Caro Raul Luis,
Felicito-o vivamente pelo seu texto
abaixo. Será porventura demasiado longo para este tipo de fórum. O mais difícil,
como você diz, é fazer síntese que não se resuma a ser banal. Mas é mil vezes
preferível ler aqui (quem quiser, já se vê, mesmo que poucos) textos longos como
o seu, do que textos curtos superficiais e, pior do que isso, grávidos de
certezas e de contundência argumentativa.
Posso dizer que estou quase
totalmente de acordo com tudo o que diz.
Qualquer método de escavação pode
ser bom, desde que vocacionado para a descoberta dos processos tafonómicos
actuantes no sítio ("archaeology is just taphonomy") e para o registo de
contextos, ecofactuais e artefactuais.
Acontece apenas que os métodos mais
dependentes das tecnologias e dos equipamentos sofisticados, são por natureza
mais arriscados. Não se trata apenas de custos, de saber tecnológico, de
capacidade regeneradora (manutenção dos sistemas e dos respectivos suportes,
incluindo as bases de dados)... trata-se de garantia da tradução dos registos
obtidos naquilo que em ciência se chama "uma [meta]linguagem clara" (a única em
que verdadeiramente nos entendemos).
Trata-se também de não sucumbir ao
"fetiche do gadget". Trata-se de perceber que nada, absolutamente nada, dispensa
a competência pessoal e a responsabilidade de "tomar partido", que neste
contexto quer dizer assumir opções explicitamente e expor
interpretações.
Pode estar certo que se Wheeler
hoje fosse vivo, mesmo com estereofotogrametria e virtualidade 3D em tempo real,
manteria, e creio que reforçaria, a sua advertência de que "a fotografia é
mentirosa". Tanto mais mentirosa quanto mais realista. Porque não sendo
"objectiva" nos dá a sensação de ser. Porque nos acomoda, nos conforta, nos
induz a sermos menos existentes na nossa responsabilidade interpretativa.
Ora, esta tem de ser exercida
imediatamente durante o acto de escavação, que é destrutivo por
natureza.
O meu receio (mas posso estar
enganado) é que a aplicação irreflectida de métodos baseados em fichas de UEs,
feitas a correr, sem adequado suporte topográfico e tridimensional de registo
"tradicional" (a "cirurgia a três dimensões" que nos falava Gourhan), deixando
para mais tarde a recomposição do puzzle, porventura confiantes na capacidade do
computador, constitua o tal "buraco negro" de que eu falava antes.
O problema é real, porque se acumulam
em depósitos as colecções não tratadas e os registos que as servem correm o
risco de um dia não servirem para muito mais do que servem hoje os tais cadernos
de campo de antigamente, quer dizer de antes dos sistemas de quadriculagem. Com
uma agravante: os cadernos do tão controverso Schliemann ou do elegante Woolley,
por exemplo, ainda hoje se lêem com prazer, estão cheios de apontamentos úteis e
salpicados por desenhos patuscos. Ora, eu não sei quem um dia poderá entender
matrizes de centenas de UEs, sem a sua devida inserção em "realidades reais" (o
pleonasmo é intencional, como calcula). Mais ainda: não sei quem poderá ter
prazer em lê-las.
Mas, repito, posso estar enganado. Se
houvesse mais gente como você, estaria até certo de estar enganado.
E por aqui me fico, porque já basta e
dou por encerrado este "bate-papo". Não vou de férias, mas desejo-lhe descanso,
porque, pelo que se depreende da sua rica actividade arqueológica (física e
intelectual), bem precisa.
José Esteves.
Obs - não sei o que lhe terá feito
pensar que eu seja especial adepto de Carandini. Nem pouco mais ou menos. Talvez
não seja tão negativo em relação ao homem, como você. Mas não o coloco ao mesmo
nível de vários dos que citou ou até de outros mais antigos, como Pitt-Rivers,
Cyril Fox, Laming-Emperaire e até.... Nery Delgado, veja bem. Ainda aqui
subscrevo totalmente o que você disse: respeito-os imensamente (é sobre os
ombros deles que caminhamos) porque todos contribuiram para o progresso dos
métodos da arqueologia, uns mais outros menos. Mas nenhum "deu o passo
definitivo". Ninguém o dá, hélas !
