Caro Raul Luis,
Agradeço (acho que agradecemos
todos nesta Lista) o seu comentário, pertinente e bem
documentado.
É bem verdade que a oposição
“área aberta” e “quadros” ou “sanjas” é de somenos…. Desde que a primeira não
envolva um retrocesso à época anterior aos sistemas de quadriculagem, que era
toda ela uma época de métodos de “área aberta”, contra os quais Wheeler e outros
se bateram, em nome do registo precisamente (já agora, sugiro-lhe que corrija: o
método Gourhan não é de “área aberta”, mas precisamente também de quadriculagem,
ainda que sem banquetas e por isso com os quadrados aparentemente invisíveis ao
menos atento)
Ora, o que acontece actualmente é
que o uso mecânico dos métodos de “área aberta” baseados em matrizes de
sucessões, aplicados as mais das vezes, ouso dizê-lo, irreflectidamente, sem a
necessária capacidade analítica,o tempo de reflexão e o conveniente suporte
informático de terreno, arrisca-se a dar origem a um verdadeiro “buraco negro”
da arqueologia contemporânea, sobretudo em contexto urbano e/ou de
salvamento.
Veremos com o tempo se não
teremos de lamentar como a satisfação do mercado (sim, porque de satisfação do
mercado se trata, num tempo de mercantilização da actividade arqueológica, mais
empresarial do que “científica” como diz, ou histórico-antropológica como
prefiro dizer, reduzindo ao máximo os tempos de escavação) veio fazer a
arqueologia regredir meio século pelo menos (ao tempo dos métodos sem o recurso
expeditivo a sistemas geométricos de segmentação do espaço, as quadriculagens)
em matéria de registo e de análise de processos tafonómicos.
Uma “matriz de sucessões”, por
mais conscienciosamente que seja feita (o que está longe de ser o caso, na
prática), não dá conta em primeira linha das dinâmicas sedimentares naturais e
dos processos tafonómicos actuantes no sítio (pré-deposionais, deposicionais e
pós-deposicionais). Não foi para isso que o método em que se baseia foi
concebido, mas sim para ordenar sucessões de acções antrópicas, em contexto de
estratigrafia complexa, num ambiente de informatização avançada dos sistemas de
registo.
Idealmente poder-se-á chegar à
interpretação geo-histórica, quer dizer arqueológica em sentido pleno, de um
sítio através de uma matriz de sucessões, mas apenas subsidiariamente e por via
indirecta. A forma mais directa de observar e registar essa dimensão
geo-histórica é através de um método estratigráfico “tradicional”, geológico
quanto à natureza, arqueológico quando à aplicação, e dos registos que dai
decorram.
Pretender que os registos de
sucessões decorrentes dos sistemas de “área aberta” dispensam os registos de
camadas e estratigrafias “à maneira antiga”, ou lhes são superiores, é assim
como pretender que a fotografia dispensa o desenho numa escavação arqueológica.
Erro grosseiro, até porque como dizia Wheeler, “a fotografia é mentirosa” e
fomenta a demissão interpretativa.
Quando numa escavação feita na
“pontas da baionetas”, quer dizer, à frente das pás das retro-escavadoras, se
institui com o panaceia supostamente “objectiva” o preenchimento pelo escavador
de fichas de unidades crono-estratigráficas, deixando para outrem (pessoa e
momento) a recomposição do “puzzle”, negando a necessidade de interpretação
(tida por subjectiva) no campo e a sua explicitação, comete-se o erro do
objectivismo e corre-se fortemente o risco da incapacidade subsequente de
validação da prova, destruída no acto de escavação.
É para tudo isto que quis chamar
a atenção. Se o explicito um pouco mais neste fórum (um local pouco propício
para o aprofundamento de temas teórico-epistemológicos como estes são, antes de
serem metodológicos) é porque reconheço a seriedade e fundamento da sua
observação, mesmo que você seja já idoso e eu jovem, ou vice-versa.
José Esteves
----- Original Message -----
Sent: Monday, July 04, 2011 3:10 PM
Subject: [Archport] se 2+2 nao sao
5
2+2=4, ou porque ainda não chegámos a 1984
«O
que causa espanto é como se pode ignorar que num sítio arqueológico normal
dificilmente existem 103 camadas. Quanto muito podem existir 103 unidades
crono-estratigráficas ! E causa espanto também que haja arqueólogos
(sê-lo-ão mesmo ou serão apenas "arqueógrafos", quer dizer "caboqueiros ?) que
considerem que o único método aceitável de escavação é o que se baseia no
conceito de "unidades crono-estratigráficas", como se o mundo do "espaço
aberto" e das "matrizes" fosse necessariamente melhor do que mundo dos
quadrados e das estratigrafias à maneira antiga. Como se carandini e Harris
tivessem "ultrapassado" e tornado obsoletos Wheller ou Gourhan. A
arrogância do presente sobre o passado constitui sempre um erro capital da
investigação histórica.. Quando a ela se junta um sentimento iluminado de
capela, normalmente pueril ou juvenil, pior ainda. Em linguagem caritativa
critstã, dir-se-ia "perdoai-lhes senhores, porque não sabem o que dizem".»
José Esteves
Este é um texto interessante que levanta
diversas questões pertinentes.
