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Re: [Archport] 2+2=4, ou porque ainda nao chegámos a "1984"

To :   "ARCHPORT" <Archport@ci.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] 2+2=4, ou porque ainda nao chegámos a "1984"
From :   José Esteves <jjesteves@mail.telepac.pt>
Date :   Tue, 5 Jul 2011 17:39:08 +0100

Caro Raul Luis,

Felicito-o vivamente pelo seu texto abaixo. Será porventura demasiado longo para este tipo de fórum. O mais difícil, como você diz, é fazer síntese que não se resuma a ser banal. Mas é mil vezes preferível ler aqui (quem quiser, já se vê, mesmo que poucos) textos longos como o seu, do que textos curtos superficiais e, pior do que isso, grávidos de certezas e de contundência argumentativa.

Posso dizer que estou quase totalmente de acordo com tudo o que diz.

Qualquer método de escavação pode ser bom, desde que vocacionado para a descoberta dos processos tafonómicos actuantes no sítio ("archaeology is just taphonomy") e para o registo de contextos, ecofactuais e artefactuais.

Acontece apenas que os métodos mais dependentes das tecnologias e dos equipamentos sofisticados, são por natureza mais arriscados. Não se trata apenas de custos, de saber tecnológico, de capacidade regeneradora (manutenção dos sistemas e dos respectivos suportes, incluindo as bases de dados)... trata-se de garantia da tradução dos registos obtidos naquilo que em ciência se chama "uma [meta]linguagem clara" (a única em que verdadeiramente nos entendemos).
Trata-se também de não sucumbir ao "fetiche do gadget". Trata-se de perceber que nada, absolutamente nada, dispensa a competência pessoal e a responsabilidade de "tomar partido", que neste contexto quer dizer assumir opções explicitamente e expor interpretações.

Pode estar certo que se Wheeler hoje fosse vivo, mesmo com estereofotogrametria e virtualidade 3D em tempo real, manteria, e creio que reforçaria, a sua advertência de que "a fotografia é mentirosa". Tanto mais mentirosa quanto mais realista. Porque não sendo "objectiva" nos dá a sensação de ser. Porque nos acomoda, nos conforta, nos induz a sermos menos existentes na nossa responsabilidade interpretativa.

Ora, esta tem de ser exercida imediatamente durante o acto de escavação, que é destrutivo por natureza.

O meu receio (mas posso estar enganado) é que a aplicação irreflectida de métodos baseados em fichas de UEs, feitas a correr, sem adequado suporte topográfico e tridimensional de registo "tradicional" (a "cirurgia a três dimensões" que nos falava Gourhan), deixando para mais tarde a recomposição do puzzle, porventura confiantes na capacidade do computador, constitua o tal "buraco negro" de que eu falava antes.

 
O problema é real, porque se acumulam em depósitos as colecções não tratadas e os registos que as servem correm o risco de um dia não servirem para muito mais do que servem hoje os tais cadernos de campo de antigamente, quer dizer de antes dos sistemas de quadriculagem. Com uma agravante: os cadernos do tão controverso Schliemann ou do elegante Woolley, por exemplo, ainda hoje se lêem com prazer, estão cheios de apontamentos úteis e salpicados por desenhos patuscos. Ora, eu não sei quem um dia poderá entender matrizes de centenas de UEs, sem a sua devida inserção em "realidades reais" (o pleonasmo é intencional, como calcula). Mais ainda: não sei quem poderá ter prazer em lê-las.
 
Mas, repito, posso estar enganado. Se houvesse mais gente como você, estaria até certo de estar enganado.
 
E por aqui me fico, porque já basta e dou por encerrado este "bate-papo". Não vou de férias, mas desejo-lhe descanso, porque, pelo que se depreende da sua rica actividade arqueológica (física e intelectual), bem precisa.

 
José Esteves.