----- Original Message -----
Sent: Tuesday, July 05, 2011 2:16
PM
Subject: [Archport] 2+2=4, ou porque
ainda nao chegámos a "1984"
Confesso que fechei o manual de escavaçao escrito por Carandini
no momento em que vi uma imagem a explicar como se segurava uma picareta, pois
senti que se trataria de um manual para tótós urbanos. Nao para um moço do
campo. Foi uma acçao preconceituosa da qual me nao orgulho. Um dia, mais cedo
que tarde, darei a esse manual a atençao que decerto merece. Nao obstante,
compilar e apresentar de forma sistematizada e simplificada métodos de outros
constitui, por si só, um contributo de louvar. É o contributo dado pelos
papagaios, o qual assume primordial importancia na difusao de ideias. Além
disso, a assumpçao da posiçao de papagaio é um excelente mecanismo de
aprendizagem e de estruturaçao do pensamento. Nao é absolutamente necessário
ser sempre original. Por vezes, a apresentaçao sistematizada e simplificada de
ideias de enorme complexidade pode ser aceite como ferramenta útil e por isso
louvada. Nestas minhas intervençoes nao emiti nenhuma opinao que possa ser
considerada de original ou inovadora, fruto da minha capacidade criadora.
Limitei-me a falar do que aprendi de outros. Mas nem por isso deixei de
receber palavras de reconhecimento que quero agradecer e retribuir.
Lamentavelmente, a retribuiçao tem tanto de demasiado extensa como de
superficial. Nao é possivel neste forum tratar com a propriedade devida os
temas objecto dos nossos interesses, pelo que se pedem intervençoes curtas.
Todavia, simplicidade e síntese sao das tarefas mais dificeis e exigentes que
podemos encontrar, acarretando o risco da descriçao insuficiente e débil.
O problema das escavaçoes realizadas em tempos anteriores à introduçao
dos sistemas de escavaçao e registo assentes na quadriculagem era, nao a
generalizaçao da open area, mas a autêntica acçao de desaterro que uma
escavaçao arqueológica constiuia. O problema está, uma vez mais, nao na
estratégia de escavaçao adoptada (no caso a área aberta), mas no processo de
escavaçao (neste contexto o desaterro arbitrário dos sitios arqueológicos)
visando unicamente a extracçao de elementos considerados relevantes, mormente
pela sua beleza estética, seja de carácter monumental imóvel, seja de cariz
artefactual móvel, descurando quase por completo o contexto. Todavia, seria
injusto nao reconhecer que muitos dos arqueólogos de entao estavam
sensibilizados para as limitaçoes dos processos que empregavam. E podemos
encontrar inúmeros exemplos que documentam uma tentativa de registro gráfico
em perfil e em planta. A título de exemplo, o registo gráfico realizado pelo
Padre António (!?) Gaspar, colaborador de Cenáculo Villas-Boas, em pleno
século XVIII,é de um vanguardismo irrepreensivel, embora de insuficiente
qualidade e rigor segundo critérios actuais. Mas naquela época nem sequer se
pedia tanto. Ora, acontece que esses foram os tempos da infância da nossa
disciplina (é justo exigir a uma criança que se comporte ou que saiba tanto
como um adulto?) e hoje, já pessoa adulta feita, a nossa disciplina tem o
beneficio do saber acumulado que derivou dos erros e dos avanços inovadores do
passado. E por isso mesmo, o nível de exigência é também crescente.
A
estratégia de área aberta nao é incompatível com a estratégia dos sistemas de
quadriculagem, nem tao pouco com a implementaçao de quadrantes, cortes ou
secçoes estratigraficos. E ainda bem. Icompativel e inaceitável é o emprego do
processo arbitrário de escavaçao com a produçao de um registo sincrónico e
diacrónico rigorosos.
