[Archport] Viva o Museu do Côa!!!
Caros Amigos:
Tenho assistido com interesse, mas com alguma perplexidade a todo este debate em torno da recente inauguração do Museu do Côa.
Em primeiro lugar, cumpre-me afirmar que só mesmo com o maior regozijo poderemos (e deveremos) encarar este ponto de um processo de há muito iniciado e que, infelizmente, só agora alcançou esta etapa fundamental. Não percebo como é possível esquecer que de aqui, do Côa, partiu a grande renovação da arqueologia portuguesa.
Será talvez um bom momento para reflectirmos sobre o que correu bem e menos bem em todo este processo.
Em primeiro lugar, a paragem da construção da barragem e a opção pela criação do Parque Arqueológico do Côa constituiu uma feliz coincidência (embora efémera) de múltiplos factores. Estava em fim de ciclo o Primeiro-Ministro Cavaco Silva, estava em ascensão no principal partido da oposição um homem culto e consumidor de Cultura (aspecto nada despiciendo) e um homem oriundo do interior do país e, como tal, profundamente conhecedor dos bloqueios próprios desse mesmo interior e com ideias interessantes para a sua superação. Tinha também esse partido, na área da Cultura, aquele que foi, no meu entender, o único verdadeiro Ministro da Cultura que existiu em Portugal (e não me estou a esquecer de ninguém antes e depois de Manuel Maria Carrilho).
Como sou historiador de formação (e provavelmente um pouco mais antigo do que muitos dos leitores deste fórum) começo por lembrar um par de factos, que me parecem relevantes, sobretudo porque espantosamente esquecidos dos nossos jornalistas e “opinion makers”:
1. Antes de se ter encontrado uma única gravura rupestre no Vale do Côa, havia já uma forte movimentação e mesmo um abaixo-assinado internacional contra a construção da barragem, pelo impacte que a mesma poderia ter no Douro vinhateiro, em geral, e na Quinta da Ervamoira, em particular, liderado pela Casa Ramos Pinto:
http://www.fortheloveofport.com/profiles-in-port/ramos-pinto
2. A decisão política de travar a barragem e de pensar uma estratégia global de desenvolvimento para o vale do Côa foi efectivamente lançada e inclusivamente criado um Programa operacional (Procôa) para potenciar de um modo sistémico os recurso locais, em articulação com a sua riqueza arqueológica:
http://naturlink.sapo.pt/article.aspx?menuid=20&cid=1879&bl=1
3. A Classificação do Vale do Côa como Património da Humanidade foi um processo célere decorrente dos sólidos estudos científicos e técnicos então elaborados e não uma acção de lóbi de arqueólogos portugueses (só mesmo um louco poderá supor que os arqueólogos portugueses teriam capacidade para uma tal acção a nível internacional)
http://whc.unesco.org/en/list/866
http://whc.unesco.org/en/news/512
4. O facto de o Vale do Côa ser um dos locais portugueses classificados como Património Cultural da Humanidade é algo que nos deveria encher de orgulho e que constitui (também) um inestimável valor económico.
Posto isto, importa perguntar o que não terá corrido bem no processo Côa - e é evidente que muita coisa não correu bem, os links acima indicados são meramente ilustrativos, mas, em um deles, podemos ler a previsão da tão aguardada abertura do Museu do Côa para 2006…
O que não terá corrido bem:
1. Creio que houve um evidente “adormecimento” do processo Côa, após a criação do PAVC. Os arqueólogos e os responsáveis do Parque não entenderam devidamente o mundo em que vivem e não cuidaram de alimentar regularmente os media com o tema do Vale do Côa – só mesmo a título de exemplo, veja-se como Atapuerca sabe lidar bem com essa necessidade de constantemente mediatizar as realidades arqueológicas…
2. Mas, sobretudo, o que falhou no Côa foi a sociedade civil. Quando se vai a V. N. de Foz Côa não há hotelaria para acolher visitantes, não há restauração abundante e de qualidade, não há outras actividades que permitam potenciar comercialmente o local. Tudo isso não é responsabilidade dos arqueólogos, mas penso que não deverá, em nenhuma circunstância, ser esquecido pelos arqueólogos, porque o fracasso como potenciador do desenvolvimento económico local do PAVC acaba por se reflectir nas actividades, orçamentos e projectos do mesmo.
Quanto ao mais, podem alinhar-se uns quantos argumentos que objectivamente rebatem aqueles que nos media têm sido apresentados.
1. Só há 20000 visitantes no Parque?... E quantos visitantes teria V. N. de Foz Côa se não houvesse o Parque?
2. O valor económico?... Quanto vale um Património e um equipamento capaz de criar emprego e desenvolvimento local numa região deprimida e despovoada do Interior Português, sem outras alternativas visíveis?