 
Obs - não sei o que lhe terá feito pensar que eu seja especial adepto de Carandini. Nem pouco mais ou menos. Talvez não seja tão negativo em relação ao homem, como você. Mas não o coloco ao mesmo nível de vários dos que citou ou até de outros mais antigos, como Pitt-Rivers, Cyril Fox, Laming-Emperaire e até.... Nery Delgado, veja bem. Ainda aqui subscrevo totalmente o que você disse: respeito-os imensamente (é sobre os ombros deles que caminhamos) porque todos contribuiram para o progresso dos métodos da arqueologia, uns mais outros menos. Mas nenhum "deu o passo definitivo". Ninguém o dá, hélas !


----- Original Message -----
Sent: Tuesday, July 05, 2011 2:16 PM
Subject: [Archport] 2+2=4, ou porque ainda nao chegámos a "1984"

Confesso que fechei o manual de escavaçao escrito por Carandini no momento em que vi uma imagem a explicar como se segurava uma picareta, pois senti que se trataria de um manual para tótós urbanos. Nao para um moço do campo. Foi uma acçao preconceituosa da qual me nao orgulho. Um dia, mais cedo que tarde, darei a esse manual a atençao que decerto merece. Nao obstante, compilar e apresentar de forma sistematizada e simplificada métodos de outros constitui, por si só, um contributo de louvar. É o contributo dado pelos papagaios, o qual assume primordial importancia na difusao de ideias. Além disso, a assumpçao da posiçao de papagaio é um excelente mecanismo de aprendizagem e de estruturaçao do pensamento. Nao é absolutamente necessário ser sempre original. Por vezes, a apresentaçao sistematizada e simplificada de ideias de enorme complexidade pode ser aceite como ferramenta útil e por isso louvada. Nestas minhas intervençoes nao emiti nenhuma opinao que possa ser considerada de original ou inovadora, fruto da minha capacidade criadora. Limitei-me a falar do que aprendi de outros. Mas nem por isso deixei de receber palavras de reconhecimento que quero agradecer e retribuir. Lamentavelmente, a retribuiçao tem tanto de demasiado extensa como de superficial. Nao é possivel neste forum tratar com a propriedade devida os temas objecto dos nossos interesses, pelo que se pedem intervençoes curtas. Todavia, simplicidade e síntese sao das tarefas mais dificeis e exigentes que podemos encontrar, acarretando o risco da descriçao insuficiente e débil.

O problema das escavaçoes realizadas em tempos anteriores à introduçao dos sistemas de escavaçao e registo assentes na quadriculagem era, nao a generalizaçao da open area, mas a autêntica acçao de desaterro que uma escavaçao arqueológica constiuia. O problema está, uma vez mais, nao na estratégia de escavaçao adoptada (no caso a área aberta), mas no processo de escavaçao (neste contexto o desaterro arbitrário dos sitios arqueológicos) visando unicamente a extracçao de elementos considerados relevantes, mormente pela sua beleza estética, seja de carácter monumental imóvel, seja de cariz artefactual móvel, descurando quase por completo o contexto. Todavia, seria injusto nao reconhecer que muitos dos arqueólogos de entao estavam sensibilizados para as limitaçoes dos processos que empregavam. E podemos encontrar inúmeros exemplos que documentam uma tentativa de registro gráfico em perfil e em planta. A título de exemplo, o registo gráfico realizado pelo Padre António (!?) Gaspar, colaborador de Cenáculo Villas-Boas, em pleno século XVIII,é de um vanguardismo irrepreensivel, embora de insuficiente qualidade e rigor segundo critérios actuais. Mas naquela época nem sequer se pedia tanto. Ora, acontece que esses foram os tempos da infância da nossa disciplina (é justo exigir a uma criança que se comporte ou que saiba tanto como um adulto?) e hoje, já pessoa adulta feita, a nossa disciplina tem o beneficio do saber acumulado que derivou dos erros e dos avanços inovadores do passado. E por isso mesmo, o nível de exigência é também crescente.

A estratégia de área aberta nao é incompatível com a estratégia dos sistemas de quadriculagem, nem tao pouco com a implementaçao de quadrantes, cortes ou secçoes estratigraficos. E ainda bem. Icompativel e inaceitável é o emprego do processo arbitrário de escavaçao com a produçao de um registo sincrónico e diacrónico rigorosos.