Tive a oportunidade de participar em escavaçoes
onde se adoptou a estratégia de área aberta, com e sem recurso à implantaçao
das divisoes internas artificiais (in)visiveis estabelecidas à priori como o
sao as quadriculas (sim, os limites pré-estabelecidos de uma escavaçao em área
aberta também sao artificiais). Em algumas circunstancias esses sistemas de
quadriculagem podem constituir guias orientadoras de elevada utilidade,
enquanto noutras circunstâncias sao dispensáveis: a presença de estruturas de
construçao positivas pode constituir-se em guia orientadora “natural”, podendo
tornar desnecessária a utilizaçao das quadriculas. Mas onde os muros nao estao
presentes podemos precisar da implantaçao de uma malha de pontos de referência
ou guias orientadoras tao fina quanto necessária. Também usufruí da
possibilidade de participar em escavaçoes onde se optou pela adopçao da
estratégia de quadriculagem. A escolha de uma estratégia em detrimento da
outra resultou da conjugaçao de objectivos a alcançar com a existência de
constrangimentos diversos. Sempre se observou o processo estratigráfico de
escavaçao, algo inegociável. Um exemplo: participei numa escavaçao em open
area, onde se optou pela implantaçao de uma quadiculagem invisivel com uma
malha de 1 m. Os muros eram abundantes. No entanto, considerou-se pertinente a
utilizaçao da “malha” como elemento auxiliar de apoio, em virtude de apenas
podermos contar com um nível topográfico, o qual, nao deixando de ser uma
ferramenta útil, é menos versátil que um teodolito, mas também muito mais
barato.
A questao das banquetas artificiais é, para mim, um assunto há
muito arrumado: nao vejo qualquer vantagem relativamente, por exemplo, às
secçoes comulativas. Ao contrário do que se possa pensar as banquetas sao
testemunhos do que está por escavar naquela superfície vertical concreta e nao
do que terminou de escavar-se. Um exemplo exagerado seria ter uma banqueta
cuja “cara” fosse composta pelo alçado de um muro coberto por, digamos, 2 UE’s
sedimentares e assente directamente na rocha-base, ou mesmo sobre uma outra UE
sedimentar de formaçao antrópica. É um cenário teoricamente possivel e que já
aconteceu, na prática, em escavaçoes onde participei. No entanto, a introduçao
da sua utilizaçao sistemática como mecanismo de controlo estrtigráfico foi uma
autêntica revoluçao e um fantástico up grade do qual somos devedores e devemos
estar profundamente agradecidos.
Uma matriz nao é mais que uma folha
de papel onde se imprimem algumas dezenas de pequenos quadrados ou
rectângulos. Por questoes de comodidade vulgarizou-se chamar de matriz a uma
ferramenta de apoio cujo nome correcto é diagrama estratigráfico (eu nao sou
diferente dos demais, quando digo a palavra matriz estou a pensar no diagrama
estratigráfico). Constitui uma técnica de registo de grande operacionalidade e
racionalizaçao: é, no fundo, como uma árvore genealógica. É uma representaçao
gráfica esquemática sintética das relaçoes crono-estratigráficas identificadas
entre as diversas unidades minimas de registo registadas. Nao é mais do que
isso. Nao é o produto acabado que se pretende produzir na ciência
arqueológica. Nao foi, aliás, essa a intençao do seu criador. É apenas e tao
só a representaçao em esquema de todas as UE’s identificadas no decurso de uma
escavaçao. Há escavaçoes onde se verifica desnecessária a produçao de um
diagrama estratigráfico? Concerteza que sim. Desnecessária, mas nao inútil.
Diz-se que uma imagem vale por mil palavras. A visualizaçao de um diagrama
estratigráfico permite identificar automatica e instintivamente as sequencias
de construçao-ocupaçao-abandono, numa lógica de sobreposiçao sequencial. Mas
também permite com a mesma rapidez e simplicidade identificar quais as
realidades que partilham relaçoes de contemporaneidade. Agora, se disser que a
produçao de uma “matriz” nao esgota, nao pode esgotar a compreensao e a
explicaçao das realidades nela registadas, tem toda a razao. Porque esse nao é
o fim a que se destina um diagrama estratigráfico. Ele é, como disse, uma
representaçao esquemática e, enquanto tal permite uma visualizaçao simples e
rápida, mas sobretudo, ajuda a “arrumar” as ideias, a consolidar o processo de
estruturaçao do pensamento que incide sobre o sitio arqueológico concreto a
que se reporta. É claro que “ler” um diagrama estratigráfico de 800 UE’s nao é
o mesmo que digerir a informaçao contida numa matriz de 30 UE’s. No primeiro
dos casos, a ideia de simplicidade pode parecer inadequada. Mas ela está lá,
mediante a representaçao esquemática racionalizada de uma realidade complexa,
decomposta nos seus elementos mais simples, apresentando relaçoes naturais
numa forma de aparência artificial. É, inclusivé, e por todas estas razoes,
possivel ver beleza num diagrama estratigráfico. A matriz «não dá conta em
primeira linha das dinâmicas sedimentares naturais e dos processos tafonómicos
actuantes no sítio», nem tem que o fazer pois nao é esse o propósito da sua
criaçao, o que, pareceu-me, está no mesmo sentido das suas palavras.
