A questão da “autenticidade” do
património, e especialmente do património arqueológico, é de facto complexa. Trata-se de um tema que me tem interessado
particularmente, tanto por questões teóricas, como por questões práticas. Às vezes
bem práticas e bem angustiantes, como bem sabe quem convive com problemas de restauro
no dia-a-dia de um museu. Pessoalmente encontro-me repetidas vezes em desacordo
com colegas conservadores porque tenho da percepção da peça arqueológica o
olhar epistemológico do arqueólogo. Não é nem melhor, nem pior do que o dos
outros; é simplesmente o meu e o da disciplina em que me situo; mas tem de ser
negociado com o dos outros, porque viver em sociedade é viver em sistema de
negociação permanente. Na troca de comentários anteriores, sob a epígrafe
que continua a encimar mais este, optei intencionalmente por não comentar a
questão concreta colocada (de forma algo infeliz como ele próprio depois reconheceu)
pelo meu amigo Mas, descontados os excessos, percebo a
perplexidade dele; assim como percebo os argumentos sensatos que mais tarde
invocou (podem / devem reorganizar-se museus, valorizar-se monumentos, etc. sem
o incitamento à participação activa das comunidades locais e sem ter em conta
as suas expectativas, por cândidas que sejam ?). Não me posso pronunciar sobre as opções
concretas tomadas na Idanha, porque desconheço o percurso seguido e os objectivos
visados. De resto, sendo um dos intervenientes o José d’Encarnação, isso
constitui à partida garantia de reflexão séria e ponderada. A minha posição, por defeito talvez, tem
sido sempre, e continua a ser a de desconfiar de posturas que tenham por base a
tentativa de fazer regressar as peças aos seus estados originais. Uma peça arqueológica, ou um sítio arqueológico,
são, como dizia Lewis Binford, uma realidade do presente. Tal como uma pessoa é
aquilo que é em cada fase da sua vida. E o princípio mais geral deverá ser,
quanto a mim, o de preservar as coisas tal como elas chegaram até nós. Mas não entendo este princípio de forma absoluta.
Os vestígios arqueológicos podem e devem servir muitas apropriações contemporâneas,
algumas das quais, as mais patrimonialistas, poderão conduzir a reconstituições
pesadas, guiadas pela procura do Graal, quer dizer, pelo regresso ao “estado
original”. Trata-se de uma demanda algo ingénua; mas não
o é menos do que a pretender que a ruína ou o resto arqueológico são “autênticos”. Enfim, a problemática em referência é
extremamente complexa e pode haver, diria mesmo que há, lugar para todas as abordagens.
Desde que reflectidas, conscientemente assumidas e socialmente suportadas. Dá-se o caso de estar actualmente a finalizar
uma comunicação sobre a matéria. Da ampla documentação disponível retiro
abaixo apenas uma imagem que nos mostra o actual e o original (cientificamente
inferido, com todo o rigor) de uma mesma peça grega. Estaremos nós dispostos nos
nossos museus a fazer regressar os nossos objectos às suas respectivas purezas
originais ? Incluo também as conclusões gerais da minha comunicação
em referência no desejo de que possam melhor explicitar o meu pensamento sobre
estas tão complexas matérias. A autenticidade em
arqueologia: um terreno
de compromissos Conclusões: A percepção social de qualquer ruína, maxime de qualquer vestígio arqueológico,
constitui sempre um compromisso entre “autenticidade” (original) e
“restauro” (moderno), sendo que ambos contêm um componente de
recriação contemporânea. Existem tendencialmente duas vias de
aproximação à ruína: -a da mínima intervenção (no limite, o
ruinismo de John Ruskin) -a da máxima intervenção (no limite, a
reconstrução total e ideal de Viollet-le-Duc) O favorecimento de uma ou outra opção
resulta do ambiente social em cada época. A conservação / patrimonialização não
constitui a única via de utilização social dos bens arqueológicos. Entendidos
como fontes de conhecimento, estão sujeitos à metodologia arqueológica, que
muitas vezes é destrutiva. Em termos patrimonialistas, mantêm-se por
enquanto válidos os principais gerais e as diferentes modalidades de
