Caro professor, De: archport-bounces@ci.uc.pt Para: ARCHPORT Enviada em: Tue Mar 16 12:09:08 2010 Assunto: Re: [Archport] Res: Re: Fnac Meu caro Paulo Monteiro,
na verdade, a conversa não era consigo,
mas com o Jorge Pinho e só apareceu na ARCHPORT em resposta a um texto que ele
publicou. Não costumo debater o indebatível, nem responder a intervenções
transversais. Mas envio-lhe uma excelente história em resposta à única passagem
interessante do seu mail, «...a noite das facas longas...». Se sabe bem do que
se trata, sabe também como acabou. E, para dizer (muito) bem de alguém,
recomendo-lhe que assine esta magnífica série de histórias de que esta é
exemplo.
Cumprimentos
O Flautista de
Hamelin
Certamente nunca ouviram falar de Hamelin. Não admira.
Este nome, de facto, só é conhecido por
aqueles que já sabem a lenda do flautista mágico. E como ainda agora deste
início à leitura desta história suponho que o nome «Hamelin» não te diga nada.
Por isso, escuta com atenção.
Hamelin é uma cidade.
Não tão grande como a vizinha Hanôver. No entanto, é um pouco maior do que uma
aldeia. Possui uma bela muralha sobre a qual trepa a hera viçosa, uma catedral
com altos pináculos de pedra trabalhada com grande detalhe, e um magnífico
palácio municipal, também chamado «o palácio do relógio», porque, bem no centro
da sua fachada, se pode admirar um enorme relógio redondo, cujos ponteiros e
números são de ouro puro.
A sul da cidade passa um rio com uma corrente serena e
majestosa: o Veser, nas margens do qual os cidadãos costumam passear nos dias de
festa, entre altíssimos choupos.
Querem um sítio mais agradável do que este para viver?
No entanto, quando esta história começa – há mais de seis séculos – os habitantes de
Hamelin estavam desesperados. E porquê? A resposta é esta: porque a cidade tinha
sido invadida pelos ratos.
Os ratos desde sempre lá tinham estado e sempre lá haviam de estar. Enchiam as caves, os esgotos
e os subterrâneos. Mas, como tinham o bom gosto de se manterem escondidos, não
se dava pela sua presença. E que diriam vocês se, de repente, os ratos – ratos
grandes, ratos de esgoto e ratos do campo, ratos cinzentos e ratos de água, em
suma, todos os ratos possíveis e imaginários – se fartassem de estar escondidos
e viessem, esfomeados, ao ataque? Foi o que aconteceu em Hamelin. Os ratos
encheram--se de ousadia, saíram dos seus escuros esconderijos e invadiram tudo.
Assaltavam os cães e matavam os gatos, entravam nos berços e mordiam as
crianças, comiam o queijo dos caldeirões onde estava o coalho, lambiam a sopa
nas conchas das cozinhas, abriam os barris dos arenques salgados e faziam ninhos
nos chapéus. A cidade fora inv adida por um estranho ruído que cobria qualquer
outro som. As paredes das casas vibravam desde os alicerces e em toda a sua área
tremiam. Era uma mistura de apitos agudos, de guinchos, de chamamentos. Um
roçar, um espernear, um ranger contínuo que fazia dores de cabeça.
Ao fim de uma semana as pessoas já não podiam mais. Os
valentes habitantes de Hamelin, impacientes, começaram a dizer:
– Mas afinal por que é
que a Câmara Municipal não intervém? Eh! Bonito serviço! Temos um presidente da
Câmara preguiçoso, uma assembleia que dá vontade de rir. E pensar que viajam com
fatos forrados de arminho, que comem e bebem à nossa conta. Agora
basta!
E dirigiram-se em conjunto ao palácio do município. Sim,
aquele mesmo, o do relógio.
Era dia de sessão. Na sala do Conselho não faltava
ninguém: nem o presidente da Câmara – um tipo
pequeno mas gordíssimo, com a pele de tal forma esticada que parecia poder
rebentar de um momento para o outro, e com uns grandes olhos de carneiro mal
morto, sobre os quais as pálpebras caíam como os estores de uma loja à hora de
fechar – nem os membros da assembleia. Estes últimos tinham o mesmo aspecto bem
alimentado do presidente, o mesmo ar meio adormecido de quem engana, de quem vê
as moscas a voar, de quem coça as barrigas das pernas, de quem faz desenhos na
acta da assembleia. Em suma, um triste espectáculo.
– Parece que estou a
ouvir qualquer coisa... um ruído... barulho na praça... – disse o
presidente.
