Na nota
introdutória à corajosa entrevista de Luís Raposo à revista Visão do passado
dia 1 de Abril, regista-se que aquele arqueólogo dirige o Museu Nacional de
Arqueologia há 14 anos mas ali trabalha já há 30. Este dado
cronológico não deixa de ser relevante para a circunstância que está na origem
da entrevista (a pública ameaça de demissão do entrevistado por desacordo
“técnico” em relação a uma decisão “política”) na medida em que a larga
experiência assim demonstrada, não deixará de credibilizar a opinião em causa.
No entanto, aquele algarismo “redondo”, que nos remete directamente para o ano
de 1980, está longe de representar no contexto da Arqueologia portuguesa, uma
simples efeméride individual…
Com efeito, em
meados daquele ano, face a um conturbado período por que estava a passar o
então designado “Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia” (graves conflitos
entre funcionários, encerramento ao público, desaparecimento de importantes
artefactos…), Vasco Pulido Valente, Secretário de Estado da Cultura do Governo
da Aliança Democrática dirigido por
Sá Carneiro, convidara Francisco Alves, o arqueólogo que anos antes fundara
com reconhecida eficácia o Campo Arqueológico de Braga, para reabrir o velho
Museu de Belém e lançar as bases de uma estrutura de gestão da Arqueologia
portuguesa no âmbito do novíssimo Instituto do Património Cultural (o IPPC,
antepassado directo o IPPAR e actual IGESPAR) então em formação. A missão não
era fácil mas Francisco Alves aceitaria o desafio com duas condições prévias:
“carta branca” para constituir uma equipa de “arqueólogos”, numa época em que
a profissão praticamente não existia, e abertura do Governo à criação de
Serviços Regionais de Arqueologia capazes de responderem no terreno às
crescentes exigências que o desenvolvimento do país colocava à arqueologia de
salvamento. Vasco Pulido Valente alinharia, facilitando o destacamento de mais
de uma dezena de professores com prática arqueológica e acrescentando à Lei
Orgânica do IPPC, uma pequena estrutura de arqueologia descentralizada (a
única até à criação do IGESPAR e respectivas direcções regionais) com serviços
regionais em Braga, Coimbra e Évora. Obviamente, tanta “generosidade”, também
teria o seu “preço”… A nova equipa tinha de reabrir o Museu em tempo record
(“antes das eleições presidenciais” que ocorreriam no final desse ano) e com
algo que se “visse”. Definidas e aceites as “regras do jogo”, o grosso da
equipa, entraria no Museu Nacional de Arqueologia apenas no dia 1 de Outubro
de 1980, onde Francisco Alves e alguns colaboradores mais próximos preparavam
já duas grandes exposições para a reabertura do Museu. Tive a sorte de estar
nesse grupo, com outros colegas da minha geração, saídos poucos anos antes das
Faculdades de Letras de Lisboa mas também de Coimbra e do Porto, e
naturalmente entre eles também estava já o actual Director do MNA.
Curiosamente poucos seriam simpatizantes da AD, bem pelo contrário, mas
ninguém se enganara ou fora ao engano – a política era então algo bem mais
transparente - e em Dezembro desse mesmo ano, praticamente nas vésperas do
acidente aéreo que o vitimaria, Sá Carneiro inaugurou no MNA, no que seria o
seu último acto público como 1º Ministro, as duas grandes exposições, “A 2ª
Idade do Ferro no Sul de Portugal” e “Tesouros da Arqueologia Portuguesa”, que
marcariam não só o “renascimento” do Museu de Belém mas também toda uma nova
fase da Arqueologia portuguesa. Convém recordar que o Departamento de
Arqueologia do IPPC que coordenava os respectivos Serviços Regionais,
funcionaria durante alguns anos no próprio Museu, e não apenas por questões de
falta de espaço no Campo Grande ou na Ajuda… Retomando uma tradição que
remontava à fundação do próprio Museu, as suas estruturas (laboratórios de
restauro, armazéns, biblioteca…) e os seus técnicos alargavam a sua
intervenção ao terreno sempre que a salvaguarda do património arqueológico o
exigia. E nessa altura, Departamento de Arqueologia do IPPC e Museu, não
apenas compartilhavam espaços e meios, como muitas vezes integravam projectos
comuns, contribuindo para o desenvolvimento de novas e indispensáveis
estruturas da Arqueologia portuguesa, como a “Arqueologia Subaquática” ou os
“Laboratórios de Investigação Paleoambiental”.
