De: francisco jose paixao [mailto:fjagp@hotmail.com]
Enviada em: terça-feira, 6 de Março de 2012 11:34
Sobre a situação surrealista que o Museu Regional de Beja está a viver Joaquim Oliveira Caetano tece alguns comentários, numa entrevista dada ao semanário Diário do Alentejo, esta semana.
Joaquim Caetano: Museu de Beja deve ser “o grande centro interpretativo da cidade”
É grande demais para ser gerido por um único município, mesmo se capital de distrito. Não se ajusta à sua atual moldura institucional, a Assembleia Distrital de Beja. Foi descartado pelo Estado que, prestes a criar uma nova Direção-Geral do Património Cultural, não disse ainda uma palavra sobre a “crise aguda” que ali se vive. O Museu Regional de Beja está numa encruzilhada. E a cidade não pode aceitar a perda de uma instituição que conta a sua própria história por meio de um espólio de riqueza inestimável. O alerta é de Joaquim Caetano, conservador de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga e um bejense para quem o Convento da Conceição deve ser tão-só a “âncora” patrimonial e turística da cidade.
Texto Carla Ferreira
Como comenta a difícil situação financeira em que se encontra o Museu Regional de Beja, cujo funcionamento e, inclusivamente, a abertura ao público podem estar em causa?
Juridicamente, até me parece uma situação estranha. Para todos os efeitos, os funcionários do museu são funcionários públicos e não me consta que tenha havido muitos casos de funcionários públicos com salários em atraso. É uma situação atípica, e isso também tem a ver com o facto de o museu estar ligado a uma instituição cuja operacionalidade é também hoje bastante difusa. Não há dúvida de que o Museu Regional de Beja deve ser um museu do Estado. As assembleias distritais, antigas juntas distritais, são órgãos colegiais em que as câmaras estão em paridade e, obviamente, têm interesses e um empenhamento diferentes sobre um museu que está na capital de distrito.
E isto está a acontecer num timing que é também ele muito complicado. Vai ser criado, no dia 1 de março, a nova Direção-Geral do Património Cultural, o que quer dizer que, neste preciso momento, aquilo que tem sido o motor da política museológica nos últimos 20 anos está a acabar. E é absolutamente estranho que, em relação a esta situação de crise muito aguda num dos principais museus fora de Lisboa, como é o de Beja, não se oiça uma voz do Instituto dos Museus e da Conservação ou da Rede Portuguesa de Museus. Há aqui um timing que me deixa muito perplexo.
No orçamento recentemente aprovado pela Assembleia Distrital de Beja, a própria Câmara de Beja votou contra, ou seja, recusou a comparticipação financeira que lhe cabe. Como classifica esta tomada de posição?
Eu não consigo perceber. O facto de a Câmara de Beja dizer “agora não pagamos” não resolve coisa nenhuma, porque há os funcionários que têm que ser pagos, dada a sua estrutura jurídica. O espólio não pode ser desbaratado, o edifício também não pode ser deitado abaixo e não creio que a Câmara de Beja seja tão cega que não veja o potencial imenso que aquele museu tem para a cidade. Hoje em dia, já não se fazem museus daqueles. Seria impossível reunir um espólio com aquela riqueza num museu feito de raiz. E cidades como Beja, que se voltam para um turismo cultural de pequena escala, precisam de ter instituições âncora. E por muitas escavações que façam, Beja não vai ter uma situação âncora do ponto de vista patrimonial melhor do que o Convento da Conceição e do que o espólio do seu museu. Eu, na melhor das hipóteses, acho que talvez a Câmara de Beja queira iniciar uma crise para que se resolva, de uma vez por todas, a situação de enquadramento institucional do museu. Porque, em si mesma, esta tomada de posição é um agudizar de um problema, não resolve nada.
Consegue sugerir um caminho alternativo?
Houve uma altura em que o Museu Regional de Beja esteve quase para passar para o Instituto Português de Museus. A meu ver, devia tê-lo feito porque o seu espólio é importantíssimo, mesmo no contexto nacional. Tem um edifício que, em si mesmo, é um edifício fundamental na história da arquitetura portuguesa, tem peças absolutamente fundamentais, uma coleção de pintura ótima, uma coleção de paramentaria ótima; toda aquele mundo da soror Mariana também é uma mais-valia. E tem peças que são obras-primas da arte portuguesa, aqueles andores de prata de São João Batista e de São João Evangelista, a escudela do Pero de Faria…
Disse recentemente que o acervo do Museu Regional de Beja é mais valioso do que a Coleção Berardo, exposta no Centro Cultural de Belém…
Não é só uma questão de dinheiro. É possível fazer uma Coleção Berardo se houver dinheiro e se esperarmos três ou quatro anos para que aquele tipo de peças apareçam em leilões internacionais. Nada disso é possível com um espólio da natureza do do Museu de Beja. Não só porque são peças que não aparecem, tout court, nos leilões internacionais, mas também porque o Museu de Beja é um museu com muitos sedimentos, que vêm da coleção de Frei Manuel do Cenáculo, da coleção arqueológica que a Câmara de Beja tinha, do Governo Civil, do próprio bispo, além de todas as doações.
