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Re: [Archport] Ser arqueólogo ou não

Subject :   Re: [Archport] Ser arqueólogo ou não
Date :   Fri, 19 Mar 2010 02:20:54 +0000

Aqui é que me parece que a criação de uma Ordem quer intervir (e mal). Porque raio é que um arqueólogo tem de ser um "académico, intelectual, cientista cultural, possuidor de uma bagagem histórica e artistica de grande amplitude"? Para mim o arqueólogo tem de ser alguém que saiba adequar um método á realidade que tem diante de si, de forma a extrair o máximo de informação possível, e reproduzir essa informação com uma linguagem simples, clara e coerente, que não tem (nem deve!) de ser conclusiva em termos de intepretação crono-cultural (muito menos com feições de arte literária!).

Dou um exemplo: imagino um arqueólogo que com "um monte de pedras" consegue escrever um livro acerca da reconquista cristã e é reconhecido como um grande especialista na matéria. Nessa mesma escavação  tenho um trabalhador com o curso de cortador de carnes equivalente ao 9º ano, que se interroga como saberemos nós arqueólogos que aquilo foi mesmo uma muralha que caiu. O dito arqueólogo não pega num colherim, não faz um desenho, apenas tira fotografias panorâmicas da escavação e reúne-se com outros responsáveis, no fim escreve uma peça literária de excelência. O trabalhador ou técnico consegue reconhecer impecávelmente as UE's, a sua relação, onde pode usar a picareta, onde deve usar o pincel, as caracteristicas do solo que devem ser registadas, as variações que são insignificantes para a interpretação estratigráfica, distingue claramente o tipo de material que aparece no nível x do nível y. Pode não ser o melhor exemplo, mas para mim, o trabalhador tem um espírito ciêntifico muito mais apurado do que muitos arqueólogos que grassam por este país. Aliás, a informação produzida pelo técnico é crucial para qualquer investigação futura, enquanto aquela que foi elaborada pelo arqueólogo morrerá mais cedo ou mais tarde, como morrem todas as teorias!

Qual dos dois deverá ser então reconhecido e creditado como arqueólogo? O "homem ou mulher dos registos minuciosos que tem o 9º ano da escola profissional como cortador de carnes mas uma experiência inquestionável a "ler" a terra? Ou o "contador de histórias" que até é licenciado e publica livros com base na informação produzida pelos técnicos? Esse, julgo eu, é o papel dos historiadores...

Esta é uma questão pertinente, que alguns pensarão até ser "lateral" á questão da Ordem. Mas se vamos discutir uma Associação Profissional, talvez seja boa ideia algumas pessoas refletirem antes demais o que será que entendem que é um "arqueólogo?".

Para mim tenho que um arqueólogo não é, nem nunca será, uma pessoa criativa, com capacidades de escrita cativantes, discurso claro e convicto, e memória extraordinária quanto á bibliografia que vai lendo. É antes um ciêntista, que vê na medida, peso e forma de um simples termoclasto, a mesma importância que num pedaço de manuscrito do séc. XI, que pretende examinar exaustiva e microscópicamente cerâmicas ou líticos, como fazer uma ecografia a uma múmia egípcia, que regista todas as unidades estratigráficas de um aterro moderno, como um médico legista regista as observações durante uma autópsia. E que no fim de todos esses processos tem a coragem de dizer que não obstante todos os esforços, não é possível adiantar outras conclusões, em vez de magicar acerca de uma grande teoria revolucionária.

Mas talvez seja só eu a pensar dessa maneira em relação ao que é ser arqueólogo

Talvez seja só eu (recibo verde 55€/dia para dirigir acompanhamento para uma das mais prestigiadas empresas de arqueologia do país) que pense, ou melhor, que saiba, que nem Ordem nem Sindicato, mudarão a situação precária em que muitos de nós, jovens arqueólogos nos encontramos!

Chamemos os bois pelos nomes, e reconheçamos esta realidade: o mercado de trabalho ficará saturado, e muitos arqueólogos serão justa ou injustamente excluídos dele (e eu não acredito na seleção natural dos melhores em deterimento dos piores). Hoje em dia existem vários cursos superiores cujos licenciados são aceites pelo Igespar enquanto arqueólogos. Digamos que actualmente existe uma democracia no acesso á carreira de arqueólogo, e uma variedade salutar na formação desses arqueólogos. Mas nós vivemos ainda no país dos feudos, e todos esperam pela oportunidade de estrangular o feudo vizinho. A Ordem é essa oportunidade! Vai-se criar um Crivo, á medida daqueles cujo futuro bastonário for afecto, e aos restantes cursos será dificultada a entrada, serão rotulados como "sendo dificeís de ser aceites pela Ordem", e perderão alunos.