intervenção recomendadas pelas sucessivas cartas sobre restauro. O recurso às diferentes modalidades de intervenção
recomendadas depende muito de cada situação concreta tanto no plano técnico
como sobretudo no plano político em sentido lato (o uso que a polis entende fazer da ruína). O princípios da “mínima
intervenção” é um dos mais sedimentados na teoria patrimonialistas da 2ª
metade do século XX. Mas assiste-se hoje a um retorno a concepções de
intervenção muito pesadas, já não por opção política de afirmação do Estado
napoleónico central (como no tempo de Viollet-le-Duc), mas por rendição às
“forças do mercado”, especialmente ao turismo de massas e à
sociedade do espectáculo (a chamada “cultura dos eventos”). De:
museum-bounces@ci.uc.pt [mailto:museum-bounces@ci.uc.pt] Este é apenas um comentário, sem toda
a profundidade analítica que o tema mereceria, mas, mesmo assim, aqui vai: Gostaria de salientar aqui o modo como uma
"eterna", digamos assim, questiúncula entre museólogos e
conservadores/restauradores foi resolvida e ultrapassada. De facto, tende-se a esquecer, por
vezes, que o papel fundamental de um museu passa pela sua relação com
diversos e variados públicos e interesses. Sem peças o museu não poderá existir,
mas sem comunicação também não é museu. É armazém de possível e
provável património cultural envolvido em teias de aranha. Ora, se é facto que, alterando peças,
pode-se estar a alterar os suportes de memória e de investigação, uma
intervenção cuidada como esta é fundamental, em benefício dessa mesma memória e
investigação. Aliás, noutro contexto e por outro lado, a
ideia da "magnífica brancura clássica" é um conceito romântico do XIX
mas não era assim na antiguidade mediterrânica clássica... Mas essa magnífica brancura acabou também
por se tornar um conceito que igualmente merecerá suporte de memória... Enfim, gostei de ler e saber que ainda há
museólogos neste País. Obrigado Francisco R. Maduro-Dias De: museum-bounces@ci.uc.pt
[mailto:museum-bounces@ci.uc.pt]
A propósito desta questão, refiro o
exemplo do Sabia-se que muitas inscrições
romanas eram pintadas, para uma boa visualização do seu texto, e conheciam-se
os valores de autenticidade postulados pelos critérios de conservação
patrimonial internacionalmente reconhecidos, com que esta prática poderia
colidir. No entanto, algumas das peças torrienses eram de tal modo ilegíveis,
que inviabilizavam o desempenho do seu papel museológico fundamental,
na comunicação com os visitantes. A eventual pintura de
inscrições deve ser analisada casuisticamente, devendo apenas ser assumida
quando as peças não são legíveis de outra forma e quando se encontram em
determinados contextos museológicos ou pedagógicos, como é o caso de Idanha a
Velha. Mas mesmo nestes casos, é necessário garantir, de acordo com a análise
individualizada das peças, que toda a intervenção é passível de total
reversibilidade. O que implica, para além de técnicas de intervenção
apropriadas (utilizando produtos isoladores) que as epígrafes possuam
adequadas condições intrínsecas (não pintámos peças em arenito) e se encontrem em
ambientes perfeitamente controlados. Em Torres Vedras contámos com o
apoio técnico do Museu de Conímbriga, ponderando sempre as vantagens e
desvantagens do procedimento. Apesar de uma ou duas vozes discordantes, o
processo foi praticamente pacífico. Isabel Luna To : "archport" <archport@ci.uc.pt> Subject : Re: [Archport] Inscrições romanas pintadas.
Será sério? From : Date : Mon, 9 Nov 2009 15:14:05 -0000
|
Mensagem anterior por data: Re: [Archport] Debate televisivo sobre a construção do Terminal de Cruzeiros da Baía de Angra do Heroísmo | Próxima mensagem por data: [Archport] Conferência do Prof. Dr. Fernando Branco Correia " Em torno da guerra e da defesa no al-Andalus. Conceitos, fontes, espaços e protagonistas" |
Mensagem anterior por assunto: Re: [Archport] [Museum] Eleição do Doutor José d´Encarnação como Académico de Mérito da APH | Próxima mensagem por assunto: Re: [Archport] [Museum]FW: Inscrições romanas pintadas. Será sério? |