Carta aberta aos promotores da carta dirigida ao Primeiro-Ministro, em defesa do projecto do Museu Nacional dos Coches. Não sendo propriamente uma
surpresa, não podemos deixar de dizer que foi com alguma estranheza que tomámos
conhecimento do conteúdo e da forma dada à vossa carta ao verificarmos a
necessidade que tiveram de alicerçá-la numa espécie de ?parada de estrelas?
(sinal da fraqueza dos vossos argumentos ?) e ainda por se terem dado ao
trabalho de realizarem um exercício tão grandiloquente quando afinal mais não
visam do que defender um projecto de arquitectura e o seu autor. Respeitamos em
todo o caso a vossa iniciativa e agradecemos o tom cordato com que se referem às
posições aparentemente contrárias às vossas. Estamos até convictos que haverá
entre nós pontes suficientes para que possamos discutir serenamente este
assunto, com a estima que mutuamente nos reconhecemos ? assim nos seja dado o
tempo útil para o efeito. Pelo nosso lado, procuramos
basear-nos em argumentos técnicos e de política patrimonial, especialmente na
vertente museológica. Quando nos dirigimos ao Primeiro-Ministro, fizemo-lo em
nosso próprio nome, dispensando o recurso sempre fácil a listas de suporte,
recheadas de personalidades sonantes dos meios artísticos ou sociais ? que, em
todo o caso, podem facilmente encontrar em petição contrária à vossa, que
circula na Internet, promovida e amplamente assinada, entre outros cidadãos e
personalidades, por alguns colegas vossos, arquitectos de obra, reflexão e
empenho social amplamente reconhecidos. O vosso cavalo de batalha é,
pois, um projecto de arquitectura e um arquitecto. Mas acontece que pelo nosso
lado nunca discutimos a valia ou a adequação do projecto do arquitecto
Repetimos: A questão essencial
que esperaríamos ver respondida na vossa carta seria esclarecer qual a
prioridade da construção de um novo Museu dos Coches no âmbito de uma política
de cultura reflectida, de longa duração, desejavelmente discutida com os
especialistas e contratualizada socialmente. E é isto que manifestamente não
desenvolvem nos vossos argumentos, talvez porque o considerem de somenos ou
porque não estão em condições técnicas para o
fazer. Ora, todos os que acompanhamos
de perto o mundo dos museus portugueses, mormente os dos Ministério da Cultura,
sabemos bem que tal opção não deveria constituir prioridade governativa e
sabemos também, agora não tanto na qualidade de especialistas na matéria, mas na
de cidadãos, que não podemos dar por adquirida uma tal decisão, aceitando-a como
decorrente de uma qualquer iluminação providencial, irreversível por natureza.
Muito menos nos deixamos encurralar na velha teoria do ?ou nós, ou o caos?, uma
vez que temos alternativas a propor para debate no caso do abandono, ou até da
mera adaptação, do projecto do novo Museu dos Coches, permitindo explorar outras
valências museológicas e outras necessidades sociais.
Em nosso entender o abandono da
intenção de construção de um novo Museu dos Coches, ou a reprogramação do
projecto já existente, não deve conduzir à paralisia, muito menos ao desperdício
das verbas existentes para o efeito, mas sim à discussão de uma alternativa de
investimento e de construção de cidade mais democrática, mais racional e mais
útil para o País. Essa alternativa existe. Pode, por exemplo, ser a
requalificação extremamente necessária de alguns museus do Ministério da Cultura
situados em Lisboa (e demos já como exemplos os Museus de Arqueologia, de Arte
Contemporânea / Chiado, de Arte Antiga, do Azulejo ou da Música). Ou pode também
continuar a ser a da construção de um novo Museu que constitua um ícone do nosso
tempo, dotado das mesmas funcionalidades, abertura à sociedade e rasgo de
contemporaneidade que exaltadamente defendem na vossa carta com expressões nas
quais todos nos podemos rever. Não percebemos bem o porquê da vossa fixação no
projecto existente e mais ainda no museu adoptado. Porque esgotar a vossa
capacidade criadora e argumentativa nos limites da defesa de um projecto de
arquitectura, do seu arquitecto e do programa museológico que colocaram diante
de vós, quando afinal existem alternativas socialmente mais úteis e mais
potenciadoras de finalidades como a do incremento do turismo na zona de Belém ?
