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Re: [Archport] [Museum]FW: Inscrições romanas pintadas. Será sério?

To :   "'Isabel Raposo'" <isabelrmagalhaes@imc-ip.pt>
Subject :   Re: [Archport] [Museum]FW: Inscrições romanas pintadas. Será sério?
From :   "MNArqueologia/Director - Luis Raposo" <mnarq.director@imc-ip.pt>
Date :   Thu, 19 Nov 2009 14:08:28 -0000

Title: Mensagem

Permita-se o desabafo: um fórum assim, vale a pena !

 

Tal como dizia um anterior colega, é grato saber que ainda existem entre nós museólogos (incluindo aqui todos as restantes perfis científicos e profissionais envolvidos no apaixonante acto de “dar futuro ao passado”) que pensam as coisas para além da “espuma dos dias”.

 

É o caso da Isabel, que nos dá aqui uma lição a um tempo técnica e humanista, só possível de quem tem longa reflexão e maturação nestas matérias.

 

Concordo a 100% com tudo.

 

Mas ocorre-me uma frase célebre, que me deixa inquieto:

 

"O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de se contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que têm."

Descartes

 

Quer dizer, o “bom-senso” não constitui virtude maior do que a que eu tenho por ser mãe de todas as outras, a curiosidade, ditada pela razão. É esta que nos desperta para o mundo e nos incita a ver melhor. E como só vemos melhor quando trocamos olhares, o que fica é que talvez esteja na altura de organizarmos uma jornada de conversa amena, se possível documentada para não ser apenas diletante, sobre estas questões.

 

Alguém antes (já não sei se em público, via fórum, ou em privado) me sugeria isso mesmo.

 

Creio que posso falar em nome do ICOM PT para dizer que estamos abertos a tal ideia

Quem se oferece para facilitar a logística da coisa ?

 

Luís Raposo

 

 


De: Isabel Raposo [mailto:isabelrmagalhaes@imc-ip.pt]
Enviada: quinta-feira, 19 de Novembro de 2009 12:48
Para: 'MNArqueologia/Director - Luis Raposo'; 'ARCHPORT'; 'MUSEUM'
Assunto: RE: [Museum]FW: [Archport] Inscrições romanas pintadas. Será sério?

 

Caro Luís:

Não posso estar mais de acordo.

Margueritte Yourcenar num texto chamado o tempo, esse grande escultor sintetizou essa relatividade do conceito de restauro quando referia que os nossos pais restauravam as estátuas a que nós tiramos os narizes e próteses acrescentados, e que os nossos filhos farão certamente outra coisa.

De facto, tal como na "Conservação Preventiva" se foi paulatinamente abandonando a ideia dos "números mágicos" (como Michalski chama aos valores de temperatura e humidade relativa válidos universalmente) que por si só assegurariam a perenidade dos objectos, também se foi progressivamente desfazendo o mito de que se poderia constituir um corpo de princípios universalmente aplicáveis ao restauro de bens culturais.

O restauro varia em função de contextos geográficos e temporais. E implica sempre opções e escolhas. Cada época é responsável pelas suas em função dos seus valores e interesses, da forma como se revê no seu passado e se projecta no futuro.

Claro que também tem a ver com a evolução da reflexão crítica e ética, com o seu nível de conhecimento científico e tecnológico e com a forma como os poderes responsáveis, para além da própria sociedade, encaram o património.

E por isso, nunca é demais enfatizar a velha máxima de que, em conservação e restauro, cada caso é um caso e de que a principal característica a valorizar é o bom senso.

Bom senso para fazer do restauro uma actividade de excepção, o último recurso de uma cadeia que começa na prevenção/preservação e depois na conservação dos materiais que nos chegaram. Bom senso para recorrer a materiais e técnicas de eficácia e inocuidade amplamente testadas. Bom senso ainda para limitar a intervenção ao mínimo indispensável à conservação e fruição, tendo a consciência de que qualquer decisão não passa de uma opção possível tomada num determinado contexto e em determinadas circunstâncias. Daí a importância da interdisciplinaridade, do recurso aos dados da investigação laboratorial, da formação e competências dos executores... 

