar dos seus lugares. Joviano Vitorino, 50 anos,
lembra-se de vir para aqui brincar, quando era miúdo. A escola que
frequentava, na aldeia da Cunheira, tinha 80 alunos. Hoje, não tem
nenhum, e fechou. "Lembro-me de vir a Alter, de fatinho, fazer o exame
da 4ª classe, em 1968. Brincávamos sobre as ruínas, levávamos pedras
para casa." Alter do Chão tinha na altura dez mil habitantes. Hoje,
tem quatro mil. "O poder central tem de começar a olhar para o
interior do país de forma diferente", diz Joviano Vitorino, que é hoje
presidente da Câmara de Alter do Chão, eleito pelo PSD. "A nossa
riqueza arqueológica tem um potencial enorme, e a descoberta deste
mosaico veio trazer outra dinâmica ao nosso projecto."
O projecto, a epopeia de Joviano Vitorino, é classificar Abelterium
como Monumento Nacional, criar o Centro Interpretativo da Estação
Arqueológica, no 1º andar do Cineteatro, o Clube do Património, para
trazer estudantes à estação, um núcleo museológico, o Corredor do
Tempo, para as crianças, e uma cobertura especial para o mosaico da
Casa da Medusa. Parte deste equipamento vai ser inaugurado no próximo
dia 21 de Maio. Haverá também merchandizing - t-shirts, bonés, posters
com réplicas do mosaico - e ainda uma piscina descoberta, um pavilhão
desportivo e um estádio.
"Tudo isto atrairá turistas e criará empregos na região", explica o
autarca, que espera obter fundos governamentais para o projecto.
"Precisamos de milhares de euros, e vamos passar a bola da
responsabilidade."
Um grupo de dissidentes do PSD tem sido muito crítico das acções de
Joviano, e ameaçou desafiá-lo, nas eleições autárquicas deste ano,
talvez apoiando o candidato do PS. Mas Joviano tem agora um trunfo que
crê ser imbatível: o mosaico. O timing é perfeito.
"Vai ser inaugurada a IC13, que liga Portalegre a Alcochete. Ficaremos
a uma hora e meia de Lisboa", diz Joviano Vitorino. Não há razão para
que o mosaico seja levado para um museu da capital. "Não deixo que ele
saia. Isto tem uma importância arqueológica enorme", diz o autarca,
que entretanto se tornou especialista em cultura clássica. "Só por
cima do meu cadáver."
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