Esta questão das alternativas é
muito importante. Se a opção política for a de concentrar todas as verbas
disponíveis num só museu, então alguns de nós foram mais longe na apresentação
de propostas alternativas e já indicaram que, a ser tomada a decisão da
construção de um novo A fixação de uma intenção
política de celebração republicana no Museu dos Coches é neste preciso contexto
não somente espúria, como até algo provocatória no seu espírito. Recordem-se as
coisas como são, porque manifestamente é necessário avivar a memória: o actual
Museu dos Coches foi criado pela Rainha Dona Amélia, que soube reconhecer o
abandono
em que se encontravam os mais de cem antigos coches da Casa Real (depositados
nas cocheiras da Ajuda, do Calvário e da Praia dos Levantados), conseguindo do
Rei Dom Carlos a cedência do antigo Picadeiro de Belém, ao tempo praticamente
destituído de função e muito envelhecido, adaptado para museu por Rosendo
Carvalheira que no Jornal Novidades, de 9 de Fevereiro de 1903, afirma:
?Sua Majestade a Rainha é que lembrou a creação do museu. Eu sou apenas o
executor do seu alto pensamento!?. Não haverá outras formas mais adequadas
para celebrar o centenário da República do que dar nova morada aos coches reais
? Ou será que o fito é o da provocação pura e simples, aproveitando a celebração
do centenário da República para destruir uma iniciativa monárquica, que nós
temos por meritória ? Acresce o óbvio: a verdadeira
oportunidade para equacionar a localização mais adequada e digna para a
arqueologia portuguesa, seria muito mais fácil e naturalmente alcançada perante
esse contexto celebratório republicano, se a opção a seguir fosse a de um novo
MNA, como indicámos a título meramente exemplificativo. Na situação actual, bem
pelo contrário, o que vemos é que o projecto do novo Museu dos Coches conduziu a
uma cascata de consequências, todas precariamente pensadas, que não apenas não
garantirão ganhos acrescidos para a arqueologia portuguesa, como arrisca muito
previsivelmente ocasionar danos gravíssimos na Cordoaria Nacional, ela própria
Monumento Nacional, e no Museu de Arqueologia, se fosse por diante a intenção de
o fazer instalar num local que tudo indica ser impróprio para o
efeito. Causa estranheza o carácter
vago, quase se diria comprometido ou envergonhado, quando a vossa carta se
refere a todo este impacte, que em nosso entender reveste gravidade porventura
maior do que a da própria aplicação de verbas vultuosas na construção de uma
obra arquitectónica destinada a dar resposta a uma necessidade, que consideramos
falsa. É aceitável a desfiguração da
Cordoaria Nacional, para nela instalar armazéns, arquivos e supostamente um
museu, que nada garante poder lá funcionar em condições adequadas ? Por outro
lado, tendo presente que o plano de requalificação da margem ribeirinha de
Lisboa prevê a criação de um pólo náutico Acham bem que o Estado
democrático concretize agora o projecto do Estado Novo para os Jerónimos, como
Mas, ainda que assim fosse, ou
seja, ainda que se juntassem a nós e pugnassem por afectar a Cordoaria aos usos
mais adequados que ele deve ter, libertando os Jerónimos oitocentistas para
Museu de Arqueologia, conformemente ao programa do final da Monarquia de a 1ª
República, subsistiria o carácter espúrio (quanto à celebração do centenário da
República), desnecessário (quanto à definição de prioridades de uma política
museológica nacional) e muito provavelmente contraproducente do novo Museu dos
Coches. Esta é uma última ideia que não
queremos deixar de enfatizar (ela deveria aliás constituir a base de todas as
decisões). O que faz o êxito do Museu dos Coches, o mais visitado museu da rede
de museus do Ministério da Cultura ?
A resposta tem ocupado os profissionais de museus e tem sido debatida em
reuniões científicas da especialidade, provavelmente sem ter chegado ao vosso
conhecimento. Caso contrário teriam já verificado que a enorme maioria dos
visitantes do Museu dos Coches são estrangeiros, organizados em grupos
excursionistas. Trata-se de um museu onde se dá tanto apreço ao conteúdo como ao
continente, i.e., ao espaço envolvente, num conjunto estético mutuamente
suportado ? a beleza áulica dos coches exaltada num espaço tardo-barroco, que só
ali pode fazer sentido. Trata-se além disso de um museu para visita rápida,
integrado em circuitos turísticos locais e regionais.
