Lista archport

Mensagem

[Archport] Crescerá Conímbriga só quando eles fecharem os olhos?

Subject :   [Archport] Crescerá Conímbriga só quando eles fecharem os olhos?
From :   Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>
Date :   Sat, 25 Jul 2009 12:06:24 +0100

Crescerá Conímbriga só quando eles fecharem os olhos?

Público, 25.07.2009

Quanto vale um anfiteatro romano? Depende muito da moeda. Estamos a
falar em euros ou em patos, galinhas, alfaces, couves e árvores de
fruto? Quem vive em Condeixa-a-Velha, sobre o ainda escondido
anfiteatro de Conímbriga, nem quer ouvir falar nas expropriações.

Por Graça Barbosa Ribeiro (texto) e Paulo Ricca (fotos)

Protegido do sol por um chapéu de palha, o director do Museu
Monográfico de Conímbriga, Virgílio Correia, pára num caminho
poeirento, volta-se para um pequeno vale, ergue os braços com as mãos
estendidas e baixa-os num gesto vigoroso, como quem rasga uma estrada,
a direito. "Vêem? A via passa aqui por baixo e conduz ao anfiteatro
que está ali, naquela zona."

Faz-se silêncio, ele franze os olhos, concentrado. À sua frente, no
vale para onde aponta, não se vê mais do que um mar de silvas
pontilhado por árvores e, ao fundo, uma cortina de casas de habitação
da aldeia de Condeixa-a-Velha, a maior parte desabitada. Não é a
primeira nem a segunda vez que faz aquele percurso. E, antes dele,
outros arqueólogos e directores do museu o fizeram, para mostrarem o
que, a princípio, só eles conseguem ver.

Virgílio Correia baixa-se, agarra numa pedra, e começa a desenhar na
poeira do chão: a conhecida Casa dos Repuxos, escavada em 1939; a via
que ele quer fazer imaginar, a passar junto à fachada do primeiro piso
dessa casa (hoje tapada por silvas) e a conduzir ao anfiteatro de que
só se avistam os arcos; e "aqui" - "precisamente no ponto em que nos
encontramos" - a cruzar transversalmente, num viaduto, essa via
interna de Conímbriga, a movimentada estrada que à época passava por
Sellium, nos arredores de Tomar, e se estendia até Bracara".

Virgílio Correia levanta-se ao aproximar de um tractor. "Boa tarde",
atira o homem que o conduz. Não são vistos com muita simpatia, os
arqueólogos que, de tempos a tempos, conseguem fazer o que este agora
tenta - chamar a atenção para uma causa velha de 50 anos: a
necessidade de expropriar várias parcelas de terreno e alguns imóveis,
para prosseguir as escavações no que resta da cidade romana.

Recomendação ao Governo

Desta vez foram os deputados do PSD eleitos pelo círculo de Coimbra
que se deixaram entusiasmar pelo relato de Virgílio Correia, que
aponta o que parecem ser restos de antigos muros e, na verdade, são as
ruínas de uma primeira e mais antiga muralha. "Hoje, sabe-se que o
perímetro de Conímbriga chegou a ser maior. E que o que resta das
construções que estavam do lado de fora da área inicialmente
expropriada - como o viaduto, o anfiteatro e o teatro, estes dois
demolidos para construir a muralha que está à vista - se encontra como
que 'congelado', num extraordinário estado de conservação", diz. O
entulho que ficou por cima acabou por proteger os restos (soterrados)
das edificações.

Depois de uma visita ao local, há tempos, o deputado social-democrata
Miguel Almeida decidiu apresentar uma proposta de recomendação ao
Governo. Anunciou a iniciativa com algum êxito do ponto de vista da
exposição mediática, mas a proposta, em si, foi debatida apenas a
nível da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura e, esta
semana, rápida e discretamente votada no Parlamento. Pedem os
deputados ao Governo que tome as diligências necessárias para que se
avance com urgência para a expropriação dos terrenos e edifícios, com
vista à escavação, conservação e restauro dos achados.

Em termos práticos, a recomendação, para mais em fim de legislatura,
pouco pesará - há muito que os responsáveis pelo museu clamam pelo
mesmo, diz Virgílio Correia. Contudo, desta vez há um dado que torna o
director especialmente interessado na divulgação do caso.

Existe um plano de acção, já aprovado do ponto de vista técnico, que a
Associação de Desenvolvimento Terras de Sicó, em consórcio com outras
entidades, candidatou a verbas do Programa de Valorização Económica de
Recursos Endógenos (PROVERE), no âmbito do Quadro de Referência
Estratégico Nacional (QREN). E entre os projectos que visa concretizar
está o de valorização de Conímbriga, a exigir comparticipação
nacional.

