[Archport] Acerca da remota percepção do mundo
Eu vou completar dentro de duas semanas 59 anos, a última coisa que gostaria de ser seria um velho do Restelo, sou velho e nada há a fazer, gostava de ser mais novo.
Durante anos a fio fui professor no interior remoto, a esfusiante alegria que era quando conseguia reunir duas ou três turmas para fazer uma viagem de estudo, com cinquenta ou sessenta jovens ou adolescentes que nunca houveram visto o mar. E escrevo assim, de estudo, em itálico, porque de facto tratava-se meramente de uma viagem para ver o mar e não para o estudar. Um pretexto. Se fosse necessário ir à Lua para a estudar, só haveria dois homens que o poderiam ter feito. Bem, mas esses nem eram propriamente estudiosos, eram astronautas, ou atletas...
E eu posso ir ao Cairo e perder-me por todos becos e ruínas, ou durante um mês inteiro no Museu e em algumas mesquitas. O que nunca conseguirei é trocar uma palavra ou um sorriso com Nefretite ou Aquenáton. Trata-se apenas de escalas de distância.
E de uma coisa tenho a certeza. É a de que posso dissecar com muito mais profundidade uma pintura de Leoardo ou de Velázquez sentado em frente do monitor do meu computador, do que se passar uma semana no Museu do Louvre, do Prado, ou em outro qualquer.
E de outra ainda. è a de que somos um papalvos. Andamos e andámos pelo mundo todo e só nos conseguimos mostrar e aos outros mostrar os outros. Não seria o caso para nos questionarmos por que razão no Museu do Cairo não se montou, uma vez que estamos a revelar o Egipto, um centro provisório de visita virtual a Foz Coa, a Conímbiga, ou a qualquer outro lugar? Andamos sempre embasbacados com o que está mais fora do nosso alcance.
E não é assim tão dramático que, para podermos ver o Egipto, tenhamos que olhar para a fachada dos Jerónimos.
Manuel
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Manuel de Castro Nunes