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[Archport] O museu é o último reduto da não democracia, porque o museu acaba quando o povo puder entrar livremente no museu...

Subject :   [Archport] O museu é o último reduto da não democracia, porque o museu acaba quando o povo puder entrar livremente no museu...
From :   "Ricardo Charters d'Azevedo" <ricardo.charters@gmail.com>
Date :   Tue, 17 May 2011 10:32:41 +0100

No Público de hoje (17.5.2011) um belo artigo de Pedro Portugal, que
facilitará  reflexão de muitos:

"A história, os museus e os insignificantes imperturbáveis de Pedro Portugal

Há 200 anos que os museus guardam coisas. Todas essas coisas ganharam ou
perderam valor ao longo do tempo, mas todas elas adquiriram um valor
histórico (ou de antiguidade). 0 museu garante o valor e a importância das
coisas porque as guarda para a eternidade, assegurando que não são vendidas,
roubadas ou trocadas. Tudo o que foi e é importante para a civilização está
nos museus. As coisas que estão guardadas nos museus estão registadas,
conservadas, preservadas, arrumadas, catalogadas, etiquetadas,
referenciadas, indexadas, arquivadas, embaladas, engavetadas, naturalizadas,
listadas, inventariadas, congeladas ou armazenadas. Todas as coisas que
estão nos museus não podem ser deslocadas do local onde estão posicionadas,
não podem ser fotografadas, não podem ser manipuladas, não podem receber luz
nem calor e só podem ser emprestadas em condições que garantam a absoluta
segurança e integridade. As razões por que os objectos que estão dentro dos
museus não podem sair são: porque estão em exposição; porque pertencem a
colecções científicas; porque pertencem a colecções históricas; porque são
exemplares únicos; porque são exemplares muito raros; porque são peças
insubstituíveis; porque o estado de conservação impossibilita a sua
deslocação ou exposição; porque pertencem a uma colecção privada em
depósito; porque são perigosos; porque são pesados; porque foram roubados;
porque são bonitos, porque são falsos; ou ainda por razões de carácter legal
ou político.
 A percentagem do que está guardado nos museus e que pode ser visto é muito
pequena. Muitas coisas esperam anos pela oportunidade de emergir de uma cave
para serem restauradas e apresentadas ao público. Há outras que nunca serão
vistas, porque o seu interesse visual é nulo ou porque são só partes ou
fragmentos. Há ainda um tipo de coisas que estão guardadas nos museus que
não podem ser encaixadas em nenhuma classificação. São os insignificantes
imperturbados. Estes objectos, embora arrumados junto das outras coisas e
serem em tudo idênticos, são insignificantes, porque se desconhece a
proveniência, porque perderam a etiqueta ou porque foram movidos do sítio
onde estavam colocados originalmente.
 0 significado destes objectos é negligenciável, a linhagem de estudo foi
perdida e a sua análise ou recuperação para a história é considerada como má
aplicação dos recursos dos museus.
Hoje, o principal trabalho do museu e dos seus curadores e conservadores é
impedir, por todos os meios possíveis, que o público esteja em contacto com
as obras guardadas. Conservar uma coisa dentro do museu não é conservar a
utilidade que a coisa teve fora do museu. As coisas dentro do museu só têm
utilidade para o museu.
 0 museu é o último reduto da não democracia, porque o museu acaba quando o
povo puder entrar livremente no museu.
 Os historiadores têm, por isso, uma tarefa muito difícil. Por um lado, são
confrontados com a aparente incompreensibilidade do contemporâneo; o tempo é
uma perda de tempo; a ignorância é cada vez mais especializada; a veracidade
dos registos é sucessivamente posta em causa pela investigação; a tecnologia
invade métodos; e o que pode ser importante numa época é uma variável no
presente e no tempo a que se refere. Por outro lado, a história é um
negócio. O que um historiador quer é que o mundo seja um museu. Tudo é
história, porque o tempo passa e a civilização só avança no sentido da
história, e porque o rasto do tempo é o passado e o presente é,
inexoravelmente, histórico. Este argumento mantém vivo e florescente um dos
grandes negócios do planeta que é a indústria dos museus.
Se Duris de Samos é o primeiro a escrever sobre a história e a vida dos
artistas, é também o primeiro a referir nomes (autorias). Queixa-se das
historiografias anteriores, por não terem intensidade dramática e tornarem a
história viva à custa de técnicas narrativas que pertencem à poesia, e não
do tratamento sequencial das ocorrências miméticas da realidade
contemporânea. A verdadeira configuração de um acontecimento pode ser
falsificada por um "símile" verbal ou por uma representação convincente - o
que abre espaço para que a "verdade*' e o "natural" sejam, estilisticamente,
e por si, uma obra de arte, não deixando, no entanto, de ser uma fabricação
estilizada. Quer dizer: a arte é uma coisa e a história da arte é outra
coisa e, por vezes, durante um certo período de tempo, há um assunto que
fica focado e existe união no sindicato histórico. (1) Se a arte é arte, a
ciência é ciência. Ambas se desactualizam e perdem importância. Ambas
correspondem a um contexto de época {zeitgeist).
A ciência quer ocupar-se da história como um assunto que deve ser arrumado
em gavetas. A arte pediu emprestado à ciência as ideias que pudessem servir
efeitos visuais e backup teórico.
Samuel Butler dizia, nos seus Ensaios sobre vida, arte e ciência, que "os
animais empalhados num museu estão a prestar um serviço científico mas sem
representação sobre a vida. Parece que estão vivos mas não estão. Só a arte
sobrevive a tudo, na sombra ou em gradações de decadência com os matizes e
tons da civilização, que desaparece e continuamente se desactualiza. A
ciência chora pela lua. A arte finge que chora pela lua".
É por esta razão que a arte contemporânea está sempre a ser chamada para
ajudar os museus a manter o statu quo: impõe uma respeitabilidade
contemporânea e actualiza de uma forma inócua os esqueletos nos armários
para um público cada vez mais informado e menos especializado. 

Pedro Portugal - Pintor. É hoje (17 de Maio de 2011) inaugurada uma
instalação sua, Importantário Estetoscópico, no Museu de Ciência da
Universidade de Lisboa

(1) Vasari escreve uma história de artistas (não uma história da arte) onde,
para além de assinalar o declínio das possibilidades de produção futuras,
sustenta como facto que o sorriso de Mona Lisa foi mantido por turnos de
palhaços e músicos em encenações porno-eróticas enquanto Leonardo da Vinci
pintava..."
 
Cumprimentos
Ricardo Charters dÁzevedo


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