"Seria bom, até, para a dinamização da própria aldeia de
Condeixa-a-Velha", considera Virgílio Correia. Aponta os três arcos
que davam acesso à arena e às escadas do anfiteatro romano, agora
encravados entre casas e quintais da povoação. "Os visitantes
passariam a entrar por aqui", diz.
A sua voz ecoa na aldeia que parece fantasma. Às aparatosas vivendas
que têm crescido à margem de todas as regras de protecção às ruínas
ainda não chegaram os novos habitantes, que trabalham em
Condeixa-a-Nova ou em Coimbra. E os idosos já reformados, esses, ainda
se refugiam do calor no interior das suas casas. As portas, cerradas
num abandono só aparente, hão-de começar a abrir-se quando o sol cair.
Delas saem pessoas que recebem com antipatia quem lhes fala nas
"expropriações": "Você trabalha para o museu?"

Não dava para um café

É assim desde que, há pouco mais de meia dúzia de anos, o Estado lhes
tentou comprar os terrenos. "Fizemos um inquérito e a maior parte das
pessoas disse que sim, que aceitava vender, dependendo do preço",
contara já Virgílio Correia. Na sequência da resposta foi pedido à
Direcção-Geral do Património que avaliasse os terrenos. Mais tarde
chegaria a proposta de compra, que foi recebida como um insulto.

"Sabe quanto me ofereceram por cada metro quadrado?! Noventa escudos -
quarenta e cinco cêntimos! Nem para um café chegava!", clama Fernando
Gaspar Pita, de 72 anos. Com uma mão gesticula e com a outra segura um
balde com pêras que acabou de apanhar. "Noventa escudos! E nós que
temos aqui a criação, alfaces, cebolas, alhos couves, árvores de
fruto", enumera a mulher, zangada. Pouco depois, Ilda Manaia há-de
abrir o portão que dá para as traseiras das casas e das hortas que
acompanham, em curva, o anfiteatro que se esconde a vários metros de
profundidade.

"Quer deitar-lhe o olho?", convida Ilda Manaia, a deixar espreitar a
explosão de verde e o grasnar e cacarejar de dezenas de aves de
capoeira que adivinham próxima a refeição no alguidar que a dona
encosta ao regaço. A mulher inclina a cabeça, num sinal de desdém:
"Vender isto? Só se forem os meus filhos, depois de eu fechar os
olhos", diz.

Cada um com a sua bengala, sentados junto a uma casa, na rua estreita,
Joaquim Amaro, 83 anos, e a mulher, Maria Augusta Costa, de 74,
concordam que a avaliação foi um insulto, mas lamentam que a sua casa,
"que faz parede com a antiga muralha", não tenha suscitado a cobiça
dos arqueólogos. Joaquim aponta a ladeira que leva ao centro da aldeia
e que já não consegue escalar: "Quem me dera que me dessem em troca
uma casa igual, mas lá ao cimo".

Aquela é, também, a esperança de Emília Lopes Gil, cuja casa está
construída sobre os arcos do anfiteatro. "Veja lá se escreve aí para
me darem uma casinha...", pede. O que mais teme é a expropriação, pura
e simples - que a "obriguem" a vender e que não lhe paguem que chegue
para arranjar outra morada.

Todos eles tinham menos de 20 anos quando houve a primeira grande
expropriação e todos participaram na aventura das escavações.
Vergastando as oliveiras, antes do abate; cortando mato e erva, a
abrir caminho aos que manobravam as picaretas; peneirando a terra sob
o olhar nem sempre suficientemente vigilante dos arqueólogos. "Ainda
vendi algumas moedas a coleccionadores que por aí apareciam e a minha
mãe bem contente ficava! Era com o que comprava uma posta de bacalhau
ou um bocado de açúcar", conta Emília.

Ao cimo da aldeia, também sentada à sombra, Maria do Carmo Fernandes,
de 85 anos, recordara essa época, mas para comentar que, desde que o
trabalho acabou, as ruínas "só dão prejuízo". "Tenho lá um olival e os
do museu bem querem que o venda mas, enquanto eu puder, mando apanhar
a azeitona."

Os que defendem os pedaços de terra com esta teimosia são cada vez
menos. Como faz notar Virgílio Correia, muitos dos que reclamavam das
avaliações deixam, aos poucos, as propriedades serem tragadas pelo
mato e pelas silvas. Uns já morreram, outros perderam as forças,
alguns foram viver com a família...

Começam a ser poucos os que resistem como Maria do Carmo, que não tem
filhos vivos a quem deixar as árvores, mas gosta de se saber dona
daquele cobiçado pedaço: "Quando vendemos nunca mais lhe chamamos
nosso." Usa a mesma expressão que Ilda Manaia: "Depois de eu fechar os
olhos que façam o que entenderem..."

Mensagem anterior por data: [Archport] Berlusconi esconde túmulos fenícios Próxima mensagem por data: [Archport] censura
Mensagem anterior por assunto: [Archport] Críticas à formação em Conimbriga no Archport Próxima mensagem por assunto: [Archport] Licenciatura em Património Cultural - UAlg