Conceitos consagrados têm sido abalados pela experiência e pelo contributo da ciência dos materiais. Os princípios basilares da moderna conservação, definidos em todos os códigos de ética: legibilidade, estabilidade, reversibilidade revelam-se profundamente subjectivos. Restitui-se uma (entre várias) possibilidades de leitura (e, através dela, que autenticidade?: dos materiais? da ideia?da função?...)

Assim, é importante termos em conta que conhecemos ainda pouco os processos de envelhecimento dos materiais que "acrescentamos"; que parte dos produtos e processos considerados reversíveis não passam muitas vezes de utopias que a evolução do conhecimento e a observação pratica desmistificaram.

Há uma imensa riqueza científica nas informações que a matéria alterada, e marcada, pela sua passagem através do tempo e das vicissitudes da História nos transmitem e que são uma fonte inesgotável de conhecimento e de encantamento. E tudo isso deve ser tido em conta quando se decide como se restaura, de forma a não comprometer investigações futuras.

Um abraço

IRM

 

-----Mensagem original-----
De: museum-bounces@ci.uc.pt [mailto:museum-bounces@ci.uc.pt] Em nome de MNArqueologia/Director - Luis Raposo
Enviada: quinta-feira, 19 de Novembro de 2009 12:06
Para: 'ARCHPORT'; MUSEUM
Assunto: Re: [Museum]FW: [Archport] Inscrições romanas pintadas. Será sério?

A questão da “autenticidade” do património, e especialmente do património arqueológico, é de facto complexa.

Trata-se de um tema que me tem interessado particularmente, tanto por questões teóricas, como por questões práticas. Às vezes bem práticas e bem angustiantes, como bem sabe quem convive com problemas de restauro no dia-a-dia de um museu. Pessoalmente encontro-me repetidas vezes em desacordo com colegas conservadores porque tenho da percepção da peça arqueológica o olhar epistemológico do arqueólogo. Não é nem melhor, nem pior do que o dos outros; é simplesmente o meu e o da disciplina em que me situo; mas tem de ser negociado com o dos outros, porque viver em sociedade é viver em sistema de negociação permanente.

Na troca de comentários anteriores, sob a epígrafe que continua a encimar mais este, optei intencionalmente por não comentar a questão concreta colocada (de forma algo infeliz como ele próprio depois reconheceu) pelo meu amigo Joaquim Baptista, de quem guardo gratas memórias.

Mas, descontados os excessos, percebo a perplexidade dele; assim como percebo os argumentos sensatos que mais tarde invocou (podem / devem reorganizar-se museus, valorizar-se monumentos, etc. sem o incitamento à participação activa das comunidades locais e sem ter em conta as suas expectativas, por cândidas que sejam ?).

Não me posso pronunciar sobre as opções concretas tomadas na Idanha, porque desconheço o percurso seguido e os objectivos visados. De resto, sendo um dos intervenientes o José d’Encarnação, isso constitui à partida garantia de reflexão séria e ponderada.

A minha posição, por defeito talvez, tem sido sempre, e continua a ser a de desconfiar de posturas que tenham por base a tentativa de fazer regressar as peças aos seus estados originais.

Uma peça arqueológica, ou um sítio arqueológico, são, como dizia Lewis Binford, uma realidade do presente. Tal como uma pessoa é aquilo que é em cada fase da sua vida. E o princípio mais geral deverá ser, quanto a mim, o de preservar as coisas tal como elas chegaram até nós.

Mas não entendo este princípio de forma absoluta. Os vestígios arqueológicos podem e devem servir muitas apropriações contemporâneas, algumas das quais, as mais patrimonialistas, poderão conduzir a reconstituições pesadas, guiadas pela procura do Graal, quer dizer, pelo regresso ao “estado original”.

Trata-se de uma demanda algo ingénua; mas não o é menos do que a pretender que a ruína ou o resto arqueológico são “autênticos”.

Enfim, a problemática em referência é extremamente complexa e pode haver, diria mesmo que há, lugar para todas as abordagens. Desde que reflectidas, conscientemente assumidas e socialmente suportadas.

Dá-se o caso de estar actualmente a finalizar uma comunicação sobre a matéria.