Que história está na origem do Museu Regional de Beja?
A história do nascimento do Museu de Beja é verdadeiramente uma história cívica. O museu começa a ser criado a partir da força e da dinâmica que Umbelino da Palma cria no jornal “O Bejense”, que é fundado em 1860. Estamos numa altura terrível da história do património na cidade – é a altura das grandes destruições. O Convento da Esperança, parte do Convento da Conceição, as igrejas, como a de São João, e o Hospício de Santo António estavam a ser destruídos. Há toda uma modernização da cidade que corresponde ao advento de uma nova classe dirigente, que se tinha apropriado das terras que eram dos conventos e construído uma nova riqueza. Era uma cidade que se queria de referências modernas, arejada, de certa maneira anticlerical. Mas isso tinha o reverso da destruição patrimonial e “O Bejense” é a voz da cidade contra essa destruição, chamando a atenção para a necessidade de construção de um museu que reunisse e salvaguardasse esse espólio. Esse primeiro museu é criado em 1892. E, depois, temos o século XX com as escavações do Abel Viana, que são feitas em todo o Baixo Alentejo e cujo espólio vai para ali. É uma instituição com 120 anos de história continuada.
Ao nível da sua área de estudo, a pintura, quais são as grandes joias da coroa do Museu de Beja?
O meu primeiro artigo, faz este ano 30 anos, foi sobre quatro pinturas do Museu de Beja, pintadas em 1564/65, por António Nogueira, um pintor de Évora. Há pintura flamenga de muito boa qualidade, a “Virgem com o Menino”, de que há várias réplicas, aliás; a “Virgem da Rosa”, do Francisco de Campos, uma peça fundamental; e depois há na pintura do século XVII, da coleção do Frei Manuel do Cenáculo, as pinturas atribuídas ao espanhol José de Ribera… O que é também espantoso no Museu de Beja é a ligação que as peças fazem com o espaço. Podemos ir ao Museu do Azulejo e ver pequenos painéis que nos dão todo um mostruário do que era o hispano-árabe em Portugal, mas temos que ir ao Museu de Beja para ver como isso funciona e se organiza, tudo montado, naquela Sala do Capítulo. É claro que o Museu de Beja precisa de investimento, porque é pequeno para o espólio e tem muito espólio que não se dá muito bem entre si. O museu dava para criar polos dentro da cidade, fazendo um percurso que poderia ser um caso de sucesso e de ancoragem do turismo. Ou seja, o Museu de Beja é um caso que estaria destinado para uma ideia de região, se as regiões tivessem vingado. É o tipo de equipamento que é grande demais para uma câmara, em termos de gestão, e face ao qual o Estado parece que tem sobretudo preocupação em não gastar dinheiro. Tem de haver escolhas e, quando as instituições chegam até nós com uma vida centenária e trazendo atrás de si toda a história de um sítio, é claro que ninguém pode aceitar que de uma forma leviana se faça tábua rasa isso.
Há alguma forma de estas peças serem rentáveis, sem a necessidade de aliená-las?
Os nossos museus nascem de “acidentes” históricos e, desse ponto de vista, as peças chegam-nos carregadas de uma determinada história, não são simplesmente posters, obras de arte descontextualizadas. O que tem que acontecer é, por exemplo, haver uma certa responsabilidade na criação de museus novos. O que aconteceu em muitos casos, até mesmo no Alentejo, foi que os fundos comunitários permitiram um grande apoio para a obra e isso levou câmaras a abalançar-se para fazer projetos novos. Depois as coisas começam a falhar. Houve museus que foram premiados, que já fecharam. Tem que haver uma certa ideia do investimento em continuidade e da rentabilidade cultural que se tira. Por exemplo, é muito interessante do ponto de vista do conhecimento da cidade, as escavações que se fizeram na rua do Sembrano. Agora, não é possível criar um museu em cada escavação que dê semelhantes resultados.
