Núcleo arqueológico do Castelo de São Jorge
apresentado
Uma viagem por três Lisboas e muitos séculos faz-se em
meia dúzia de passos
18.03.2010 Público, por Alexandra Prado Coelho
Aqui – e a arqueóloga Ana Gomes aponta para a
nossa esquerda – era a zona da cozinha, onde foi encontrada uma área de
fogo e cerâmica fracturada. Do outro lado, ficavam “as latrinas, uns
buracos no chão ligados a um sistema de esgotos”. Numa divisão mais à
frente foram encontradas duas rocas. O que seria? Talvez um harém, brinca Ana
Gomes. Estamos num pátio interior de uma casa islâmica. Mas estamos também
entre as muralhas do Castelo de São Jorge. O núcleo arqueológico foi hoje
apresentado.
O
núcleo arqueológico do castelo, que começou a ser escavado em 1996 quando se
pensou fazer ali um parque de estacionamento, abriu hoje com pompa e
circunstância – uma performance da Companhia de Ópera do Castelo,
discurso do presidente da câmara, António Costa a falar da Lisboa
“encruzilhada de culturas”, outro discurso do arquitecto João Luís
Carrilho da Graça, responsável pelo projecto, embaixadores de países islâmicos,
chá e frutos secos, como se comeriam na época em que estas casas eram
habitadas.
Este não é um núcleo arqueológico comum. “Em Lisboa não há nada
semelhante”, garante Ana Gomes, que, juntamente com Alexandra Gaspar, é a
responsável pelas escavações. “Estamos num espaço urbano. Não seria
crível que fôssemos encontrar casas com 200 metros de área, ainda com pinturas
e pavimentos.”
Quando os trabalhos começaram sabiam que era provável aparecerem ruínas do
Palácio dos Condes de Santiago (sécs. XV-XVIII, que ruiu com o terramoto de
1755) e que se sabia ter sido construído sobre o Paço dos Bispos (sécs. XII a
XV). “Tudo isto estava metido na terra até aqui” – Ana
levanta o braço apontando bem acima das nossas cabeças. De facto, lá estava o
palácio, mas rapidamente começaram a aparecer vestígios, primeiro de um muro da
época islâmica e depois das ruínas de duas grandes casas. Tão bem conservadas
que ainda mantêm estuques pintados e decorados com motivos geométricos e com o
chamado “cordão da felicidade”.
Mas escavaram mais (noutro ponto) e o que surgiu foram vestígios de habitações
da Idade do Ferro (do século VII a.C. ao século III a.C.): o que se pensa ser
uma cozinha, com uma área de fogo e restos de panelas, potes, taças e ânforas
(que podem ser vistos no núcleo museológico, situado também dentro das muralhas
do castelo). Existem, portanto, vestígios de três épocas distintas.
Quando conheceu as escavações, Carrilho da Graça lembrou-se das ruínas romanas
de Volubilis, em Marrocos. “Lembro-me de estar lá e pensar que seria
interessante termos ali a materialização de uma daquelas casas. Achei mais
interessante explorar a espacialidade do que fazer o que estava previsto, que
era construir um alpendre para proteger as ruínas.”
Pré-história ali ao lado
É também por isso que este é um núcleo arqueológico especial – porque
aqui arqueologia e arquitectura cruzam-se e, pelo que disseram todos os
envolvidos, foi um cruzamento cheio de tensões, e até de discussões violentas.
Perante o que restava das paredes das casas islâmicas, Carrilho da Graça fê-las
crescer e criou uma casa de paredes brancas, o mais semelhante possível com a
que ali terá existido, deixando-a como que a pairar sobre as ruínas –
“um milagre da levitação das paredes”, disse António Costa.
É por isso que, em vez do esforço de imaginação que geralmente fazemos perante
ruínas, aqui tornamo-nos uns convidados vindos do futuro para entrar na casa
dos nossos antepassados e tentarmos perceber como eles viviam. Temos o pátio
interior, com o jardim central, as várias divisões, e até as pinturas na
parede.
Ao lado, passamos para a pré-história e aí o arquitecto criou uma espécie de
caixa de aço (o mesmo aço que circunda toda a escavação, demarcando-a), com uma
abertura rasgada pela qual podemos espreitar para o fundo (esta é uma escavação
mais profunda). “Havia uma estrutura metálica a conter o terreno em redor
e tinha tal ferocidade que decidi deixá-la aparente”, explica Carrilho da
Graça. O facto de espreitarmos por uma fenda “cria um ambiente de
mistério” que ajuda à cenografia que o arquitecto quis fazer em todo o
espaço.
Por fim, na zona do palácio não era necessário uma protecção como nas outras
duas áreas, pelo que Carrilho da Graça limitou-se a criar uma espécie de tecto
com um espelho que reflecte o chão dos séculos XV e XVI. E assim, debaixo dos
nossos pés, sobre as nossas cabeças, nas paredes à nossa volta, renascem não
uma mas três Lisboas – e a viagem no tempo demora apenas meia dúzia de
passos.
http://www.publico.pt/Cultura/uma-viagem-por-tres-lisboas-e-muitos-seculos-fazse-em-meia-duzia-de-passos_1428321
PAULO ALEXANDRE MONTEIRO
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