Posto isto, surge a reacção. Para contrapôr a ideia da Ministra (que nem devia saber bem o que estava a dizer!), os futuros possíveis prejudicados pelo surgimento desse Crivo erguem uma bandeira que até nem é nova, tem muitos apoiantes, e até é a meu ver bastante legitíma: não precisamos de Ordem, precisamos sim de um sindicato!

E eu penso com os meus botões: xiça, quando a maioria precisa de uma solução para um problema, surgem ideias, e atrás aparecem logo uns poucos a perfilar-se para conseguirem tirar o melhor partido das oportunidades que essa solução poderá trazer! Mas somos portugueses, está-nos no sangue!

Não teríamos estes problemas se o Igespar tivesse mais poder e mais meios, se fosse mais coerente e rigoroso. Não estariamos nesta situação se os arqueólogos patrões não fizessem orçamentos irrealistas, não fossem gananciosos, se premiassem os arqueólogos profissionais, em vez daqueles cuja ética é semelhante á de um proxeneta de crianças tailandesas. Não nos queixaríamos da situação precária em que nos encontramos se não aceitássemos essas mesmas condições, porque se ninguém as aceitasse, elas teriam obrigatóriamente que mudar (contra mim falo!).

A Ordem não trará nada de novo ao que o Igespar já apresenta. Se o problema é representatividade e discussão, temos a AAP e a APA, inscrevam-se! A ideia do sindicato é legítima mas já é velha, e só trará algo de novo aos arqueólogos que tenham um contrato de trabalho; será impotente e infrutífera em tudo o que extravasar esse âmbito!

A solução terá de ser outra, mais abrangente, e a meu ver, completamente revolucionária em relação á realidade que conhecemos, quer em termos do panorama arqueológico nacional, quer em termos da lógica de mercado capitalista pela qual se regem as actuais sociedades modernas.

E qual será essa solução? Talvez ela passe primeiro que tudo por perceber que o capital gerado pela arqueologia, deve ser usado em beneficio da própria arqueologia, e consequentemente dos arqueólogos. E onde vai afinal parar a maioria do capital gerado pela arqueologia? Bem, não conheço números, mas acredito sériamente que uma boa fatia daquilo que todos nós (enquanto contribuintes) Estado dispendemos directa ou indirectamente na arqueologia, passa invariavelmente não pelo Ministério da Cultura, mas antes pelo Ministério das Obras Públicas!

Exemplos: 1 - a obra é do Estado, concedida á EDI@, adjudicada a milhentos empreiteiros, que contratam milhentas empresas de arqueologia, que contratam verbalmente falsos recibos verdes ao mês, á semana, ás vezes ao dia, e sem pagarem horas extra. 2 - a obra é do Estado, através da Estraditas de Portugal, concedida á AutoEstradas da Cochichina, composta por um consórcio de meia dúzia de grupos económicos, que adjudicam a milhentos empreiteiros, etc,etc,etc.

Denominandores comuns: o Estado (todos nós) paga um preço pelos serviços de arqueologia. Á excepção dos últimos da cadeia (nós arqueólogos) e de raras e louváveis excepções de poucos intermediários, mais ninguém desta cadeia está interessado no objecto arqueológico, bem pelo contrário: a arqueologia serve-lhes para ganharem a sua parte enquanto intermediários, e para receberem a sua bela fatia quando a obra se atrasa.

Nós "arqueologia" precisamos desse intermediário? Claro que não. A haver um intermediário entre o estado e o "produtor" do serviço arqueológico este deverá ser alguém que saiba canalizar o lucro desse intermediação para a própria arqueologia, coisa que uma qualquer entidade ou um empreiteiro de obras públicas nunca fará. Não proponho que se acabem com as empresas de arqueologia, mas uma reformulação da maneira como a arqueologia preventiva está organizada.