Da ampla documentação disponível retiro abaixo apenas uma imagem que nos mostra o actual e o original (cientificamente inferido, com todo o rigor) de uma mesma peça grega. Estaremos nós dispostos nos nossos museus a fazer regressar os nossos objectos às suas respectivas purezas originais ?

Incluo também as conclusões gerais da minha comunicação em referência no desejo de que possam melhor explicitar o meu pensamento sobre estas tão complexas matérias.

 

 

A autenticidade em arqueologia: um terreno de compromissos

 

 

Conclusões:

 

A percepção social de qualquer ruína, maxime de qualquer vestígio arqueológico, constitui sempre um compromisso entre “autenticidade” (original) e “restauro” (moderno), sendo que ambos contêm um componente de recriação contemporânea.

 

Existem tendencialmente duas vias de aproximação à ruína:

 

-a da mínima intervenção (no limite, o ruinismo de John Ruskin)

 

-a da máxima intervenção (no limite, a reconstrução total e ideal de Viollet-le-Duc)

 

O favorecimento de uma ou outra opção resulta do ambiente social em cada época.

 

A conservação / patrimonialização não constitui a única via de utilização social dos bens arqueológicos. Entendidos como fontes de conhecimento, estão sujeitos à metodologia arqueológica, que muitas vezes é destrutiva.

 

Em termos patrimonialistas, mantêm-se por enquanto válidos os principais gerais e as diferentes modalidades de intervenção recomendadas pelas sucessivas cartas sobre restauro.

 

O recurso às diferentes modalidades de intervenção recomendadas depende muito de cada situação concreta tanto no plano técnico como sobretudo no plano político em sentido lato (o uso que a polis entende fazer da ruína).

 

O princípios da “mínima intervenção” é um dos mais sedimentados na teoria patrimonialistas da 2ª metade do século XX. Mas assiste-se hoje a um retorno a concepções de intervenção muito pesadas, já não por opção política de afirmação do Estado napoleónico central (como no tempo de Viollet-le-Duc), mas por rendição às “forças do mercado”, especialmente ao turismo de massas e à sociedade do espectáculo (a chamada “cultura dos eventos”).

 

 

 

 


De: museum-bounces@ci.uc.pt [mailto:museum-bounces@ci.uc.pt] Em nome de Francisco Maduro-Dias
Enviada: quarta-feira, 18 de Novembro de 2009 13:10
Para: museum@ci.uc.pt
Assunto: [Museum] FW: [Archport] Inscrições romanas pintadas. Será sério?

 

 

 


 

Este é apenas um comentário, sem toda a profundidade analítica que o tema mereceria, mas, mesmo assim, aqui vai:

Gostaria de salientar aqui o modo como uma "eterna", digamos assim, questiúncula entre museólogos e conservadores/restauradores foi resolvida e ultrapassada.

De facto, tende-se a esquecer, por vezes, que o papel fundamental de um museu passa pela sua relação com diversos e variados públicos e interesses.

Sem peças o museu não poderá existir, mas  sem comunicação também não é museu. É armazém de possível e provável património cultural envolvido em teias de aranha.

Ora, se é facto que, alterando peças, pode-se estar a alterar os suportes de memória e de investigação, uma intervenção cuidada como esta é fundamental, em benefício dessa mesma memória e investigação.

Aliás, noutro contexto e por outro lado, a ideia da "magnífica brancura clássica" é um conceito romântico do XIX mas não era assim na antiguidade mediterrânica clássica...

Mas essa magnífica brancura acabou também por se tornar um conceito que igualmente merecerá suporte de memória...

Enfim, gostei de ler e saber que ainda há museólogos neste País.

 

Obrigado

 

Francisco R. Maduro-Dias

 


De: museum-bounces@ci.uc.pt [mailto:museum-bounces@ci.uc.pt] Em nome de Isabel Luna
Enviada: quarta-feira, 18 de Novembro de 2009 0:00
Para: museum@ci.uc.pt
Assunto: Re: [Museum] [Archport] Inscrições romanas pintadas. Será sério?

            A propósito desta questão, refiro o exemplo do Museu Municipal Leonel Trindade, em Torres Vedras. Algumas das epígrafes romanas em exposição foram "avivadas", há mais de uma década, através da sua pintura a vermelho "pompeiano".