Levantou-se pesadamente do seu cadeirão e abriu um das janelas da sala. Melhor seria que o não
tivesse feito. Mal assomou à janela, vieram da multidão, não apenas assobios,
vaias, ofensas e pragas, como também uma intensa chuvada de frutos, de ovos
estragados, de hortaliças. Um verdadeiro dilúvio!
– Basta, velhos gordalhaços! – ouvia-se gritar.
– Têm de encontrar uma solução. Pensam que os
elegemos para mandriarem de manhã à noite? Arranjem uma solução ou, então,
expulsá-los-emos daí!
Aterrado com aquela espécie de revolução, o presidente fechou a porta o mais rápido que lhe foi
possível, mas não o suficiente para evitar que um chorrilho de maçãs podres se
fosse esborrachar nos bancos dos conselheiros.
– Ai de mim, senhores! – exclamou, então, o gordo homenzinho. – Era capaz de vender este uniforme
por dez tostões, acreditem! Ah! Se eu pudesse estar a milhas daqui! «Digam,
façam...» É fácil ordenar a uma pessoa que puxe pela cabeça. Mas que havemos de
inventar agora? Tenho uma enorme dor de cabeça... E depois... E depois é quase
meio-dia, já estou a sentir um bocadinho de fome. E agora,
senhores?
Naquele preciso instante ouviu-se um estranho rumor,
proveniente da porta da entrada. Parecia um esfregar contínuo e abafado.
– Quem é? Serão os
ratos? Quem quer que seja, entre!
A porta entreabriu-se e, na sala do Conselho, entrou a
personagem mais extraordinária que já se viu em Hamelin desde o ano da sua
fundação. Vestia um manto longuíssimo, dividido em dois, metade amarelo e metade
encarnado. A sua estatura era alta, magra e seca. Tinha os olhos azuis e
penetrantes como alfinetes, a cabeleira longa e fina, encarnado-escura. No seu
rosto, sem barba nem bigode, exibia um estranho sorriso.
– Por Deus! – exclamou
um conselheiro. – Mas quem é este? Um bobo que escapou da feira de Hanôver?
– A mim – acrescentou
um outro – lembra-me a figura que fará o meu bisavô João Joaquim quando, no dia
do juízo, ressuscitar do seu túmulo frio.
O homem dirigiu-se lentamente para as cadeiras do Conselho
e disse:
– Que vossas
Excelências se dignem escutar-me. O acaso quis que eu fosse dotado de um poder
mágico. Por esse meio posso atrair todas as criaturas que existem na terra. E
quando digo «todas», são mesmo todas: todos os seres que rastejam, que voam, que
nadam e que correm, das toupeiras aos sapos, dos leitões às víboras. As pessoas
chamam-me «o Flautista Mágico»...
Chegado a este ponto, o estranho indivíduo deteve-se por
um instante, virando o seu olhar para os conselheiros. Sentindo mal-estar sob
aquele olhar penetrante, que parecia atravessar-lhes os corpos maciços, os
conselheiros baixaram as cabeças para verem o que o flautista trazia pendurado
numa faixa amarela e encarnada, tal como o manto: uma flauta, longa e fina. As
mãos do dono, também elas longas e finas, acariciavam-na com gestos ágeis e
nervosos. Enquanto percorriam os furos do instrumento, os dedos pareciam
impacientes, por lhe arrebatarem, quem sabe, uma melodia extraordinária...
O flautista continuou:
– Neste mês de Junho,
na Tartária, libertei o Grande Khan do enorme enxame de moscas que incomodava a
população. Libertei a região de Nizam, na Índia, de um terrível bando de
vampiros. E no ano passado, o califa de Bagdade, vendo o seu reino devastado por
uma praga de gafanhotos, mandou-me chamar. Agora, se quiserem, vão até lá e
vejam se encontram um gafanhoto, num raio de cem milhas! Naturalmente –
recomeçou depois de uma breve pausa – cada coisa tem o seu preço. Se eu libertar
a vossa cidade dos ratos dão-me, digamos, mil florins de ouro?
– Só mil? Mas cinquenta mil é quanto te daremos, sim,
cinquenta mil! – exclamou o presidente com entusiasmo.
– Cinquenta mil, cinquenta mil! – disseram também os
conselheiros.
Sem acrescentar palavra, o flautista deu meia volta e saiu
para a praça. Erguendo a flauta, franziu os lábios, como fazem os músicos
virtuosos. No seu olhar penetrante brilhava uma chama, ora esverdeada, ora
azulada, da cor do fogo quando se lhe deita um punhado de sal. E, antes que o
instrumento tivesse entoado três notas, ao longe começou a ouvir-se um murmúrio,
como se um exército marchasse a grande distância. Depois, o ribombar
transformou-se num estrondo poderoso, que sacudia as casas e as
estradas.