Não seria uma boa ideia criar uma instituição pública que gerisse (sim, porque de trabalhos arqueológicos o Igespar não gere, só dá pareceres) todo e qualquer tipo de trabalhos arqueológicos no âmbito da arqueologia preventiva, que fosse directamente financiada pelo estado, contratada pelo estado e/ou por privados (quem necessitar dos serviços), ao invés de contratações, de sub-contratações, de concessões e sub-concessões etc? Esta instituição teria a sua própria equipa polivalente de arqueólogos, que estava sempre pronta para intervenções pontuais, realizando trabalhos de gabinete ou projectos de investigação quando não fosse chamada a essas mesmas situações. As raras verdadeiras empresas de arqueologia portuguesas fazem-no, mas isso tem custos insuportáveis para elas. Por sua vez, seria essa mesma instituição a adjudicar de forma directa os trabalhos ás empresas de arqueologia, permitindo uma calendarização mais adequada para que estas não tivessem necessidade de recorrer a trabalho temporário e precário. Por sua vez, seria essa mesma instituição de arqueologia que teria o controle de orçamentos dos trabalhos arqueológicos, que saberia qual a empresa que num dado momento teria melhores capacidades de realizar determinados trabalhos, quais as empresas e profissionais que deveriam ser premiados. Actualmente, tudo isto é feito de uma forma geral, não por profissionais da arqueologia, mas sim por engenheiros e afins.

É verdade que seria reverter a lógica de mercado, mas sejamos honestos, a lógica de mercado não se deve aplicar na arqueologia preventiva. Os critérios de eleição para o actual "comprador" de serviços de arqueologia preventiva são: 1-orçamento mais baixo. 2-trabalho realizado no menor tempo possível 3-em caso de acompanhamento, empresas ou profissionais que parem menos vezes as máquinas, encontrei menos vestígios possíveis, e não levantem questões metodológicas relativamente á obra. Pergunto-me: algum destes critérios é coincidente com aquilo que deve ser um trabalho arqueológico realizado com método, ética, e profissionalismo? Não! Qual é a lógica de mercado, quando o comprador (engenharia) contenta-se com atum de lata, a nossa indústria (arqueologia) é de caviar, e o regulador (Igespar) acha que o seu papel é dizer que tanto faz atum ou caviar porque é tudo peixe!? Então, já que os critérios do cliente não mudarão, mudemos antes nós de cliente, que seja a arqueologia a servir a própria arqueologia!

Esta instituição seria algo de inovador, e implicaria passar á frente de interesses e lobbies da construção. Mas seria um instrumento de regulação da qualidade e da ecónomia dos serviços da arqueologia, que nunca será conseguido por Ordem, Sindicato, ou Igespar, mesmo que algum, dia conseguissem entrar em sintonia. É uma centralização de poderes dirão alguns, e eu concordarei. Mas olhem para o estado actual e vejam que seria uma centralização dos poderes que hoje em dia estão dispersos pelas empresas de construção, e outras entidades proponentes, sejam públicas ou privadas.

Sei que é uma ideia nova, mas que a meu ver seria um verdadeiro contributo para a arqueologia e para uma grande parte dos profissionais desta área. Não haverão Ordens nem Sindicatos que nos possam valer!

Mas em todo o caso, sábado lá estarei, e apelo a todos os colegas para fazerem o mesmo! Vou sair de Tomar, quem quiser boleia é só contactar!

 

 

André Freitas

Profissional de Arqueologia

(podia assinar Arqueólogo, mas como sei que alguns colegas acham que eu e outros com uma formação não tradicional de arqueologia não o deviamos ser, e não me considero nem mais nem menos do que um técnico, assino antes assim!)

 

----- Mensagem de bananasparatodos@gmail.com ---------
Data: Thu, 18 Mar 2010 19:19:50 -0300
De: bananas bananas <bananasparatodos@gmail.com>
Assunto: Re: [Archport] Ser arqueólogo ou não
Para: archport@ci.uc.pt

Pena que algumas pessoas tenham dificuldades em entender português.

“Um verdadeiro arqueólogo náo é só o técnico de escavação e de prospecção, é
sim um académico, intelectual e cientista social, possuidor de uma bagagem
história e artista de grande amplitude...”


"Artistas de grande amplitude são “coisa que não falta” na Arqueologia em
Portugal!"

Se tivesse percebido o contexto logo percebia que "bagagem histórica e artística" neste contexto significa conhecimento e não criação artística.

Cumprimentos senhor Miguel Duarte de Almeida



----- Fim da mensagem de bananasparatodos@gmail.com -----


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