Tive a oportunidade de participar em escavaçoes onde se adoptou a estratégia de área aberta, com e sem recurso à implantaçao das divisoes internas artificiais (in)visiveis estabelecidas à priori como o sao as quadriculas (sim, os limites pré-estabelecidos de uma escavaçao em área aberta também sao artificiais). Em algumas circunstancias esses sistemas de quadriculagem podem constituir guias orientadoras de elevada utilidade, enquanto noutras circunstâncias sao dispensáveis: a presença de estruturas de construçao positivas pode constituir-se em guia orientadora “natural”, podendo tornar desnecessária a utilizaçao das quadriculas. Mas onde os muros nao estao presentes podemos precisar da implantaçao de uma malha de pontos de referência ou guias orientadoras tao fina quanto necessária. Também usufruí da possibilidade de participar em escavaçoes onde se optou pela adopçao da estratégia de quadriculagem. A escolha de uma estratégia em detrimento da outra resultou da conjugaçao de objectivos a alcançar com a existência de constrangimentos diversos. Sempre se observou o processo estratigráfico de escavaçao, algo inegociável. Um exemplo: participei numa escavaçao em open area, onde se optou pela implantaçao de uma quadiculagem invisivel com uma malha de 1 m. Os muros eram abundantes. No entanto, considerou-se pertinente a utilizaçao da “malha” como elemento auxiliar de apoio, em virtude de apenas podermos contar com um nível topográfico, o qual, nao deixando de ser uma ferramenta útil, é menos versátil que um teodolito, mas também muito mais barato.

A questao das banquetas artificiais é, para mim, um assunto há muito arrumado: nao vejo qualquer vantagem relativamente, por exemplo, às secçoes comulativas. Ao contrário do que se possa pensar as banquetas sao testemunhos do que está por escavar naquela superfície vertical concreta e nao do que terminou de escavar-se. Um exemplo exagerado seria ter uma banqueta cuja “cara” fosse composta pelo alçado de um muro coberto por, digamos, 2 UE’s sedimentares e assente directamente na rocha-base, ou mesmo sobre uma outra UE sedimentar de formaçao antrópica. É um cenário teoricamente possivel e que já aconteceu, na prática, em escavaçoes onde participei. No entanto, a introduçao da sua utilizaçao sistemática como mecanismo de controlo estrtigráfico foi uma autêntica revoluçao e um fantástico up grade do qual somos devedores e devemos estar profundamente agradecidos.

Uma matriz nao é mais que uma folha de papel onde se imprimem algumas dezenas de pequenos quadrados ou rectângulos. Por questoes de comodidade vulgarizou-se chamar de matriz a uma ferramenta de apoio cujo nome correcto é diagrama estratigráfico (eu nao sou diferente dos demais, quando digo a palavra matriz estou a pensar no diagrama estratigráfico). Constitui uma técnica de registo de grande operacionalidade e racionalizaçao: é, no fundo, como uma árvore genealógica. É uma representaçao gráfica esquemática sintética das relaçoes crono-estratigráficas identificadas entre as diversas unidades minimas de registo registadas. Nao é mais do que isso. Nao é o produto acabado que se pretende produzir na ciência arqueológica. Nao foi, aliás, essa a intençao do seu criador. É apenas e tao só a representaçao em esquema de todas as UE’s identificadas no decurso de uma escavaçao. Há escavaçoes onde se verifica desnecessária a produçao de um diagrama estratigráfico? Concerteza que sim. Desnecessária, mas nao inútil. Diz-se que uma imagem vale por mil palavras. A visualizaçao de um diagrama estratigráfico permite identificar automatica e instintivamente as sequencias de construçao-ocupaçao-abandono, numa lógica de sobreposiçao sequencial. Mas também permite com a mesma rapidez e simplicidade identificar quais as realidades que partilham relaçoes de contemporaneidade. Agora, se disser que a produçao de uma “matriz” nao esgota, nao pode esgotar a compreensao e a explicaçao das realidades nela registadas, tem toda a razao. Porque esse nao é o fim a que se destina um diagrama estratigráfico. Ele é, como disse, uma representaçao esquemática e, enquanto tal permite uma visualizaçao simples e rápida, mas sobretudo, ajuda a “arrumar” as ideias, a consolidar o processo de estruturaçao do pensamento que incide sobre o sitio arqueológico concreto a que se reporta. É claro que “ler” um diagrama estratigráfico de 800 UE’s nao é o mesmo que digerir a informaçao contida numa matriz de 30 UE’s. No primeiro dos casos, a ideia de simplicidade pode parecer inadequada. Mas ela está lá, mediante a representaçao esquemática racionalizada de uma realidade complexa, decomposta nos seus elementos mais simples, apresentando relaçoes naturais numa forma de aparência artificial. É, inclusivé, e por todas estas razoes, possivel ver beleza num diagrama estratigráfico. A matriz «não dá conta em primeira linha das dinâmicas sedimentares naturais e dos processos tafonómicos actuantes no sítio», nem tem que o fazer pois nao é esse o propósito da sua criaçao, o que, pareceu-me, está no mesmo sentido das suas palavras.

