Sobre a situação surrealista que o Museu Regional de Beja está a
viver Joaquim Oliveira Caetano tece alguns comentários, numa entrevista
dada ao semanário Diário do Alentejo,
esta semana.
Joaquim Caetano: Museu de Beja deve ser “o grande centro interpretativo
da cidade”
É grande demais para ser gerido por um único município, mesmo se
capital de distrito. Não se ajusta à sua atual moldura institucional, a
Assembleia Distrital de Beja. Foi descartado pelo Estado que, prestes a criar
uma nova Direção-Geral do Património Cultural, não disse ainda uma palavra
sobre a “crise aguda” que ali se vive. O Museu Regional de Beja está numa
encruzilhada. E a cidade não pode aceitar a perda de uma instituição que conta
a sua própria história por meio de um espólio de riqueza inestimável. O alerta
é de Joaquim Caetano, conservador de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga e
um bejense para quem o Convento da Conceição deve ser tão-só a “âncora” patrimonial
e turística da cidade.
Texto Carla Ferreira
Como comenta a difícil situação
financeira em que se encontra o Museu Regional de Beja, cujo funcionamento e,
inclusivamente, a abertura ao público podem estar em causa?
Juridicamente, até me parece uma situação estranha. Para todos os efeitos, os
funcionários do museu são funcionários públicos e não me consta que tenha
havido muitos casos de funcionários públicos com salários em atraso. É uma
situação atípica, e isso também tem a ver com o facto de o museu estar ligado a
uma instituição cuja operacionalidade é também hoje bastante difusa. Não há
dúvida de que o Museu Regional de Beja deve ser um museu do Estado. As
assembleias distritais, antigas juntas distritais, são órgãos colegiais em que
as câmaras estão em paridade e, obviamente, têm interesses e um empenhamento
diferentes sobre um museu que está na capital de distrito.
E isto está a acontecer num timing que é também ele muito complicado. Vai ser
criado, no dia 1 de março, a nova Direção-Geral do Património Cultural, o que
quer dizer que, neste preciso momento, aquilo que tem sido o motor da política
museológica nos últimos 20 anos está a acabar. E é absolutamente estranho que,
em relação a esta situação de crise muito aguda num dos principais museus fora
de Lisboa, como é o de Beja, não se oiça uma voz do Instituto dos Museus e da
Conservação ou da Rede Portuguesa de Museus. Há aqui um timing que me deixa
muito perplexo.
No orçamento recentemente aprovado pela
Assembleia Distrital de Beja, a própria Câmara de Beja votou contra, ou seja,
recusou a comparticipação financeira que lhe cabe. Como classifica esta tomada
de posição?
Eu não consigo perceber. O facto de a Câmara de Beja dizer “agora não pagamos”
não resolve coisa nenhuma, porque há os funcionários que têm que ser pagos,
dada a sua estrutura jurídica. O espólio não pode ser desbaratado, o edifício
também não pode ser deitado abaixo e não creio que a Câmara de Beja seja tão
cega que não veja o potencial imenso que aquele museu tem para a cidade. Hoje
em dia, já não se fazem museus daqueles. Seria impossível reunir um espólio com
aquela riqueza num museu feito de raiz. E cidades como Beja, que se voltam para
um turismo cultural de pequena escala, precisam de ter instituições âncora. E
por muitas escavações que façam, Beja não vai ter uma situação âncora do ponto
de vista patrimonial melhor do que o Convento da Conceição e do que o espólio
do seu museu. Eu, na melhor das hipóteses, acho que talvez a Câmara de Beja
queira iniciar uma crise para que se resolva, de uma vez por todas, a situação
de enquadramento institucional do museu. Porque, em si mesma, esta tomada de
posição é um agudizar de um problema, não resolve nada.
Consegue sugerir um caminho
alternativo?