Sendo natural de Beja, nunca vislumbrou no museu regional um desafio profissional?
Não. Eu, quando saí do Museu de Évora, onde estive 11 anos, fechei a minha carreira na administração de museus. Para ser bem feita, é uma tarefa que se faz com grande prejuízo daquilo que mais me interessa, que é estudar pintura dos séculos XV e XVI. Além disso, era um projeto que não ia ter continuidade. O museu tinha acabado a primeira fase das obras e era claro – está a ser – que não ia haver uma segunda fase. O meu retorno ao Museu Nacional de Arte Antiga foi muito importante, porque coincidiu com a possibilidade de fazermos uma grande exposição sobre os primitivos portugueses, que foi um sucesso de público e já teve duas mostras parcelares em Espanha. E, por outro lado, com a criação de um centro de investigação na Universidade de Évora, que teve candidaturas para equipamentos que são hoje essenciais para um avanço qualitativo muitíssimo grande em relação àquilo que sabíamos sobre esta pintura, de um período que corresponde exatamente ao período áureo também de Beja. Há um período para tudo e isto é de facto aquilo que me interessa agora.
Em tempos de crise, até que ponto é necessário repensar o papel dos museus?
Vai haver falta de dinheiro sempre, é evidente. Agora, há duas dimensões que têm que colocar-se. Não há nenhum tipo de democracia cultural sem museus. Os museus são diretamente filhos da Revolução Francesa. Nascem porque é necessário pôr à disposição da comunidade, do povo, bens patrimoniais que são relevantes e que estavam apenas nos palácios. A possibilidade de uma pessoa “normal” ver um Ticiano, um Velásquez ou um Nuno Gonçalves deve-se à existência de um museu. Outro aspeto importantíssimo é que os museus existem para conservar, os museus não trabalham com o público deste ano. Daqui a 50, 60 anos, o público desta cidade e deste país deve continuar a fruir destas peças. Há muita falta de dinheiro para a cultura mas, sobretudo, o que tem havido é um malbaratar de dinheiro em projetos que não têm continuidade. Por vezes, os autarcas têm uma espécie de orgulho, talvez natural, em lançar novos projetos, mas esta situação de crise o que nos deve é obrigar a repensar o que são os projetos âncora, o que é que é verdadeiramente importante. E, no caso de Beja, o que temos que pensar é o que se perde, se se perde o museu regional. É óbvio que se pode fazer três dias de glamour a beber vinho no castelo, mas não é isso que dá uma imagem à cidade. Um museu como o de Beja deve ser o grande centro interpretativo da cidade.
Bem longe do esplendor renascentista
Enquanto se reverencia com nostalgia uma cidade romana que foi florescente mas que hoje jaz sob as calçadas, esquece-se que Beja “é um campo de experiências no Renascimento português absolutamente incontornável”. Sem o qual não se pode estudar como se processou a mudança urbanística da Idade Média para a Modernidade, considera Joaquim Caetano. Exemplos disso são o Hospital da Nossa Senhora da Piedade, uma construção manuelina de que já não restam réplicas na capital do País. Segundo o especialista em pintura desse mesmo período (séculos XV e XVI), tais vestígios, que estão à vista de todos – entre a praça da República, que D. Manuel I, duque de Beja, quis “monumentalizar”, e o largo da Conceição – estão “subaproveitados”, quer do ponto de vista “turístico”, quer “referencial”. “As pessoas chegam a Beja e têm uma certa dificuldade em perceber a cidade, a sua evolução. E cada vez mais”, lamenta. Para Caetano, a maleita dá pelo nome de “negação urbanística do núcleo central”, reflete-se num centro histórico “cada vez mais deserto e degradado” e numa periferia que lhe “voltou completamente as costas”, resultando até em sintomas que afetam a sociabilidade. “Se as pessoas vão viver para longe, andam menos a pé e encontram menos as outras, não param, não conversam. É um espaço que deixou de ser um referencial”, reflete o conservador de pintura. Outras das razões desta “profunda crise”, tanto urbanística como social, prende-se com o distanciamento das elites económicas, e em grande medida também culturais, em relação a uma cidade onde outrora qualquer grande senhor da terra tinha estabelecidos moradia e família, numa continuidade geracional. “Hoje em dia, numa situação em que grande parte da exploração agrícola é de tipo empresarial, não é líquido que isso aconteça. Pode haver facilmente um distanciamento, pelo menos cultural”, remata Joaquim Caetano. CF
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