A
estratigrafia geológica foi e será de inegável importância para a praxis
arqueológica. O conceito de estratigrafia arqueológica (e as leis que o regem)
baseia-se na sua irma mais velha e acrescenta-lhe um novo critério pleno de
sentido, sem o qual o processo de formaçao de um sitio arqueológico nao pode
ser cabalmente compreendido: o factor antrópico. Mesmo na análise das questoes
relacionadas com os processos tafonómicos – cujo estudo se assume de capital
importância, indispensável mesmo, sobretudo em escavaçoes de necrópoles de
inumaçao –, a acçao do homem nao pode ser esquecida. Ela desempenha um papel
de relevo, ainda que a nível diverso, daqueles desempenhados pelo vento, a
tectónica de placas ou a acidez dos solos. Se a força do vento ou da água pode
transportar um elemento depositado (quer por acçao natural, quer por acçao
antrópica), retirando-o do seu contexto de deposiçao primária e
redepositando-o noutro lugar, também a força do arado utilizado pela moderna
agricultura mecanizada poderá ter o mesmo efeito cambiador e destruidor. Nao
se trata de defender uma hierarquia de importancias. Mas sim de reconhecer a
complexidade dos factores que devemos ter em consideraçao e defender o recurso
necessário à interdisciplinaridade das equipas e dos saberes.
Honestamente nao vejo os «sistemas de área aberta a dispensar os
registos de camadas e estratigrafias». Continuam a desenhar-se perfis, alçados
e planos. Continuam a tirar-se fotografias. A questao é que Mortimer Wheeler
nao pôde inventar tudo. Ele já fez mais do que nós. Do que eu. Inovou. Deu um
passo no sentido certo. Mas nao deu o passo definitivo. Hoje em dia, desenhar
um perfil no campo pode ser desnecessário (mas nao inútil) se as
circunstancias o permitirem.
Imaginemos que se está a escavar com a
estratégia de open area. Imaginemos que se tem a possibilidade de contar com
os serviços de um teodolito analógico. Com esta ferramenta tecnológica
avançada, associada à utilizaçao de divisoes internas artificiais (quadrícula)
e naturais (muros) podem efectuar-se leituras de elevado rigor e precisao, que
nos permitem encontrar os valores de latitude, longitude e altimetria de um
ponto determinado. Esses valores sao transferidos para o papel milimétrico, et
voilá acabou de produzir um plano simples. Junte 50 planos simples de 50 UE’s
diferentes e poderá construir, no conforto do seu gabinete, secçoes
cumulativas e planos compostos. Trata-se de um modo indirecto da criaçao de um
registo em perfil, ao passo que a prática de Wheller é um modo directo?
Concerteza. Mas ambos sao fiáveis e válidos. A nao ser que se defenda que a
decisao de mudar de UE é sempre subjectiva e está sempre sujeita ao erro e
sempre errada, o que seria lamentável. Um beco sem saída que tanto poderia
colocar em cheque adeptos de open area como de quadrículas, pois trata-se de
uma critica dirigida nao à estratégia, mas ao processo de escavaçao. Além
disso, sem confiança nao há entendimentos nem a criaçao de pontes.
