E vai daí crie-se uma nova lei Acrescentam-se ainda nesta proposta de lei, algumas preciosidades que dão a noção de que quem a elaborou não compreende o seu alcance em matéria de salvaguarda do nosso património urbano. Refere-se, por exemplo, que é admissível o aproveitamento do vão da cobertura como piso, com possibilidade de abertura de vãos para comunicação com o exterior. Todas estas facilidades passam a aplicar-se em operações ditas de reabilitação em qualquer zona da cidade e em todos os edifícios, excepto os que se encontram classificados ou em vias de classificação, não se prevendo, como na Lei anterior, a necessidade de colher parecer das entidades de tutela do património arquitectónico e arqueológico, passando esta responsabilidade a ser apenas assumida pelas Câmaras Municipais, através das designadas Unidades Orgânicas Flexíveis que deverão integrar técnicos com as competências funcionais necessárias. Um outro factor de agilização é o que se aplica, caso se verifiquem irregularidades… Nessas situações é criada uma Comissão de Peritos (apenas neste caso se podem convocar entidades externas à Câmara) comissão esta que tem 15 dias para se pronunciar. Mas, atenção… muito importante… a obra não é obrigada a parar! Caso não seja dada qualquer resposta dentro desse prazo, considera-se o parecer como favorável. Como se pode observar, esta proposta de Lei, feita no sentido de salvar um importante sector da economia que, apesar dos inúmeros avisos de que era preciso inverter a tendência nunca se mexeu, poderá colocar agora em risco o nosso património arquitectónico e arqueológico, com especial relevância para os centros históricos, a maior parte deles abrangidos ainda por áreas de protecção de monumentos ou zonas especiais de protecção com legislação própria. Se durante anos o nosso sector da construção apenas, e só, se dedicou, deliberadamente à obra nova, não será de um momento para o outro que ficará capacitado de intervir em áreas tão sensíveis como são as zonas históricas. Podemos afirmar que, apesar dos muitos atropelos que têm sofrido (as leis têm sempre inúmeras excepções…), estes locais têm conseguido sobreviver, podendo-se dizer que foi em grande parte graças a esta situação legal, que temos hoje duas zonas históricas consideradas por peritos internacionais como de valor mundial. Lembremo-nos que foi fruto desta circunstância e também de um regime obsoleto de rendas que temos hoje um património arquitectónico com características ímpares em termos europeus, onde a maior parte dos centros históricos foi alvo de grandes reconstruções, sobretudo no período pós-guerra. Este património pode, e deve, ser uma oportunidade e não mais um mau negócio para o país. Se é certo que precisamos urgentemente de acções de reabilitação urbana, não precisamos e não devemos, aplicar os mesmos princípios que se aplicaram desde sempre à construção nova. Necessitamos, nestes casos, de aplicar as regras e os tratados internacionais que Portugal está obrigado, criar oportunidades aos mais jovens de habitarem no centro, animar as zonas históricas com novas actividades, conjugando-as com os velhos hábitos. Necessitamos ainda de empresas especializadas que, em conjunto com a tutela, possam garantir a salvaguarda de um património que a todos pertence e que, em alguns casos, é de toda a humanidade ! Contrariamente ao que seria suposto é exactamente na cidade do Porto, classificada como Património da Humanidade, que decorre um dos piores exemplos de Reabilitação Urbana que mais não é que uma verdadeira operação de Renovação Urbana, um pronuncio do que poderá acontecer ser for aprovada a Lei agora proposta pelo Governo. Trata-se da intervenção a decorrer no Quarteirão das Cardosas, situado entre as Praças da Liberdade e de Almeida Garrett e a Rua das Flores e de Trindade Coelho. Esta mega operação urbanística, da responsabilidade da Porto Vivo SRU - Sociedade de Reabilitação Urbana da Baixa Portuense, praticamente apenas previu a manutenção das fachadas (dentro de um conjunto enorme de edifícios históricos), servindo esta manutenção mais para ocultar o que se passa na retaguarda do que para preservar a memória como é dito nos documentos. Nesta deturpada perspectiva do que é Reabilitação Urbana, criou-se ainda outra perversidade que foi a substituição dos antigos habitantes da cidade, por uma classe endinheirada que tem poder económico para comprar habitações de luxo com direito a lugares de estacionamento e acesso directo a estabelecimentos da moda também a construir no local. A este quarteirão poderão seguir-se então outros tantos por esse país fora, assim existam leis que o favoreçam e alguns milhões de euros a ajudar… E é exactamente aqui que vamos pegar na história de Jessica (nome dado a um fundo de investimento de mil milhões de euros apresentado pelo Governo para operações de Reabilitação Urbana), a jeito de parábola: Imagino então a história da Jessica uma bela e insuspeita rapariga, um tanto ou quanto estrangeirada, que tendo ficado sem emprego (problema da crise…), decide regressar à velhinha casa de sua avó, encontrando-a tal como a tinha deixado, rodeada de memórias e retratos. Jessica que não perde tempo, passa imediatamente à acção, extorquindo tudo o que podia à pobre senhora, iniciando uma verdadeira operação de renovação do velho lar, condenando ao lixo todos os móveis e outros objectos que, guardados após várias gerações, não se coadunam com um estilo de vida mais moderno. Tal foi a agitação por esses dias e o sofrimento desta avó embasbacada perante a invasão IKEA do seu lar, que não tardou que a pobre sucumbisse, traída por uma insuficiência cardíaca que arrastava desde há décadas.
Maria Ramalho |
Mensagem anterior por data: [Archport] Dente de Tyrannosaurus rex , insólito | Próxima mensagem por data: [Archport] Museu Arqueológico do Fundão tem os Melhores Serviços Educativos do País |
Mensagem anterior por assunto: Re: [Archport] A propósito da carta ao Director do IGESPAR… | Próxima mensagem por assunto: [Archport] ARA – Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da Beira Interior - Divulgação de site |