A estratigrafia geológica foi e será de inegável importância para a praxis arqueológica. O conceito de estratigrafia arqueológica (e as leis que o regem) baseia-se na sua irma mais velha e acrescenta-lhe um novo critério pleno de sentido, sem o qual o processo de formaçao de um sitio arqueológico nao pode ser cabalmente compreendido: o factor antrópico. Mesmo na análise das questoes relacionadas com os processos tafonómicos – cujo estudo se assume de capital importância, indispensável mesmo, sobretudo em escavaçoes de necrópoles de inumaçao –, a acçao do homem nao pode ser esquecida. Ela desempenha um papel de relevo, ainda que a nível diverso, daqueles desempenhados pelo vento, a tectónica de placas ou a acidez dos solos. Se a força do vento ou da água pode transportar um elemento depositado (quer por acçao natural, quer por acçao antrópica), retirando-o do seu contexto de deposiçao primária e redepositando-o noutro lugar, também a força do arado utilizado pela moderna agricultura mecanizada poderá ter o mesmo efeito cambiador e destruidor. Nao se trata de defender uma hierarquia de importancias. Mas sim de reconhecer a complexidade dos factores que devemos ter em consideraçao e defender o recurso necessário à interdisciplinaridade das equipas e dos saberes.

Honestamente nao vejo os «sistemas de área aberta a dispensar os registos de camadas e estratigrafias». Continuam a desenhar-se perfis, alçados e planos. Continuam a tirar-se fotografias. A questao é que Mortimer Wheeler nao pôde inventar tudo. Ele já fez mais do que nós. Do que eu. Inovou. Deu um passo no sentido certo. Mas nao deu o passo definitivo. Hoje em dia, desenhar um perfil no campo pode ser desnecessário (mas nao inútil) se as circunstancias o permitirem.

Imaginemos que se está a escavar com a estratégia de open area. Imaginemos que se tem a possibilidade de contar com os serviços de um teodolito analógico. Com esta ferramenta tecnológica avançada, associada à utilizaçao de divisoes internas artificiais (quadrícula) e naturais (muros) podem efectuar-se leituras de elevado rigor e precisao, que nos permitem encontrar os valores de latitude, longitude e altimetria de um ponto determinado. Esses valores sao transferidos para o papel milimétrico, et voilá acabou de produzir um plano simples. Junte 50 planos simples de 50 UE’s diferentes e poderá construir, no conforto do seu gabinete, secçoes cumulativas e planos compostos. Trata-se de um modo indirecto da criaçao de um registo em perfil, ao passo que a prática de Wheller é um modo directo? Concerteza. Mas ambos sao fiáveis e válidos. A nao ser que se defenda que a decisao de mudar de UE é sempre subjectiva e está sempre sujeita ao erro e sempre errada, o que seria lamentável. Um beco sem saída que tanto poderia colocar em cheque adeptos de open area como de quadrículas, pois trata-se de uma critica dirigida nao à estratégia, mas ao processo de escavaçao. Além disso, sem confiança nao há entendimentos nem a criaçao de pontes.