Os ratos! Os ratos saíam! Ratos grandes, ratinhos
minúsculos, ratos magros como anchovas, ratos robustos como porcos, ratos
castanhos, ratos pretos, ratos cinzentos, ratos ruivos, ratos pomposos marchando
compassadamente… ratos jovens e vivos, pais, mães, tios, primos… abanavam os
rabos, endireitavam os bigodes e marchavam. Vinham em famílias, em grupos, em
pelotões, em multidões, em exércitos.
E todos seguiam o flautista.
O homem avançava de rua em rua sem se voltar para trás,
absorto na sua música. E os ratos, atrás, correndo, dançando, arrastando-se uns
aos outros. Quando, enfim, o flautista saiu pela porta sul, estava a poucos
passos do rio Veser, e aí ficou parado, mas a
enorme multidão que o seguia não. Era um espectáculo extraordinário ver aquela
quantidade enorme de ratos a precipitar-se, de mergulho, no rio. A corrente do
Veser fervilhava de patas, de rabos, de bigodes, de dorsos. Em poucos minutos,
em Hamelin, não havia nem um daqueles invasores!
Que é que tinha
acontecido exactamente? Parecia que o único a escapar daquela matança, um gordo
rato de água, contou, mais tarde, a alguns amigos seus de Hanôver, onde se tinha
refugiado:
– As primeiras notas da flauta pareciam o rumor de um saboroso osso de porco a ser raspado. Logo
de seguida, o de maçãs maduras, postas sobre a prensa para se fazer sidra;
depois, um chio como o das tinas de picles a abrirem-se, como um armário cheio
de marmelada a entreabrir-se ou como o de rolhas de garrafões de óleo quando são
destampados. Parecia que uma voz celestial me dizia: «Regozijem-se, bravos
ratos! Ruminem, trinquem, roam, devorem! Eis tudo junto e de uma vez:
pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar!» E quando me estava a ver diante de um
barril de açúcar branco, cujo conteúdo brilhava como a lua cheia, dei
comigo, de repente, nas profundas águas do Veser a fazer tudo para não me
afogar.
Mas voltemos a Hamelin.
Os habitantes da cidade pareciam loucos: riam, dançavam, saltavam. Alguns
precipitaram-se para o campanário e começaram a tocar o sino para a festa,
outros abriram pipas da melhor cerveja e brindaram com canecas que, de tão
grandes, pareciam baldes. Enfim, uma alegria nunca antes vista! E o presidente?
Ora, o gordalhão preguiçoso comandava e fazia alarido:
– Vamos! – gritava. –
Ponham tábuas a tapar os ninhos! Fechem até o buraco mais pequeno. Que dos ratos
não fique nem o rasto!
De repente, eis que aparece na praça do mercado
o flautista. Aproximou-se do presidente e dos
seus conselheiros e disse:
– Sim, sim, está tudo
bem, mas primeiro, por favor, eu queria os meus mil florins...
– Mil
florins?
O presidente perdeu as boas cores que tinha, empalideceu,
e os conselheiros, de repente silenciosos, olhavam fixamente para ele, como se o
flautista não existisse. Haviam de pagar mil
florins àquele vagabundo do manto encarnado e amarelo, quando o vinho do Reno
custava esse dinheiro? Que restaria para os senhores da assembleia poderem
festejar condignamente o acontecimento?
– Bom homem – disse,
por fim, o presidente – a praga dos ratos é agora só uma recordação. Os ratos
nunca mais hão-de voltar. Claro que queremos recompensar-te. Mas, mil florins!
Repara que era uma brincadeira. Portanto, toma estes cinquenta florins, bebe à
nossa saúde e vai com Deus!
A cara do flautista ficou negra como o carvão. E
disse:
– Não foi brincadeira nenhuma, caros senhores!
À hora das refeições sou hóspede do califa de
Bagdade, ele sim, é uma pessoa reconhecida, e não tenho um minuto a perder.
Avarentos e ingratos como são, não se iludam que eu lhes faça um desconto. E
lembrem-
-se: quem se comporta comigo deste modo, arrisca-se a que eu comece a tocar a flauta com intenções bem diferentes. – Como!? – gritou o
presidente. – Como te atreves, seu vadio horroroso? Quem és tu? Pensas que
impressionas alguém, com essa flauta inútil e esse fato de bobo? Vá, vá, toca a
tua bela flauta até ela se partir.