Agora imaginemos que em lugar de um teodolito analógico, podemos
dispor de um teodolido digital, vulgo estaçao total, ou mesmo de um GPS de
elevada precisao (com margens de erro inferiores a 2 cm). Agora, em lugar de
desenhar os planos simples no milimétrico, imaginemos que gravamos um número
indeterminado de pontos, recolhidos no topo de uma UE e os gravamos na memória
do aparelho, no interior de uma pasta identificada com o número de UE que
corresponde aos pontos registados. Essa informaçao é agora transferida para a
memória de um PC ou Mac e corre-se numa aplicaçao informática de tipo CAD que
possibilite a criaçao de modelos em 3D. Acabamos de dar o primeiro passo para
criar uma imagem tridimensional de uma UE. Junte-se 50 registos deste tipo e
teremos um modelo tridimensional rigoroso e fiável das realidades exumadas. A
partir daqui podem gerar-se os perfis que se quiser. Onde se quiser.
Mas nao existem elementos a necessitar de registo gráfico manual? Se
sim esse registo manual deve efectuar-se. Um muro, por exemplo, nao vai
desenhar-se retirarando-se pontos aresta a aresta, pedra à pedra com um
teodolito digital. Nao compensa. Nao é cost efective. Temos entao de o
desenhar à mao? Sim… mas nao! Wheeler disse, e muito bem, que “a fotografia é
mentirosa”. Duvido que mantivesse a mesma posiçao caso tivesse ao seu dispor
uma ferramenta fantástica de utilizaçao cada vez mais recorrente: a
fotogrametria. O recurso a sistemas de calibragem e a utilizaçao de pontos de
referência georeferenciados tridimensionalmente permite a montagem bi e
tridimensional de objectos de dimensao e formas variáveis, com margens de erro
inferiores a 2 cm, a partir de fotos tiradas com uma câmara digital em
diversos ângulos. Para quem pense que se trata de uma margem de erro nao
negligenciável, lembre-se daquele dia de vendaval em que teve de desenhar um
muro à fita. Lembro-me de um muro de 20 m que tive de desenhar nestas
circunstancias. A maior parte do muro foi desenhada em condiçoes ambientais
serenas. Os últimos 3 ou 4 metros foram desenhados num daqueles dias em que só
apetece estar ao borralho a bebericar café das velhas e a trincar ferraduras.
A fita bailava e cantava, desligada dos meus protestos e impropérios.
Resultado: 10 cm de desfazamento. Quando me deparei com uma parte do muro
estranhamente mais estreita, olhava para o muro-olhava para o desenho-olhava
para o muro- olhava para o desenho, no jeito de quem acorda estremunhado e com
o olhar meio perdido tenta identificar o sitio onde se encontra. Identifiquei
o erro e procedi às alteraçoes necessárias. É caso para dizer que, mesmo no
momento da produçao do registo, os fenómenos estudados pela tafonomia (no caso
concreto, Eólo), estao presentes e nao podem ser descurados.
Imaginámos a utilizaçao de tecnologias de última geraçao numa
estratégia de escavaçao de open area. Agora imaginemos que utilizamos estas
mesmas ferramentas tecnológicas numa estratégia de quadriculas, com ou sem
banquetas... Imaginemos, por fim, uma escavaçao de um sitio de habitat do
Neolitico ou uma cupaçao em gruta do Paleolítico Superior. Imaginemos que,
mediante recurso a uma estaçao total, podemos registar coordenadas
tridimensinais de todos os artefactos e ecofactos identificados. Imaginemos
que descarregamos essa informaçao para um software de tipo CAD 3D e temos ao
nosso dispor a dispersao tridimensional dos elementos registados à distância
de meia dúzia de cliques. Oh admirável mundo novo! Será auto-suficente? Nao!
Mas é um inquestionável passo em frente.
É claro que a utilizaçao
deste utensilios implica enormes investimentos, demasiado grandes para os
bolsos do comum dos mortais. Mas com apenas 50 € é possivel implementar uma
área de escavaçao, com ou sem quadricula (in)visivel e aplicar métodos de
registo tridimensional. Tudo o que necessitamos é: corda elástica (mais
resistente a tropeços involuntários) e cavilhas para os limites da área e para
a quadriculagem interna; fitas métricas, um fio de prumo, uma mangueira, água
e duas rolhas para o registo tridimensional. A utilizaçao de níveis de água
deste tipo é de uma fiabilidade estonteante. Edificios que ainda hoje estao de
pé e podemos contemplar, foram construidos com recurso a esta ferramenta
simples, barata e eficaz. Todavia menos eficiente que as modernas tecnologias,
pois implica um maior consumo de tempo em trabalhos de gabinete. E num
ambiente económico neo-liberal, tempo é dinheiro.