3. Alternativas económicas de preclaros especialistas?... De quem?... Do Engenheiro Mira Amaral, estrénuo defensor da barragem, que preconizou, um dia, a utilização maciça do eucaliptal, porque o eucalipto seria o nosso “petróleo verde”?... Poderemos imaginar como estaria hoje o país se tivessem dado ouvidos ao visionário engenheiro.
Já agora, especialista por especialista, prefiro o Michael Porter, que sempre é Professor na Harvard Business School e que, entre outras coisas, definiu os “clusters” da vini-viticultura e do Turismo, como duas das áreas estratégicas para o desenvolvimento económico de Portugal. Como facilmente se compreende dois evidentes potenciais de Foz Côa, do Foz Côa do Parque e Museu, não de Foz Côa com barragem:
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/edicion_impresa/politica/pt/desarrollo/1060967.html
http://www.viniportugal.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=12&Itemid=27
Análise económica é isto, ou seja, trabalhar com um feixe diversificado de variáveis, não é decidir entre fazer barragens ou conservar arte rupestre…
Voltando ao ponto de partida, o que terá falhado então no processo do Côa, se os poderes públicos criaram um Parque, se criaram um Programa de Desenvolvimento Integrado (Procôa) e se agora até inauguraram um Museu?
Claro que o Museu chegou tarde, muito tarde, por ter perdido toda a onda mediática das gravuras do Côa, veja-se como tem evoluído o número de visitantes no local, desde 1996 até hoje…
Falhou, a sociedade civil, particularmente, diria, o sector empresarial do Turismo. Justamente um dos tais “clusters” fundamentais identificados pelo Professor Porter, mas desgraçadamente gerido por gente de pouca visão e ambição. E este sector falha não só no Côa, mas em todo o país, veja-se a polémica suscitada pelo Programa Allgarve (um nome que, em si, é já um verdadeiro manifesto) do presente ano, onde os museus locais estão ausentes:
http://www.publico.pt/Cultura/regionalizacao-do-algarve-comeca-pelos-museus-sem-pedir-licenca-ao-governo_1435171
Sobre a oferta de camas e restauração em V.N. de Foz Côa veja-se o expressivo panorama:
http://viajar.clix.pt/dormir.php?c=142&lg=pt&w=vila_nova_de_foz_coa_hoteis
(cinco unidades, entre as quais um parque de campismo e dois restaurantes!!!... Aqui para nós, se fôssemos turistas de fim de semana com vontade de conhecer as gravuras será que nos sentíamos atraídos por um lugar com esta oferta?)
Falha também, como não poderia deixar de ser, o poder político, incapaz de delinear estratégias coerentes no domínio da Cultura e da sua articulação, por exemplo, som o Sector do Turismo, tal como falhou no incompreensível atraso na criação do Museu, um equipamento indispensável pelas fortes condicionantes de visita ao vale propriamente dito.
Falham em geral as nossas elites ou até mesmo a sociedade no seu todo… Por terem níveis de consumo de produtos culturais incompreensíveis.
Todos nós conhecemos pessoas que não perdem uma (ou mais) ida ao teatro, sempre que vão a Londres, mas que em Portugal não põem os pés numa sala, sabemos também que, por países, Portugal é o segundo lugar de origem dos visitantes do Museo Nacional de Arte Romano, em Mérida, mas os museus portugueses têm os tais números exasperantes.
Os nossos governantes e as nossas elites não são consumidores de cultura e, por isso mesmo, não sentem sequer a necessidade da sua existência, muito menos de a apoiar (o Engº Guterres terá sido a grande excepção destes últimos anos, tal como Durão Barroso, que pouco tempo cá esteve).
Os media são também, neste particular, deploráveis, cada vez mais centrados na pequena intriga política e no mexerico baixo, quando não no mais sórdido sensacionalismo. Sobre a capacidade de informar desses media, basta lembrar que durante anos a fio todos os órgãos de comunicação social falavam, falavam a tornavam a falar das “pinturas rupestres” do Côa. E não deixa de ser curioso como o Vale do Côa suscita tantos ódios acesos entre os chamados "opinion makers"...
Neste cenário adverso, em que populações, mas sobretudo poderes públicos e investidores privados, não sentem necessidade de ter museus, teatros, exposições, livros, etc.; e onde se não pode contar com qualquer efeito positivo de pedagogia cívica dos media, os arqueólogos não podem de todo descurar as acções directas de divulgação e promoção do património arqueológico, sob pena de se confinarem irremediavelmente a um gueto cada vez mais povoado, é certo, mas cada vez mais apertado também.
Neste cenário, em vez de estarmos a discutir detalhes, bem poderíamos cerrar fileiras no aplauso ao Museu do Côa ou, como diria o de há muito falecido camarada Mao Zedong, Que Mil Côas Floresçam na Arqueologia Portuguesa!!!
Carlos Fabião