Agora imaginemos que em lugar de um teodolito analógico, podemos dispor de um teodolido digital, vulgo estaçao total, ou mesmo de um GPS de elevada precisao (com margens de erro inferiores a 2 cm). Agora, em lugar de desenhar os planos simples no milimétrico, imaginemos que gravamos um número indeterminado de pontos, recolhidos no topo de uma UE e os gravamos na memória do aparelho, no interior de uma pasta identificada com o número de UE que corresponde aos pontos registados. Essa informaçao é agora transferida para a memória de um PC ou Mac e corre-se numa aplicaçao informática de tipo CAD que possibilite a criaçao de modelos em 3D. Acabamos de dar o primeiro passo para criar uma imagem tridimensional de uma UE. Junte-se 50 registos deste tipo e teremos um modelo tridimensional rigoroso e fiável das realidades exumadas. A partir daqui podem gerar-se os perfis que se quiser. Onde se quiser.

Mas nao existem elementos a necessitar de registo gráfico manual? Se sim esse registo manual deve efectuar-se. Um muro, por exemplo, nao vai desenhar-se retirarando-se pontos aresta a aresta, pedra à pedra com um teodolito digital. Nao compensa. Nao é cost efective. Temos entao de o desenhar à mao? Sim… mas nao! Wheeler disse, e muito bem, que “a fotografia é mentirosa”. Duvido que mantivesse a mesma posiçao caso tivesse ao seu dispor uma ferramenta fantástica de utilizaçao cada vez mais recorrente: a fotogrametria. O recurso a sistemas de calibragem e a utilizaçao de pontos de referência georeferenciados tridimensionalmente permite a montagem bi e tridimensional de objectos de dimensao e formas variáveis, com margens de erro inferiores a 2 cm, a partir de fotos tiradas com uma câmara digital em diversos ângulos. Para quem pense que se trata de uma margem de erro nao negligenciável, lembre-se daquele dia de vendaval em que teve de desenhar um muro à fita. Lembro-me de um muro de 20 m que tive de desenhar nestas circunstancias. A maior parte do muro foi desenhada em condiçoes ambientais serenas. Os últimos 3 ou 4 metros foram desenhados num daqueles dias em que só apetece estar ao borralho a bebericar café das velhas e a trincar ferraduras. A fita bailava e cantava, desligada dos meus protestos e impropérios. Resultado: 10 cm de desfazamento. Quando me deparei com uma parte do muro estranhamente mais estreita, olhava para o muro-olhava para o desenho-olhava para o muro- olhava para o desenho, no jeito de quem acorda estremunhado e com o olhar meio perdido tenta identificar o sitio onde se encontra. Identifiquei o erro e procedi às alteraçoes necessárias. É caso para dizer que, mesmo no momento da produçao do registo, os fenómenos estudados pela tafonomia (no caso concreto, Eólo), estao presentes e nao podem ser descurados.

Imaginámos a utilizaçao de tecnologias de última geraçao numa estratégia de escavaçao de open area. Agora imaginemos que utilizamos estas mesmas ferramentas tecnológicas numa estratégia de quadriculas, com ou sem banquetas... Imaginemos, por fim, uma escavaçao de um sitio de habitat do Neolitico ou uma cupaçao em gruta do Paleolítico Superior. Imaginemos que, mediante recurso a uma estaçao total, podemos registar coordenadas tridimensinais de todos os artefactos e ecofactos identificados. Imaginemos que descarregamos essa informaçao para um software de tipo CAD 3D e temos ao nosso dispor a dispersao tridimensional dos elementos registados à distância de meia dúzia de cliques. Oh admirável mundo novo! Será auto-suficente? Nao! Mas é um inquestionável passo em frente.

É claro que a utilizaçao deste utensilios implica enormes investimentos, demasiado grandes para os bolsos do comum dos mortais. Mas com apenas 50 € é possivel implementar uma área de escavaçao, com ou sem quadricula (in)visivel e aplicar métodos de registo tridimensional. Tudo o que necessitamos é: corda elástica (mais resistente a tropeços involuntários) e cavilhas para os limites da área e para a quadriculagem interna; fitas métricas, um fio de prumo, uma mangueira, água e duas rolhas para o registo tridimensional. A utilizaçao de níveis de água deste tipo é de uma fiabilidade estonteante. Edificios que ainda hoje estao de pé e podemos contemplar, foram construidos com recurso a esta ferramenta simples, barata e eficaz. Todavia menos eficiente que as modernas tecnologias, pois implica um maior consumo de tempo em trabalhos de gabinete. E num ambiente económico neo-liberal, tempo é dinheiro.

