[Archport] A cultura contra a crise para uma refundação das políticas culturais
A cultura contra a crise para uma refundação das políticas culturais
O DN publica hoje (25/03/09), na íntegra, a proposta que Manuel Maria
Carrilho enviou no início do ano à Fundação Res Publica, a instituição
do PS dedicada a discutir os pensamentos e as políticas públicas,
sobre a necessidade de um debate alargado sobre as prioridades
culturais no actual contexto de crise económica em que vivemos.
Com este documento, do qual têm sido publicados apenas excertos sem
enquadramento e as respectivas reacções, o ex-ministro da Cultura e
actual embaixador de Portugal na UNESCO, em Paris, pretende contribuir
para um "debate útil". Porque "nenhuma nação é forte sem uma cultura
viva", diz
A cultura é hoje reconhecida como um factor decisivo no
desenvolvimento de qualquer país, como um pilar que, nas suas diversas
vertentes, contribui não só para o desenvolvimento dos países como
para a afirmação dos povos e para a visão que eles têm do seu futuro.
Vai longe o tempo em que a cultura era vista como um mero ornamento,
uma "flor na lapela", uma referência de circunstância. Como afirmou a
Comissão Europeia, na sua comunicação sobre "a agenda europeia para a
cultura num mundo globalizado", a cultura, além de se encontrar "no
cerne do desenvolvimento humano e da civilização", é um importante
"activo, num mundo imaterial e baseado no conhecimento. O sector
cultural europeu é um importante propulsor de actividades económicas e
de emprego [que] ajuda a promover uma sociedade inclusiva e contribui
para a prevenção e redução a pobreza e da exclusão social". O que
assim se sublinha é, e bem, que a cultura pode dar uma importante
contribuição na resposta à crise que o País atravessa.
Em 1995, ao criar o Ministério da Cultura, o Partido Socialista deu um
passo histórico neste sector, assumindo o desígnio de fazer da cultura
uma dimensão estrutural e estratégica de um mais intenso e equilibrado
desenvolvimento do País. Foi um passo a que infelizmente a Direita não
deu sequência de 2002 a 2005, ao longo de três anos de governação que
redundaram numa contínua desvalorização das políticas culturais. A
cultura passou assim, com reforçadas razões, a fazer parte do
património do PS, um património que é vital manter, renovar e
valorizar.
Ao aproximar-se o termo da actual legislatura, e antes de se definirem
as perspectivas sobre o que é fundamental fazer na próxima (de 2009 a
2013), importa proceder ao balanço dos últimos quatro anos. Parece-nos
ser esta a atitude política mais responsável: prestar contas e assumir
a verdade, antes de se apresentarem outros projectos e novas metas.
Proponho por isso que a Fundação ResPublica, retomando o espírito dos
Estados Gerais - isto é, um espírito de real abertura e de efectivo
debate -, abra um ampla discussão sobre "a situação e o futuro das
políticas culturais em Portugal", com a intenção de as refundar.
Esse debate deveria ser organizado por sectores e aberto à
participação de todos os interessados: agentes culturais, criadores,
responsáveis políticos, etc. Só de um debate informado e aberto
poderão surgir as ideias que a situação requer. Pela minha parte,
deixo aqui um breve contributo para o diagnóstico da situação e
algumas propostas para discussão.
O Governo do Partido Socialista comprometeu-se, no programa eleitoral
sufragado pelos portugueses e no programa de Governo que foi aprovado
na Assembleia da República, a desenvolver na legislatura 2005/2009,
"três finalidades essenciais" no domínio da cultura. Cito: "A primeira
é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos
de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso
para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é
conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do
património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do
território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação
artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da
cultura portuguesa."
No programa de Governo assumiram-se também dois outros compromissos
nucleares, um de índole orçamental e outro de natureza mais
programática. Quanto ao primeiro, afirmou-se - e bem - que "o
compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da
cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos
recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento do
Estado dedicado à despesa cultural continua a servir-nos de referência
de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação
interrompida no passado recente".
Quanto ao segundo, assumia-se que as "redes de equipamentos e
actividades culturais são o melhor factor de consolidação e
descentralização da vida cultural e de sensibilização e formação de
públicos. A prioridade, na dimensão física, é a conclusão das redes já
iniciada: a rede de Leitura Pública, a rede de Teatros, a rede de
Museus e a rede de Arquivos. Estamos porém muito atrasados na outra
dimensão essencial das redes, como articulação dos equipamentos e
serviços e dos seus programas".