Muita coisa
aconteceu desde então. Depois de uma fase de grande expansão da Arqueologia de
Salvamento promovida directamente pelo Estado, via Serviços Regionais de
Arqueologia, assistiu-se a uma grave “crise de crescimento” no início dos anos
90, provocada pela incapacidade daquele modelo responder às cada vez maiores
exigências de salvaguarda impostas às obras públicas ou privadas. A criação do
IPA, na sequência do caso mediático do Côa, representou o último fôlego de uma
resposta que na Cultura passava pela fragmentação de competências por novas
instituições. Ainda assim, o IPA mais do que uma estrutura nova, representou,
a congregação de pequenas unidades antes dispersas, (algumas delas nascidas no
próprio MNA) funcionando como interface disciplinador entre as obrigações do
Estado nesta matéria e as empresas de arqueologia que nasceram então para dar
resposta às exigências de salvaguarda patrimonial em ambiente de obra. O
Museu, entretanto, voltara-se mais sobre si mesmo, com óbvias vantagens no que
respeita à gestão, estudo e divulgação das suas vastas colecções,
privilegiando o contacto com o público, mesmo com a sua crónica falta de
espaço, através de grandes exposições temáticas, conferências ou visitas de
estudo. E, tirando partido do sítio magnífico em que se localiza, tornar-se-ia
rapidamente num dos mais visitados Museus Nacionais.
Quem esteja,
pois, minimamente a par da história das últimas três décadas do Museu Nacional
de Arqueologia, compreenderá melhor do que ninguém a “angústia” do seu
Director, perante as “perspectivas” que se lhe deparam e os extraordinários
“exemplos” dos recentes processos de “decisão” e “planeamento” associados ao
projecto do Museu dos Coches e dos danos colaterais provocados,
irresponsavelmente, na Arqueologia portuguesa. Apesar da decisão estar tomada
há vários anos pelo Ministério da Economia (?) foi preciso a empresa
construtora começar a derrubar os muros dos edifícios onde o IPA funcionara
durante uma década, para o Ministério da Cultura “acordar” e começar a
procurar “instalações” para os serviços que ali continuavam “teimosamente” a
funcionar. A utilíssima “Biblioteca do Instituto Arqueológico Alemão”,
oferecida ao Estado Português, foi entretanto encaixotada, os arquivos da
Arqueologia Portuguesa, foram para os corredores do Palácio da Ajuda, os
laboratórios (já praticamente sem pessoal) mudaram algures para a calçada da
Ajuda e o valioso espólio e complexo equipamento da Arqueologia Subaquática,
finalmente transitou, há poucas semanas, para o MARL (Mercado Abastecedor da
Região de Lisboa ?) lá para os lados de Camarate.
Penso que é
hoje claro para toda a gente que o Director do Museu não se opõe, bem pelo
contrário, à ideia da mudança para outro espaço com melhores condições (pese
embora a natural frustração de quem há uma década investe em sucessivos
projectos de requalificação do espaço actual), julgo que nem lhe repugnará até
a solução da Cordoaria Nacional, uma vez comprovado que a sua localização não
oferece maiores perigos do que os comuns à zona Ribeirinha em geral e
elaborados os indispensáveis estudos e projectos… Tal solução, poderia até
relocalizar no próprio Museu as estruturas que neste foram fundadas há três
décadas e que hoje se encontram dispersas e moribundas. O que certamente o
assusta e o obriga a tomar, em consciência, a presente posição, são as
decisões precipitadas, tomadas sob o “síndroma” da carambola, ao arrepio de
qualquer arremedo de planeamento. E se no caso das estruturas do exIPA, as
consequências estão já à vista, imagine-se o que aconteceria à Arqueologia
Portuguesa com o desmantelamento precipitado de uma instituição centenária
como o MNA, guardiã de vastas e complexas reservas arqueológicas, cuja
exemplar reorganização e funcionamento, são talvez uma das heranças mais
preciosas do trabalho da equipa de arqueólogos que, pela mão de Vasco Pulido
Valente (imagine-se!) entrou há três décadas naquele
Museu.
António Carlos
Silva