Retro-escavadoras e
fichas de registo de UE’s sao ferramentas de enorme utilidade. A
retro-escavadora é útil, com enormes vantagens, na remoçao de UE’s
especificas. Nomeadamente em contexto rural. Senao vejamos. Vamos escavar um
sitio arqueológico onde a prática da moderna agricultura mecanizada foi
recorrente ao longo dos últimos 40 ou 50 anos. Os arados atingem facilmente os
30 cm de profundidade. No caso de plantaçao de vinha nova, chega mesmo a
utilizar-se arados que revolvem a terra a quase 1 m de profundidade. Nestas
circunstâncias, parece-me preferivel utilizar uma retro-escavadora ou uma
giratória com balde ou pá desdentados, do que proceder à escavaçao manual
dessa UE concreta, pois a informaçao nela contida está fora de contexto. Mas
tal opçao nao é arbitrária. Ela obedece a critérios que regulam o processo de
escavaçao estratigráfico. É claro que o grau de precisao da escavaçao
realizada por uma máquina deste tipo é bastante menor que o observado pela
escavaçao mediante utilizaçao de um colherim ou de um bisturi. Por isso mesmo
é que a escolha deve obedecer a critérios rigorosos e estar de acordo com as
circunstancias. Por outro lado, parece-me de todo inaceitável a escavaçao
mecânica de níveis conservados, inclusivé os “empecilhos” de cronologia
Moderna (abundantes em contexto urbano) que escondem o Romano ou o Ferro.
A grande virtude de uma ficha de registo de UE é a operacionalidade
normativa racionalizada que nao podemos encontrar no caderno de campo. Uma
ficha de UE bem concebida tem de incluir campos diversos e respeitar critérios
objectivos. Nela devem constar sempre, entre outros, campos para a introduçao
do nome do sítio, do número da UE, da definiçao da UE, da formaçao, dos
componentes (geológicos, ecológicos e artificiais), das relaçoes
estratigráficas directas observadas, da descriçao, da interpretaçao, do método
de escavaçao, da recolha de amostras, da cronologia, do autor da escavaçao et
caetera. Torna-se, por isso, mais prático, simples e rápido do que apontar
toda esta informaçao no caderno de campo. Porque é modelo standardizado e
normalizado na sequência de uma reflexao racional. Mas standard nao significa
estanque. A ficha de UE deve ser versátil e dinâmica o suficiente para
permitir que a mesma base possa sofrer as alteraçoes necessárias, mormente ao
nível dos componentes artificiais, quando a sua utilizaçao num sitio
Calcolítico termina, e uma nova escavaçao em Islâmico começa. Prático, mas nao
substitui em definitivo o velhinho caderno de campo, ainda bastante útil e
eficaz. Pessoalmente continuo a utilizá-lo. Até porque sai mais barato
imprimir uma folha com a ficha de UE, utilizá-la como guiao e auxiliar de
memória e apontar a informaçao no caderno de campo, do que imprimir 200
folhas, que acabarao na reciclagem depois dos dados serem introduzidos em
suporte informático. É claro que quem tiver a possibilidade de ter um portátil
na escavaçao, pode usufruir da efiência do preenchimento da ficha de UE in
loco. Mas nao é o meu caso. E como tal nao abdico do caderno de campo, tal
como nao abdico de ferramentas tecnológicas fantásticas como a esferográfica,
o fio de prumo ou o metro articulado.
Todos sabemos como se faz uma
prospecçao. Agora, imaginemos que, com recurso à tecnologia LIDAR podemos,
sentados em frente ao nosso computador e enquanto bebemos um café e puxamos de
um cigarro, percorrer numa hora mais km2 numa hora que num dia a bater pata no
campo. Imaginemos que a tecnologia LIDAR permite “eliminar” florestas e tornar
visiveis estruturas positivas e negativas antigas. A utilizaçao do LIDAR
implica abandonar os tradicionais métodos de prospecçao? É evidente que nao.