Retro-escavadoras e fichas de registo de UE’s sao ferramentas de enorme utilidade. A retro-escavadora é útil, com enormes vantagens, na remoçao de UE’s especificas. Nomeadamente em contexto rural. Senao vejamos. Vamos escavar um sitio arqueológico onde a prática da moderna agricultura mecanizada foi recorrente ao longo dos últimos 40 ou 50 anos. Os arados atingem facilmente os 30 cm de profundidade. No caso de plantaçao de vinha nova, chega mesmo a utilizar-se arados que revolvem a terra a quase 1 m de profundidade. Nestas circunstâncias, parece-me preferivel utilizar uma retro-escavadora ou uma giratória com balde ou pá desdentados, do que proceder à escavaçao manual dessa UE concreta, pois a informaçao nela contida está fora de contexto. Mas tal opçao nao é arbitrária. Ela obedece a critérios que regulam o processo de escavaçao estratigráfico. É claro que o grau de precisao da escavaçao realizada por uma máquina deste tipo é bastante menor que o observado pela escavaçao mediante utilizaçao de um colherim ou de um bisturi. Por isso mesmo é que a escolha deve obedecer a critérios rigorosos e estar de acordo com as circunstancias. Por outro lado, parece-me de todo inaceitável a escavaçao mecânica de níveis conservados, inclusivé os “empecilhos” de cronologia Moderna (abundantes em contexto urbano) que escondem o Romano ou o Ferro.

A grande virtude de uma ficha de registo de UE é a operacionalidade normativa racionalizada que nao podemos encontrar no caderno de campo. Uma ficha de UE bem concebida tem de incluir campos diversos e respeitar critérios objectivos. Nela devem constar sempre, entre outros, campos para a introduçao do nome do sítio, do número da UE, da definiçao da UE, da formaçao, dos componentes (geológicos, ecológicos e artificiais), das relaçoes estratigráficas directas observadas, da descriçao, da interpretaçao, do método de escavaçao, da recolha de amostras, da cronologia, do autor da escavaçao et caetera. Torna-se, por isso, mais prático, simples e rápido do que apontar toda esta informaçao no caderno de campo. Porque é modelo standardizado e normalizado na sequência de uma reflexao racional. Mas standard nao significa estanque. A ficha de UE deve ser versátil e dinâmica o suficiente para permitir que a mesma base possa sofrer as alteraçoes necessárias, mormente ao nível dos componentes artificiais, quando a sua utilizaçao num sitio Calcolítico termina, e uma nova escavaçao em Islâmico começa. Prático, mas nao substitui em definitivo o velhinho caderno de campo, ainda bastante útil e eficaz. Pessoalmente continuo a utilizá-lo. Até porque sai mais barato imprimir uma folha com a ficha de UE, utilizá-la como guiao e auxiliar de memória e apontar a informaçao no caderno de campo, do que imprimir 200 folhas, que acabarao na reciclagem depois dos dados serem introduzidos em suporte informático. É claro que quem tiver a possibilidade de ter um portátil na escavaçao, pode usufruir da efiência do preenchimento da ficha de UE in loco. Mas nao é o meu caso. E como tal nao abdico do caderno de campo, tal como nao abdico de ferramentas tecnológicas fantásticas como a esferográfica, o fio de prumo ou o metro articulado.

Todos sabemos como se faz uma prospecçao. Agora, imaginemos que, com recurso à tecnologia LIDAR podemos, sentados em frente ao nosso computador e enquanto bebemos um café e puxamos de um cigarro, percorrer numa hora mais km2 numa hora que num dia a bater pata no campo. Imaginemos que a tecnologia LIDAR permite “eliminar” florestas e tornar visiveis estruturas positivas e negativas antigas. A utilizaçao do LIDAR implica abandonar os tradicionais métodos de prospecçao? É evidente que nao. Um dia, ao usar o JPEG criado a partir do LIDAR encontrei aquilo que parecia ser um ring ditch. A consequente visita de campo, realizada para confirmar o achado revelou um depósito de água de 30 ou 40 anos. É o problema de “eliminar” a informaçao que cobre o solo. A tecnologia LIDAR também nao torna visiveis sitios arqueológicos sem estruturas construidas, mas tem bastante melhor definiçao que o Google Earth. Novo e velho devem, pois, ser encarados nao numa perspectiva de oposiçao excluente, mas num espírito de articulaçao cooperante.

