0:00 Quarta feira, 14 de Julho de 2010
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O arqueólogo premiado que Portugal não quis
A história de João Zilhão, um dos dois mais citados, prestigiados e premiados arqueólogos do mundo, explica porque tem Portugal tanta dificuldade em sair da cepa torta. A extraordinária entrevista de Virgílio Azevedo, publicada na "Única" do sábado passado, devia inaugurar um dossiê de governação intitulado: "Causas do Atraso Crónico de Portugal" e ser objeto de reflexão efetiva. Um dossiê destes seria muito mais barato do que a infinidade de estudos que se encomendam para nos consolar ou acalmar - desde o do valor da Língua Portuguesa, que até agora não serviu para mudar nada na política da Língua, às investigações repetidas (e infrutíferas) sobre o funcionamento dos equipamentos culturais, ao recente inquérito sobre o nível de satisfação dos portugueses, que concluiu que somos mais felizes do que julgávamos.
João Zilhão liderou, em 1998, a descoberta do menino do Lapedo, um esqueleto com mais de 25 mil anos que demonstrou ter existido miscigenação entre os chamados Neandertais e os homens modernos. Em janeiro passado, publicou os resultados das suas mais recentes investigações, que provam a existência de adornos e pinturas corporais nos Neandertais da Península Ibérica, o que significa que "eram, do ponto de vista cognitivo, idênticos aos homens modernos". O trabalho de João Zilhão redefine toda a historiografia, porque revela a existência de "uma única espécie humana" desde há dois milhões de anos. Isto é: "A dicotomia Neandertais/ homens modernos é falsa e simplista." Zilhão esteve também à frente do processo de descoberta das gravuras de Foz Coa. Confessa que o seu objetivo, aos 53 anos, com cerca de 15 anos úteis pela frente "se os joelhos funcionarem", é o de esclarecer mais profundamente o modo de vida dos últimos Neandertais e o de "formar equipas novas que possam continuar o meu trabalho". Onde vai João Zilhão formar essas equipas? Não na universidade portuguesa, porque essa rejeitou-o: em 2003, ao mesmo tempo que ganhava um Prémio da Fundação Humboldt para trabalhar um ano na Alemanha numa instituição de investigação à sua escolha, o Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa proibiu-o de fazer provas de agregação: "Os meus colegas deste departamento entenderam que eu não tinha nível científico suficiente para ser promovido", explica o arqueólogo, "o que é ilegal, porque o nível científico está regulamentado por lei, é objetivo". Recorreu e o tribunal deu-lhe razão - mas só em 2009. "Já antes, também de forma ilegal, tinha sido preterido em 2002 na promoção a professor associado e o tribunal deu-me igualmente razão." Como podem os tribunais levar tantos anos a decidir sobre estes casos de injustiça laboral? Zilhão diz que há centenas de exemplos como o seu - não duvido, porque eu própria conheço de perto uma meia dúzia deles. A diferença é que a maior parte deles não chega a tribunal, porque os prejudicados ou fecham a porta do país e não estão para se maçar mais com as invejazinhas imobilizadoras cá do sítio - ou não veem alternativas de trabalho, calam-se e aguentam. A europeização das universidades está já a resolver estes problemas; os jovens mais qualificados desistem de Portugal, país onde o poder da mediocridade instituída é real e passa de gerações em gerações - do mesmo modo que o poder económico se transmite familiarmente, sem atender a competências. Lembro-me sempre do administrador de uma empresa que perguntava, varado com o brilho e a eficiência de uma jovem funcionária: "Quem é esta rapariga, que não é filha de ninguém?" Essa filha de ninguém só conseguiu singrar quando, a duras penas, constituiu a sua própria empresa. E, embora ninguém hoje lhe regateie talento e competência, continua a atravessar dificuldades - porque as castas distribuem encomendas e dinheiros entre si, sem cuidar de ninharias como qualidade ou resultados.
Depois do período no trabalho na Alemanha, o arqueólogo brilhante que Portugal não quis foi receber um prémio a Londres e propuseram-lhe que concorresse a um lugar na Universidade de Bristol, onde está, desde 2005, como professor catedrático, a formar as tais novas gerações de investigadores. A história de João Zilhão é escandalosamente exemplar. A parábola de um país que despreza os seus melhores.
Texto publicado na edição do Expresso de 10 de Julho de 2010
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