Sem acrescentar uma palavra, o flautista voltou-se, colocando, de novo, a sua flauta
nos lábios. Começou a caminhar e, antes que tivesse entoado três notas, três
notas apenas, um alegre murmúrio percorreu a cidade de Hamelin. Eram pezinhos
que avançavam velozes, tamancos que ressoavam no empedrado, mãos que aplaudiam,
vozes de crianças que falavam alegremente. Todos os meninos e meninas da cidade,
de faces rosadas, os olhos cintilantes e os dentes brancos como pérolas, seguiam
em bando, rindo alegremente, a música do flautista.
Ao ver isto, o
presidente emudeceu e os membros da assembleia ficaram quietos, imóveis como
pedras, de espanto. Entretanto, o flautista percorreu a rua principal e
encaminhou-se para o Weser, levando atrás de si todas as crianças de Hamelin. E
já as pessoas choravam e arrancavam os cabelos, acreditando que os filhos teriam
o mesmo fim que os ratos encantados, quando o homem vestido de amarelo e
encarnado mudou de rumo, para oeste, em direcção à colina de Koppelberg, que
domina a cidade.
Então, todos soltaram um suspiro de alívio:
– Vai parar, vão ver! –
diziam. – Não pode escalar o Koppelberg...
Mas eis que, chegado ao sopé do monte, o alegre cortejo
parou um instante. Um enorme portal se abriu de par em par, na base da colina,
engolindo o flautista e o seu séquito e fechando-se quando a ultima criança o
atravessou.
Dissemos «a última»? Não, desculpem, enganámo-nos. Uma
daquelas crianças ficou para trás. Regressou à cidade a chorar e disse à mãe que
a abraçava:
– Ah! O que eu perdi!
Olha, o flautista estava a levar-nos para o País da Felicidade. Lá as águas
jorram límpidas, as flores têm cores maravilhosas, os pardais são mais
sarapintados que os pavões, as abelhas não têm ferrão, os cavalos têm asas. Ai
de mim! Como sou infeliz!
Ouvindo aquelas palavras, muitos se lembraram das palavras
de Jesus: «É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que um
rico entrar no reino dos Céus». Todos se arrependeram da avareza que tinham
mostrado. O presidente enviou mensageiros para Norte e para Sul, para Oriente e
para Ocidente, mas em vão. Nunca mais se encontrou o rasto, nem do
flautista, nem das crianças de Hamelin. E, em memória do terrível acontecimento,
a partir daquele dia, nos documentos oficiais de Hamelin, depois da data, podia
ler-se: «Mas recordamos tudo o que aconteceu no dia vinte e dois de Julho de
1376». E não só. Em frente ao local onde se abrira o portal mágico, o município
mandou erigir uma coluna e quem hoje visita a catedral de Hamelin pode ver nos
seus vitrais a história do flautista mágico.
Mas, afinal, que é que aconteceu às crianças encantadas?
Não se sabe. Porém, não podemos deixar de dizer que, nos montes da Transilvânia,
existe uma aldeia de estrangeiros. São altos, louros e corados. Os seus vizinhos
contam que os seus antepassados eram provenientes de uma cidade longínqua
chamada Hamelin, perto de Hanôver. Mas não sabem explicar como e porque é que
chegaram ali, à remota Transilvânia...
Talvez nesta história haja qualquer coisa para aprender.
A minha opinião é que devemos pagar as nossas
dívidas a todos, especialmente ao flautista. E, se alguém tocar flauta para nos
libertar dos ratos, depois de lhe termos prometido alguma coisa, é conveniente
mantermos a palavra dada.
Robert Browning
Os mais belos contos do mundo
Porto, Civilização Editora, 1994
______________________________________________________
Caros leitores,
O Projecto intitulado Clube de Contadores de Histórias, nascido em 2006 na
Escola Secundária Daniel Faria – Baltar, tem vindo, ao longo dos anos, a
difundir-se de uma forma significativa, não só em Portugal, mas também no Brasil
e nos países africanos de expressão portuguesa. No sentido de assegurar a
continuidade de referido clube, foi constituída uma equipa pedagógica, formada
por professores de vários grupos disciplinares e provenientes de diversos
estabelecimentos de ensino, que tomarão a seu cargo a selecção, preparação e
envio de uma história semanal por correio electrónico, tal como habitualmente
tem vindo a ser feito.
Esperando que o projecto continue a merecer a melhor atenção por parte do
público leitor, despede-se com os melhores cumprimentos,
A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
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