Nao há bela sem senao. A mercantilizaçao da actividade arqueológica trouxe com ela inegáveis beneficios, como também efeitos perversos. Há tempos ouvi um ilustre orador da nossa praça dizer que em França esse era tema de debate intenso e que alguns ponderavam acabar com a arqueologia comercial. Confesso que nao acompanhei esse debate, desconhecendo, por isso, os fundamentos das diversas posiçoes assumidas. Mas a arqueologia comercial nao tem por que abandonar-se. Antes disso, seria talvez importante introduzir (mesmo que de modo coercivo), por exemplo, sistemas de certificaçao de empresas e de profissionais de carácter obrigatório e assentes em critérios rigorosos e exigentes, no que toca a meios financeiros, tecnológicos e humanos próprios.

Arqueologia, História e Antropologia partilham o mesmo objecto de estudo, pelo menos em parte. Partilham fontes, sendo algumas exclusivas. Partilham bibliografia... sao primas que nao se querem desavindas. E qualquer uma delas constitui uma ciência, do campo das ciências sociais. Querer identificar primazias parece-me pura e disparatada perda de tempo.

Caro Zé Pedro, eu nao sei tudo. Veja-me a ler “A Brief History of Time” de Stephen Hawkings e verá um burro a olhar para um palácio. Na verdade, tenho mais perguntas que respostas. O pós-modernismo levanta questoes pertinentes e constitui um avanço qualitativo de inegável substância. Mas é um rótulo inadequado: inclui demasiadas correntes díspares, merecedoras de catalogaçao própria. As preocupaçoes com o mundo simbólico nao pode incluir-se no mesmo saco que o contributo prestado pela arqueologia de género. É quase como a enorme quantidade de correntes modernistas criadas por Pessoa, algumas delas compostas por um único poema. Mas o que é importante reter é se esses trabalhos contribuem ou nao para um salto qualitativo. André de Resende (mau grado os falsos que engendrou) inovou, Cenáculo inovou, Pitt-Rivers inovou, Wheeler inovou, Leroi-Gouhran inovou, Binford inovou, Barker inovou, Harris inovou, Hodder inovou, Trigger inovou, Diaz-Andreu inovou, entre muitos outros. Mas nenhum deu o passo definitivo. Provavelmete jámais alguém o dará. Mas todos deram um contributo válido e útil. Porque meterarm maos à obra. Eu, ao contrário, ainda nao fiz nada que se possa apresentar em casa.

Em suma, parece-me que o que nos aflige é que a pressao do afã de lucro obrigue os profissionais da arqueologia comercial a descurar o processo de escvaçao estratigráfico e técnicas de registo a ele associados, substituindo-o pelo processo arbitrário, o que constituiria um (tenho ganas de dizer estúpido) retrocesso de meio século. É facil concordar com esta posiçao. E há que trabalhar para que tal cenário temido nao se materialize.

Quer-me entao parecer que, bilis à parte, sao mais os pontos de concórdia entre os elementos da comunidade, do que propriamente as divergências insana(vei)s. Como diz o adágio anglo-saxónico: ate the game don’t ate the player.

Estou a 8 meses de terminar o usufruto pleno da idade do chamado de Cristo. Sou, portanto, bastante jovem, com muito ainda por aprender. E jovem pretendo, em jeito mui parmenidiano, continuar a ser. É que pouco tenho a ensinar. Mas esse pouco é, creio, de incomensurável valor e pode dizer-se num segundo em duas palavras apenas: aprender compensa!

Agora vou desfrutar do que queda das curtas vacances, pois a Maria quer ir beber um cafézinho antes de voltar à praia e amanha o trabalho volta a bater à porta.

Bem (h)ajam e até uma próxima oportunidade,



Raul


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