Houve uma altura em que o Museu Regional de Beja esteve quase para passar para
o Instituto Português de Museus. A meu ver, devia tê-lo feito porque o seu
espólio é importantíssimo, mesmo no contexto nacional. Tem um edifício que, em
si mesmo, é um edifício fundamental na história da arquitetura portuguesa, tem
peças absolutamente fundamentais, uma coleção de pintura ótima, uma coleção de
paramentaria ótima; toda aquele mundo da soror Mariana também é uma mais-valia.
E tem peças que são obras-primas da arte portuguesa, aqueles andores de prata
de São João Batista e de São João Evangelista, a escudela do Pero de Faria…
Disse recentemente que o acervo do
Museu Regional de Beja é mais valioso do que a Coleção Berardo, exposta no
Centro Cultural de Belém…
Não é só uma questão de dinheiro. É possível fazer uma Coleção Berardo se
houver dinheiro e se esperarmos três ou quatro anos para que aquele tipo de
peças apareçam em leilões internacionais. Nada disso é possível com um espólio
da natureza do do Museu de Beja. Não só porque são peças que não aparecem, tout
court, nos leilões internacionais, mas também porque o Museu de Beja é um museu
com muitos sedimentos, que vêm da coleção de Frei Manuel do Cenáculo, da
coleção arqueológica que a Câmara de Beja tinha, do Governo Civil, do próprio
bispo, além de todas as doações.
Que história está na origem do Museu
Regional de Beja?
A história do nascimento do Museu de Beja é verdadeiramente uma história
cívica. O museu começa a ser criado a partir da força e da dinâmica que
Umbelino da Palma cria no jornal “O Bejense”, que é fundado em 1860. Estamos
numa altura terrível da história do património na cidade – é a altura das
grandes destruições. O Convento da Esperança, parte do Convento da Conceição,
as igrejas, como a de São João, e o Hospício de Santo António estavam a ser
destruídos. Há toda uma modernização da cidade que corresponde ao advento de
uma nova classe dirigente, que se tinha apropriado das terras que eram dos
conventos e construído uma nova riqueza. Era uma cidade que se queria de referências
modernas, arejada, de certa maneira anticlerical. Mas isso tinha o reverso da
destruição patrimonial e “O Bejense” é a voz da cidade contra essa destruição,
chamando a atenção para a necessidade de construção de um museu que reunisse e
salvaguardasse esse espólio. Esse primeiro museu é criado em 1892. E, depois,
temos o século XX com as escavações do Abel Viana, que são feitas em todo o
Baixo Alentejo e cujo espólio vai para ali. É uma instituição com 120 anos de
história continuada.
Ao nível da sua área de estudo, a
pintura, quais são as grandes joias da coroa do Museu de Beja?
O meu primeiro artigo, faz este ano 30 anos, foi sobre quatro pinturas do Museu
de Beja, pintadas em 1564/65, por António Nogueira, um pintor de Évora. Há
pintura flamenga de muito boa qualidade, a “Virgem com o Menino”, de que há
várias réplicas, aliás; a “Virgem da Rosa”, do Francisco de Campos, uma peça
fundamental; e depois há na pintura do século XVII, da coleção do Frei Manuel
do Cenáculo, as pinturas atribuídas ao espanhol José de Ribera… O que é também
espantoso no Museu de Beja é a ligação que as peças fazem com o espaço. Podemos
ir ao Museu do Azulejo e ver pequenos painéis que nos dão todo um mostruário do
que era o hispano-árabe em Portugal, mas temos que ir ao Museu de Beja para ver
como isso funciona e se organiza, tudo montado, naquela Sala do Capítulo. É
claro que o Museu de Beja precisa de investimento, porque é pequeno para o
espólio e tem muito espólio que não se dá muito bem entre si. O museu dava para
criar polos dentro da cidade, fazendo um percurso que poderia ser um caso de
sucesso e de ancoragem do turismo. Ou seja, o Museu de Beja é um caso que
estaria destinado para uma ideia de região, se as regiões tivessem vingado. É o
tipo de equipamento que é grande demais para uma câmara, em termos de gestão, e
face ao qual o Estado parece que tem sobretudo preocupação em não gastar
dinheiro. Tem de haver escolhas e, quando as instituições chegam até nós com
uma vida centenária e trazendo atrás de si toda a história de um sítio, é claro
que ninguém pode aceitar que de uma forma leviana se faça tábua rasa isso.