Encerrar este Museu num
ambiente arquitectónico contemporâneo cheio de efeitos de som e imagem pode
retirar-lhe a alma que lhe confere sucesso. Só a custos muito elevados em
promoção e publicidade se lhe garantirá eventualmente níveis de visita similares
aos actuais, mas ? dizem os especialistas ? nunca muito superiores aos mesmos.
Afirmar que o futuro museu dos Coches terá um milhão de visitantes ao ano, sem
quaisquer estudos de suporte, vale tanto como a afirmação feita em tempos de que
o futuro Museu do Côa teria mais visitantes do que a Torre O mais dramático é que a prova
do que afirmamos está feita. Depois da Expo 98, o Museu dos Coches, foi em
grande parte transferido para esse recinto (para reparação da cobertura do
espaço original), tendo tido muito menos visitantes do que no seu espaço
próprio. Também aí o invólucro foi um pavilhão moderno, contemporâneo,
tendencialmente ?neutro?; e tinham sido criados hábitos recentes de visita à
zona (onde existe um centro comercial que tem mais de 25 milhões de
frequentadores por ano); mas os resultados foram os que foram.
Verificamos que têm agora,
diríamos finamente, plena consciência que o espaço actual do Museu dos Coches
não poderá servir como picadeiro (que na realidade quase nunca foi),
esboroando-se assim a motivação inicial que, na cabeça de alguns, levou a pensar
na procura de um espaço alternativo para o Museu dos Coches. E admitem que aí
poderão continuar a ficar alguns coches. Mas das duas uma: ou ficariam aí os
mais magnificentes, esvaziando assim de conteúdo, ainda mais, o novo edifício;
ou reservariam para esse espaço apenas algumas peças, destinadas a conferir
enquadramento a novos usos socioculturais ? eufemismo usado para evitar dizer
que se trata de usar este espaço em banquetes oficiais e sala de aluguer a
privados. Entendem, pois, que a melhor forma de comemorar a República é gastar
algumas dezenas de milhões de euros num projecto tão polémico, dando destino tão
pouco republicano ao espaço original ? Por tudo isto dizemos que a
vossa tomada de posição estreita em defesa de um projecto de arquitectura e de
um arquitecto, pede demasiado em matéria de construção de cidade e de política
patrimonial. Ora, contrariamente a vós, nós não pedimos muito.
Pedimos antes de tudo que se
cumpram as promessas e os estudos que resultam de longa maturação e não sofra o
País de vícios terceiro-mundistas dos factos consumados e das obras inúteis,
destinadas a celebrar a grandeza dos governantes. Não é tolerável, por exemplo,
que uma obra desta dimensão seja feita sem que o Governo obtenha o parecer,
obrigatório por lei, do Conselho Nacional de Cultura, através da respectiva
Secção de Museus. Pedimos depois que se comece
pelo princípio, ou seja, pelo levantamento do parque museológico e urbanístico
de zona de Belém, para nele detectar virtualidades, abandonos e até e lacunas,
conducentes estas porventura à construção de um novo museu, para o que temos
várias alternativas a propor, que certamente podem aproveitar tanto os méritos
do autor como do projecto de arquitectura já existentes, com as vantagens da sua
maior utilidade social e do
planeamento de circuitos integrados na zona de Belém, encontrando uma trama
urbana, onde cada peça adquira o seu próprio lugar e se explorem as
potencialidades acrescidas do conjunto. Pedimos finalmente que o
Governo da República respeite o programa eleitoral que o levou ao Poder. Se quer
fazer um museu nacional novo, de raiz, pois faça um Alternativas são o que não
falta. É tudo uma questão de formulação de prioridades de investimento e de
construção democrática e esclarecida de cidade. Neste sentido, deixamos desde já
o convite para que participem no encontro que muito brevemente iremos promover
(?Política
Museológica Nacional: como se fazem e desfazem museus?),
certos de que na Política
Cultural se justifica seguir igualmente as boas práticas da Política do
Ambiente, i.e. a construção de políticas baseadas em consensos construídos com
base na audição da sociedade e das associações científicas, profissionais e
cívicas suas representativas. Lisboa, em 24 de Março de
2009 Assinam, O Secretariado Permanente da
Plataforma pelo Património Cultural (PP-Cult) João Neto,
Presidente da Associação Portuguesa de Museologia
(APOM) José Aguiar, Presidente da
Comissão nacional Portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(ICOMOS) Hélder
Ferreira, Presidente da Associação para a Promoção, Gestão e Desenvolvimento do
Turismo Cultural Português (PROGESTUR) João Carlos
Caninas, Presidente da AG da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa
do Ambiente (CPADA) |
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