Sabia-se que muitas inscrições romanas eram pintadas, para uma boa visualização do seu texto, e conheciam-se os valores de autenticidade postulados pelos critérios de conservação patrimonial internacionalmente reconhecidos, com que esta prática poderia colidir. No entanto, algumas das peças torrienses eram de tal modo ilegíveis, que inviabilizavam o desempenho do seu papel museológico fundamental, na comunicação com os visitantes.

A eventual pintura de inscrições deve ser analisada casuisticamente, devendo apenas ser assumida quando as peças não são legíveis de outra forma e quando se encontram em determinados contextos museológicos ou pedagógicos, como é o caso de Idanha a Velha. Mas mesmo nestes casos, é necessário garantir, de acordo com a análise individualizada das peças, que toda a intervenção é passível de total reversibilidade. O que implica, para além de técnicas de intervenção apropriadas (utilizando produtos isoladores) que as epígrafes possuam adequadas condições intrínsecas (não pintámos peças em arenito) e se encontrem em ambientes perfeitamente controlados.

Em Torres Vedras contámos com o apoio técnico do Museu de Conímbriga, ponderando sempre as vantagens e desvantagens do procedimento. Apesar de uma ou duas vozes discordantes, o processo foi praticamente pacífico.

 

Isabel Luna

 

 

To :   "archport" <archport@ci.uc.pt>

Subject :   Re: [Archport] Inscrições romanas pintadas. Será sério?

From :   José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>

Date :   Mon, 9 Nov 2009 15:14:05 -0000


    Aproveito para responder de imediato a Joaquim Baptista, que, além do adjectivo «pintadas», usa no seu blogue a curiosa expressão «epigrafia travestada», seguramente inspirado em célebre frase que correu pelos noticiários no final da anterior legislatura.

    E apresso-me a responder, porque sou eu um dos responsáveis (se não mesmo o principal responsável) pela 'pintura' daquelas epígrafes que se mostram no Arquivo Epigráfico de Idanha-a-Velha e que J. Baptista mostra no seu blogue. Por outro lado, permita-se-me que o faça através da lista, porque o meu interlocutor assim o decidiu fazer - e é justo que toda a comunidade da archport saiba a opinião do «outro lado».

Comenta Joaquim Baptista:

 

Como, se calhar não tinham mais que fazer, resolveram pintar lápides em óptimo estado de conservação. No entanto votaram aos elementos mais de uma centena de epigrafes. Não dá para entender. Mas nem é para entender. Estamos perante sumidades que não aceitam qualquer contributo, estão acima do comum mortal. Mas são pagos com os nossos impostos. O que para nós deve ser considerada uma honra. Só neste país...

 

Como calcula, temos (felizmente!) muito mais que fazer e a decisão de pintar algumas das epígrafes deriva do facto de, em meu entender e no entender de muitos epigrafistas, a maior parte - se não a totalidade - das epígrafes romanas terem sido, originalmente, pintadas, como hoje se pintam as inscrições para mais fácil ser a leitura. Foi uma opção, pensada, meditada - que bem sabíamos que poderia causar polémica. Desculpe se, de facto, não pedimos a sua opinião; mas, como saberá de anteriores contactos que temos tido, não me considero (nem sou!) uma "sumidade" nem creio estar «acima do comum mortal».

Quanto à questão de, provisoriamente, algumas epígrafes terem ficado ao ar livre, sujeitas às intempéries, isso deve-se, naturalmente, ao facto de ainda não haver espaço para as guardar. Em todo o caso, Joaquim Baptista, poderá dar uma saltada ao Museu das Termas em Roma ou mesmo à cidade romana de Óstia ou ao Museu do Vaticano - e verá que, também aí, se deixaram muitas inscrições «votadas aos elementos» (para usar da sua expressão). Por acaso, já pensou que, afinal, a maior parte dessas pedras (quer monumentais quer funerárias ou votivas) foram pensadas justamente para estarem ao ar livre?

Finalmente, se sou pago com os seus impostos, a honra é minha: bem haja!

 

                                                                                José d'Encarnação

 

 


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