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[Archport] Resposta ao post de NOSTRAE SPES VNICA

To :   <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Resposta ao post de NOSTRAE SPES VNICA
From :   Carlos Jorge Gonçalves Soares Fabiao <cfabiao@fl.ul.pt>
Date :   Mon, 8 Jun 2009 19:31:01 +0100

Exmº Senhor que usa o pseudónimo NOSTRAE SPES VNICA:

O texto que V. Exª enviou para a Archport pertence à categoria dos que a comunidade arqueológica tende a ignorar, por razões óbvias. Pela parte que me toca, não gostaria de deixar sem resposta a sua contribuição, por duas razões. Em primeiro lugar, porque penso que merece realmente uma resposta, em segundo, porque embora se presuma que o texto se esclarece a si próprio, dispensando qualquer comentário, por haver jovens ou outras pessoas menos informadas a aceder a este website convém responder, esclarecendo vários equívocos, incorrecções e imprecisões que o mesmo tem.
Comecemos por reiterar um esclarecimento importante: quem anda pelo campo (com detector de metais ou sem ele) a recolher artefactos arqueológicos à superfície ou por intermédio de escavação não é um arqueólogo. Arqueólogo é aquele que é superiormente autorizado a realizar trabalhos arqueológicos, em conformidade com o que se encontra definido no Decreto-Lei 270 / 99.
O pitoresco episódio que descreve do cavaleiro ?do povo lusitano? que acidentalmente perde a sua ?pequena falcata? envolve duas fortíssimas improbabilidades estatísticas. Primeiro, se tal acontecesse, seria remota a possibilidade de conservação da dita ?pequena falcata? (por alguma razão a esmagadora maioria das armas conhecidas provém de necrópoles, ou seja, de situações de enterramento intencional, que promove a sua real preservação). Segundo, se ela se conservasse, seria remotíssima a possibilidade de ser encontrada, mesmo por um detectorista no exercício do seu ?hobby?. Sobretudo porque como todos sabemos, o detectorista é selectivo na escolha dos lugares onde exerce o seu ?hobby?.
Na sua contribuição refere que há ocultações intencionais (os chamados tesouros numismáticos, de jóias, mistos, etc.) que se encontram fora das áreas residenciais e, por isso mesmo, não possuem ?contexto social?. Poderia começar por lhe dizer que são muitíssimo mais frequentes as ocultações dentro ou junto a povoados, por exemplo, do que em sítios ermos. Contudo, basta explicar-lhe que uma ocultação intencional tem sempre um contexto de ocultação que é, em si, socialmente significativo, constituindo, por isso mesmo, um relevante contexto arqueológico. Para além do mais, é ao arqueólogo que compete discernir se os artefactos estão (ou não estão) fora de contexto.
Terá sido justamente essa a situação que originou o Projecto IPSIIS. Os arqueólogos definiram que existia uma situação de depósito secundário de inertes resultantes de dragagens, ou seja, uma massa de sedimentos no qual existiriam artefactos arqueológicos seguramente fora de um contexto primário de deposição e, por isso mesmo, estabeleceram que essa poderia ser uma zona de intervenção de detectoristas. Assim é que deve ser. Os arqueólogos definem as zonas onde os detectoristas podem actuar e não o inverso (os arqueólogos terem de estabelecer os lugares onde os detectoristas não podem actuar). Por analogia, encontra-se estabelecido que ninguém pode pular os muros e entrar nos quintais das moradias, sem que seja necessário que o seu proprietário tenha de lá colocar um cartaz a dizer que é proibido saltar o muro e invadir-lhe o jardim.
E faz sentido mencionar este exemplo justamente porque lhe pergunto: quantos detectoristas pedem autorização aos proprietários dos terrenos para os percorrer de detector em punho?... E quantos informam os proprietários dos terrenos sobre aquilo que acharam nos ditos?... Porventura pensam os detectoristas que a posse de um detector de metais suspende o Estado de Direito?... Que o suposto direito ao exercício do seu ?hobby? se sobrepõe ao direito de propriedade?