Apesar da clareza destes diagnósticos e do acerto destes propósitos, o
que se verifica ao fim de quatro anos o é que não só não se conseguiu
inverter a situação de "asfixia financeira" de 2003/2005, como ela se
agravou pesadamente. O Orçamento do Estado destinado à cultura desceu
para o mais baixo valor das últimas décadas: 0,3 %. Em contracorrente,
note-se, com o notável esforço que em geral se tem feito ao nível
autárquico, onde se tem procurado dar continuidade ao que de melhor se
semeou no sector…
Também as outras duas "finalidades essenciais" assumidas nos programas
eleitoral e de Governo ficaram pelo caminho: nem se conseguiu dar
qualquer "impulso" no desenvolvimento do tecido cultural português,
nem se definiram políticas que viabilizassem o "equilíbrio dinâmico"
entre os sectores do património e da criação, ou que incrementassem
efectivamente a formação de públicos ou a internacionalização da
cultura portuguesa.
Para já não falar da atonia e da desorientação que têm marcado áreas
tão vitais como as do livro e da leitura, do cinema e do audiovisual,
em que não se vislumbram, ao nível da tutela do sector, quaisquer
opções, orientações ou políticas. A política cultural tornou-se assim
cada vez mais invisível, ilegível e incompreensível, ameaçando fazer,
dos anos 2005/09, uma legislatura perdida para a cultura.
Este facto tornou-se ainda mais sério porque foi acompanhado por um
conjunto de decisões imprudentes e mal preparadas, que rapidamente
exibiram as suas múltiplas consequências negativas. Basta olhar, para
o compreender, para as condições - que desafiam o sentido de interesse
público - de cedência do CCB para a instalação da Colecção Berardo. Ou
para a decisão de construir um inútil novo Museu dos Coches, ao mesmo
tempo que os museus nacionais sobrevivem em condições dramáticas e são
objecto de um garrote orçamental que, só em 2008, os privou de 72% das
suas verbas de funcionamento, deixando-os à beira do colapso. Ou para
a reforma da administração do sector (o Prace/cultura) que, feita sem
o necessário conhecimento, estudo e ponderação, deu origem a
estruturas mais burocráticas, mais ineficazes e mais dispendiosas, com
consequências que - ao contrário do que se pretendia - na maior parte
dos casos se revelaram contraproducentes, e em alguns se revelaram
mesmo catastróficas, como aconteceu em várias áreas do património.
(Sublinho, entre parêntesis, duas observações: a primeira, é que as
notícias sobre o estado de diversos sítios do património consagrado
pela UNESCO - e não só - são um preocupante sinal de alarme; a
segunda, é que a situação que não se resolve com recursos "em espécie"
oriundos do sector da construção civil, com vocação e aptidão bem
diferentes - como em todo o mundo civilizado bem se sabe - das que
exigem a recuperação e a valorização do património classificado.)
Em síntese, são três os pontos que caracterizam hoje a situação da
política cultural: um estrangulamento orçamental sem precedentes, uma
ineficácia e incapacidade administrativa que se tem agravado e uma
persistente ausência tanto de estratégia global como de políticas
sectoriais.
Estes factores têm naturalmente conduzido a uma progressiva
descredibilização da acção cultural do Estado, não sendo por isso de
admirar que se multipliquem as vozes que põem em causa a própria razão
de ser do Ministério da Cultura. Mas se são estes os principais
problemas que o sector da cultura enfrenta, o que agora importa é - na
perspectiva da próxima legislatura - encontrar so- luções para os
ultrapassar.
Claro que não se pode ignorar a crise que se tem vivido. Mas ela de
modo algum justifica, seja o estado de abandono a que a cultura tem
sido votada, seja o desinvestimento de que tem sido objecto, e que
pode provocar - e enfatizo este ponto, uma vez que se trata de uma
ameaça real - danos irreversíveis.
Pelo contrário, o que seria preciso na actual situação era valorizar -
na linha de todas as posições da União Europeia nesta matéria - o
contributo que a cultura pode dar para enfrentar e ultrapassar a crise
que vivemos, como de resto foi defendido pelo anterior ministro das
Finanças, Luís Campos e Cunha (Público, 28/11/08).
É para isso que apontam também todos os estudos internacionais,
nomeadamente da União Europeia, sobre o papel da cultura e da criação
no PIB, no emprego, na coesão, na competitividade. Não reconhecer isto
é, hoje, de uma cegueira tragicamente irresponsável.