1. «causa espanto também que haja
arquelogos (sê-lo-ão mesmo ou serão apenas "arqueógrafos" […]?».
Parece depreender-se destas palavras que o autor considera, e a meu
ver bem, que um arqueólogo é mais do que um técnico de registo de informaç ão.
Ainda que o cumprimento cabal dessa actividade de fundamental e inquestionável
relevância deva obedecer a um conjunto de regras e preceitos rigorosos e
exigentes, passiveis de serem atendidos pelos membros da comunidade. Na
realidade, o arqueólogo é um cientista...
Não obstante, dever-se-á ter
presente a conjuntura actual: a legislaç ão que regulamenta a execução de
trabalhos arqueológicos priviligia a “salvaguarda pelo registo”, em detrimento
da imposição legal do estudo e publicação exaustiva dos dados exumados. Tal
opção, estejamos ou nao de acordo com ela, ocorrerá por motivos óbvios: volume
e racionalização. Volume, de uma imensa quantidade de registos arqueográficos
nos seus mais variados niveis, desembocando num imenso acervo informativo,
preliminarmente tratado e, armazenado. Racionalizaç ão, de custos e
beneficios. Qualquer actividade cujo objectivo seja o lucro é um negócio. E um
negócio para gerar lucros crescentes tem de se focar nas actividades rentáveis
e desprezar as que apresentam um saldo negativo na relaç ão custo vs
beneficio, onde a ciência arqueológica é forçada a ceder a primazia à ciência
económica. Será aceitável? Um idealista porventura responderia que não. Um
pragmático quiçá responda «é a vida». Agora escolha, pela via fundamentalista
– de parte a parte – municiadora de querelas serôdias, ou pelo caminho do
compromisso e do equilibrio possíveis, mas sempre com a defesa de limites
responsáveis, os quais, a ajuizar por queixas recorrentes, são mais
frequentemente vilipendiados do que estariamos dispostos a aceitar.
Ou
seja, o orçamento tem limites. Há que fazer escolhas. Há que tomar decisões. E
estas devem obedecer a critérios objectivos e assumidos.
2. «causa
espanto também que haja arquelogos […] que considerem que o único método
aceitável de escavação é o que se baseia no conceito de "unidades
crono-estratigráficas", como se o mundo do "espaço aberto" e das "matrizes"
fosse necessariamente melhor do que mundo dos quadrados e das estratigrafias à
maneira antiga. Como se Carandini e Harris tivessem "ultrapassado" e tornado
obsoletos Wheller ou Gourhan. »
Esta afirmação leva-me a colocar uma
questão para a qual nao vou, de propósito, dar resposta: estaremos na presença
de um conflito geracional?
A mensagem contida neste excerto tenho-a
lido com alguma recorrência. Alguns Arqueólogos de diferentes
nacionalidades, na sua esmagadora maioria ligados ao estudo da Pré-história,
apresentam a tese de que as inovações introduzidas por Edward C. Harris não
suplantam a «maneira antiga». Dizem, sobretudo, que a sua aplicação a sitios
pré-históricos n ão oferece vantagens ao nivel da qualidade do registo, ou que
se trata, simplesmente, de uma estratégia inadequada para aqueles contextos.
Todavia, nos textos onde li esta ideia, os autores apresentam esta posiçao
sempre como facto consumado, questionamento auto-justificado ou verdade
apoditica auto-evidente. Desconheço, talvez por deficiente pesquisa
bibliográfica (mea culpa), um trabalho publicado onde esta tese seja
apresentada cabalmente: com análise, explicação, comparação e justificação das
metodologias em confronto, consumadas na evidência insofismável das vantagens
da «maneira antiga». É que, segundo tenho entendido, as propostas e as
praticas de Wheeler constituiram avanços significativos na época em que
surgiram, sendo bastante eficazes na hora de proceder a estudos diacrónicos.
Será suficiente o estabelecimento de sequências? O estudo comparativo de
espaços e ocupações coevas é irrelevante? A eficiência de Wheeler face a
Barker-Harris em matérias de sincronia é similar? Não. Não. Não. Mas Wheeler
também não é uma ferramenta estragada que possamos desprezar. O seu contributo
é inquestionável. O seu lugar na História assegurado. O mesmo se diria de
Leroi-Gourhan, que já escavava em open area. Por outro lado, a dicotomia
espaço aberto vs quadrado, é o que menos nos deve preocupar, pois constitui
ruido que distrai do que é fundamental. Open space, quadricula, quadrante ou
sanja não são mais do que estratégias de escavação. E deve optar-se pela mais
adequada às circunstâncias e aos objectivos que se pretendem cumprir. O que
deve realmente ser motivo de preocupação é a dicotomia escavação arbitrária vs
escavação estratigráfica, sendo a primeira inaceitável independentemente da
estratégia de escavação adoptada. Fundamental é a aplicação do processo de
escavação estratigráfica, qualquer que seja a estratégia de escavação
adoptada.
É que se um Arqueólogo tem que ser mais que um arqueógrafo,
o Arqueólogo também tem necessariamente de ser mais e melhor que um mero
exumador de objectos esteticamente relevantes, recolhidos com total ou parcial
desprezo pelo contexto, pois o objectivo é já, não conhecer o passado, mas a
optimização e a maximização dos lucros.
Raul
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