Por exemplo, um arqueólogo que é autorizado a realizar uma qualquer intervenção arqueológico tem, por força de lei, de esclarecer a quem pertence o terreno onde a mesma decorrerá, sendo obrigatório juntar ao processo uma declaração de autorização do proprietário para a realização dos trabalhos arqueológicos (nº 5, do Art. 5º do Decreto-Lei 270 / 99). Repito, em processos de intervenção arqueológica devidamente reconhecidos e autorizados pelo Instituto nacional que superintende aos trabalhos arqueológicos. O interesse arqueológico de um sítio não suspende nem se sobrepõe ao direito de propriedade: 
?A autorização técnica concedida pelo IPA para a realização de trabalhos arqueológicos não dispensa o arqueólogo requerente de obter o necessário consentimento do proprietário dos terrenos ou dos bens sobre que incidirão os trabalhos em causa?.
Certamente sabe (e é importante que isso se diga com todas as letras) que no Reino Unido, onde é bastante amplo e relativamente livre o exercício do ?hobby? do detectorismo, há gente a cumprir penas de prisão efectiva justamente por ter exercido o dito ?hobby? sem autorização dos proprietários dos terrenos e sem subsequente declaração do que por lá recolheu, cito, entre outros possíveis, o chamado caso do Tesouro de Salisbury (dois detectoristas presos).
Justamente o caso do Reino Unido constitui um bom exemplo, por ser invariavelmente invocado por todos os que praticam o ?hobby? do detectorismo. Vejo citar muitas vezes o seu exemplo, embora seja raro encontrar referência ao Treasure Act for England and Wales, de 1996, que estabelece as regras para a declaração e registo dos achados efectuados pelos detectoristas e que inclui o direito de opção, mediante indemnização ao achador e proprietário do terreno, de todos os bens considerados de maior relevância cultural e de interesse nacional. Não poucas vezes também estes achados dos detectoristas, uma vez declarados, dão origem a projectos arqueológicos de maior fôlego, justamente porque os ditos não se encontravam fora de contexto arqueológico. Uma vez mais, o chamado Tesouro de Salisbury constitui um bom exemplo. Apesar de tudo isso, reconhece-se objectivamente, que continua a haver pilhagens e tráfico ilícito de bens arqueológicos no Reino Unido? 
Bem sei que os detectoristas portugueses se sentem muito incomodados com a lei nº 121 / 99 e que, por isso mesmo, gostam tanto de invocar o exemplo britânico. Mas, sejamos sérios e perguntemos: quantos achados de detectoristas foram declarados às autoridades antes da publicação da lei, quando ainda não existia a tal ?burka? de que V. Exª se queixa?
A lei existe e tem os contornos que tem justamente por isso, porque as práticas dos detectoristas a tal induziram. Uma vez que se não verificavam boas práticas por parte dos detectoristas, a melhor forma que o Estado tem de defender e preservar um património comum é proibir genericamente.
Finalmente, quanto aos achados sem contexto, sejamos sérios também. Quem anda pelo campo não vê as planuras esburacadas indiscriminadamente, o que se vê são sítios arqueológicos esburacados, frequentemente com os ?rejeitados? (escórias metálicas, artefactos fragmentados ou artefactos de ferro, chumbo ou bronze) abandonados junto de alguns desses buracos. Sem querer acusar genericamente os detectoristas, não há dúvida de que as práticas de pilhagem de bens arqueológicos nos sítios portugueses estão frequentemente associados não ao coleccionismo para deleite intelectual, mas sim a formas de alimentar redes de tráfico ilícito que visam o efectivo proveito material de quem nelas se envolve.
Seja como for, com tráfico ou sem tráfico, pelas piores ou pelas melhores razões, a intervenção em sítios arqueológicos com ou sem recurso a detectores de metais de forma não autorizada, enquadrada ou superiormente orientada implica sempre danos irreversíveis nos contextos arqueológicos. Por isso as leis são como são e assim deverão continuar.

Carlos Fabião
Docente de Arqueologia da 
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa        


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