E valorizar o contributo da cultura significa ainda ter em conta os
diversos factores que, na última década, alteraram muitos dos
parâmetros tradicionais das actividades culturais: a inovação
tecnológica, a transformação das modalidades de aceso aos bens
culturais, os desafios da gratuitidade, o impacto das indústrias
criativas, etc.
O que deve ser feito tendo bem presente que a qualificação das pessoas
exige uma convergência efectiva das políticas culturais com as
políticas de educação (do pré-primário à universidade), de
investigação e de ciência, de formação e de comunicação. Esquecer isto
é condenar a qualificação como desígnio estratégico, para o
transformar num expediente não só ocasional como inútil.
Neste ponto, como contributo para o debate, destaco duas prioridades
que me parecem elementares para que a cultura retome o seu papel
estratégico no desenvolvimento do País: um orçamento capaz e uma
administração eficaz.
Sem um orçamento minimamente realista, nenhuma política é possível.
Por isso, a área da cultura deve ser dotada com 1% do Orçamento do
Estado, sendo fundamental que se assuma de um modo absolutamente claro
esse compromisso para a próxima legislatura. Essa meta poderá
atingir-se gradualmente: 0,6 em 2010, 0,8 em 2011, 0,9 em 2012 e 1% em
2013.
Meta que, sublinho, deverá ser complementada com verbas europeias, na
linha do que o POC, Programa Operacional de Cultura, proporcionou ao
País de 2000 a 2008 e que, no quadro do já anunciado reforço das
verbas europeias para a qualificação, deveria ascender a uma média de
90 milhões de euros/ano.
E 1% porquê? Ou melhor, para quê? A resposta é clara: fundamentalmente
para assegurar as responsabilidades de serviço público, que são a
verdadeira razão de ser do Ministério da Cultura, e que são sobretudo
duas: as suas responsabilidades estruturais e as suas
responsabilidades estratégicas.
No campo das responsabilidades estruturais estão as de assegurar um
digno funcionamento de instituições nacionais da maior importância
para o País, como a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo, a
Cinemateca Nacional, os Teatros Nacionais de São Carlos, de D. Maria
II e de São João, a Companhia Nacional de Bailado. Ou, ainda, de
instituições como as Fundações de Serralves, da Casa da Música e do
Centro Cultural de Belém.
No âmbito das suas responsabilidades estruturais estão a de garantir a
manutenção e a valorização do Património Classificado, nacional e
mundial, assim como da Rede Nacional de Museus. Sem esquecer o seu
papel, em todo o território, na Rede de Leitura Pública, na Rede de
Cineteatros e na Rede de Arquivos.
Por sua vez, nas suas responsabilidades estratégicas destaca-se a
obrigação de assegurar o apoio à criação artística nas suas diversas
áreas, nomeadamente naquelas em que o mercado português - dada a sua
dimensão - tem mais dificuldades em sustentar a continuidade e a
qualidade das suas actividades: o teatro, a música, a dança, as artes
visuais, o cinema, o audiovisual, a edição. Bem como a de garantir um
esforço regular e eficaz da sua internacionalização, seja no âmbito
lusófono, na dimensão europeia ou numa perspectiva mais global.
Mas não basta garantir a progressão até 1% do Orçamento do Estado para
alterar a ambição e a eficácia das políticas culturais do Estado. É
também absolutamente necessário que simultaneamente - é a minha
segunda sugestão - se reformule a administração dos seus sectores
fundamentais: o património, as artes cénicas (música, teatro e dança)
e as artes visuais, o cinema e o audiovisual, o livro e a leitura, a
acção cultural externa.
Só com estes dois novos instrumentos, um orçamento capaz e uma
administração eficaz, é que se poderá definir uma estratégia global de
afirmação da cultura na acção - interna e externa, nacional e local -
do Estado. Só assim se poderá avançar com políticas sectoriais que,
bem articuladas e calendarizadas, a concretizem: uma política do livro
que promova a diversidade da oferta editorial e o reforço geral da
leitura, uma política do património com vista à sua valorização,
conhecimento e usufruto, uma política das artes que estimule a criação
e promova a internacionalização das obras, dos autores e dos valores
da cultura portuguesa. Só assim se reunirão as condições para se
estabelecerem parcerias credíveis e para se promover um mecenato
empenhado.
Concluindo: é urgente mudar. O Partido Socialista deve assumir com
verdade o balanço do período que agora termina, e prometer mais e
melhor. A próxima legislatura deve ser a de um renascer da esperança
para a cultura portuguesa: deve, sobretudo, ser a de uma verdadeira
refundação das políticas culturais em Portugal.