Um dia, ao usar o JPEG criado a partir do LIDAR encontrei aquilo que parecia
ser um ring ditch. A consequente visita de campo, realizada para confirmar o
achado revelou um depósito de água de 30 ou 40 anos. É o problema de
“eliminar” a informaçao que cobre o solo. A tecnologia LIDAR também nao torna
visiveis sitios arqueológicos sem estruturas construidas, mas tem bastante
melhor definiçao que o Google Earth. Novo e velho devem, pois, ser encarados
nao numa perspectiva de oposiçao excluente, mas num espírito de articulaçao
cooperante.
Nao há bela sem senao. A mercantilizaçao da actividade
arqueológica trouxe com ela inegáveis beneficios, como também efeitos
perversos. Há tempos ouvi um ilustre orador da nossa praça dizer que em França
esse era tema de debate intenso e que alguns ponderavam acabar com a
arqueologia comercial. Confesso que nao acompanhei esse debate, desconhecendo,
por isso, os fundamentos das diversas posiçoes assumidas. Mas a arqueologia
comercial nao tem por que abandonar-se. Antes disso, seria talvez importante
introduzir (mesmo que de modo coercivo), por exemplo, sistemas de certificaçao
de empresas e de profissionais de carácter obrigatório e assentes em critérios
rigorosos e exigentes, no que toca a meios financeiros, tecnológicos e humanos
próprios.
Arqueologia, História e Antropologia partilham o mesmo
objecto de estudo, pelo menos em parte. Partilham fontes, sendo algumas
exclusivas. Partilham bibliografia... sao primas que nao se querem desavindas.
E qualquer uma delas constitui uma ciência, do campo das ciências sociais.
Querer identificar primazias parece-me pura e disparatada perda de tempo.
Caro Zé Pedro, eu nao sei tudo. Veja-me a ler “A Brief History of
Time” de Stephen Hawkings e verá um burro a olhar para um palácio. Na verdade,
tenho mais perguntas que respostas. O pós-modernismo levanta questoes
pertinentes e constitui um avanço qualitativo de inegável substância. Mas é um
rótulo inadequado: inclui demasiadas correntes díspares, merecedoras de
catalogaçao própria. As preocupaçoes com o mundo simbólico nao pode incluir-se
no mesmo saco que o contributo prestado pela arqueologia de género. É quase
como a enorme quantidade de correntes modernistas criadas por Pessoa, algumas
delas compostas por um único poema. Mas o que é importante reter é se esses
trabalhos contribuem ou nao para um salto qualitativo. André de Resende (mau
grado os falsos que engendrou) inovou, Cenáculo inovou, Pitt-Rivers inovou,
Wheeler inovou, Leroi-Gouhran inovou, Binford inovou, Barker inovou, Harris
inovou, Hodder inovou, Trigger inovou, Diaz-Andreu inovou, entre muitos
outros. Mas nenhum deu o passo definitivo. Provavelmete jámais alguém o dará.
Mas todos deram um contributo válido e útil. Porque meterarm maos à obra. Eu,
ao contrário, ainda nao fiz nada que se possa apresentar em casa.
Em
suma, parece-me que o que nos aflige é que a pressao do afã de lucro obrigue
os profissionais da arqueologia comercial a descurar o processo de escvaçao
estratigráfico e técnicas de registo a ele associados, substituindo-o pelo
processo arbitrário, o que constituiria um (tenho ganas de dizer estúpido)
retrocesso de meio século. É facil concordar com esta posiçao. E há que
trabalhar para que tal cenário temido nao se materialize.
Quer-me
entao parecer que, bilis à parte, sao mais os pontos de concórdia entre os
elementos da comunidade, do que propriamente as divergências insana(vei)s.
Como diz o adágio anglo-saxónico: ate the game don’t ate the player.
Estou a 8 meses de terminar o usufruto pleno da idade do chamado de
Cristo. Sou, portanto, bastante jovem, com muito ainda por aprender. E jovem
pretendo, em jeito mui parmenidiano, continuar a ser. É que pouco tenho a
ensinar. Mas esse pouco é, creio, de incomensurável valor e pode dizer-se num
segundo em duas palavras apenas: aprender compensa!
Agora vou
desfrutar do que queda das curtas vacances, pois a Maria quer ir beber um
cafézinho antes de voltar à praia e amanha o trabalho volta a bater à porta.
Bem (h)ajam e até uma próxima oportunidade,
Raul
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