Há alguma forma de estas peças serem
rentáveis, sem a necessidade de aliená-las?
Os nossos museus nascem de “acidentes” históricos e, desse ponto de vista, as
peças chegam-nos carregadas de uma determinada história, não são simplesmente
posters, obras de arte descontextualizadas. O que tem que acontecer é, por
exemplo, haver uma certa responsabilidade na criação de museus novos. O que
aconteceu em muitos casos, até mesmo no Alentejo, foi que os fundos
comunitários permitiram um grande apoio para a obra e isso levou câmaras a
abalançar-se para fazer projetos novos. Depois as coisas começam a falhar.
Houve museus que foram premiados, que já fecharam. Tem que haver uma certa
ideia do investimento em continuidade e da rentabilidade cultural que se tira.
Por exemplo, é muito interessante do ponto de vista do conhecimento da cidade,
as escavações que se fizeram na rua do Sembrano. Agora, não é possível criar um
museu em cada escavação que dê semelhantes resultados.
Sendo natural de Beja, nunca vislumbrou
no museu regional um desafio profissional?
Não. Eu, quando saí do Museu de Évora, onde estive 11 anos, fechei a minha
carreira na administração de museus. Para ser bem feita, é uma tarefa que se
faz com grande prejuízo daquilo que mais me interessa, que é estudar pintura
dos séculos XV e XVI. Além disso, era um projeto que não ia ter continuidade. O
museu tinha acabado a primeira fase das obras e era claro – está a ser – que
não ia haver uma segunda fase. O meu retorno ao Museu Nacional de Arte Antiga
foi muito importante, porque coincidiu com a possibilidade de fazermos uma
grande exposição sobre os primitivos portugueses, que foi um sucesso de público
e já teve duas mostras parcelares em Espanha. E, por outro lado, com a criação
de um centro de investigação na Universidade de Évora, que teve candidaturas
para equipamentos que são hoje essenciais para um avanço qualitativo muitíssimo
grande em relação àquilo que sabíamos sobre esta pintura, de um período que
corresponde exatamente ao período áureo também de Beja. Há um período para tudo
e isto é de facto aquilo que me interessa agora.
Em tempos de crise, até que ponto é
necessário repensar o papel dos museus?
Vai haver falta de dinheiro sempre, é evidente. Agora, há duas dimensões que
têm que colocar-se. Não há nenhum tipo de democracia cultural sem museus. Os
museus são diretamente filhos da Revolução Francesa. Nascem porque é necessário
pôr à disposição da comunidade, do povo, bens patrimoniais que são relevantes e
que estavam apenas nos palácios. A possibilidade de uma pessoa “normal” ver um
Ticiano, um Velásquez ou um Nuno Gonçalves deve-se à existência de um museu.
Outro aspeto importantíssimo é que os museus existem para conservar, os museus
não trabalham com o público deste ano. Daqui a 50, 60 anos, o público desta
cidade e deste país deve continuar a fruir destas peças. Há muita falta de
dinheiro para a cultura mas, sobretudo, o que tem havido é um malbaratar de
dinheiro em projetos que não têm continuidade. Por vezes, os autarcas têm uma
espécie de orgulho, talvez natural, em lançar novos projetos, mas esta situação
de crise o que nos deve é obrigar a repensar o que são os projetos âncora, o
que é que é verdadeiramente importante. E, no caso de Beja, o que temos que
pensar é o que se perde, se se perde o museu regional. É óbvio que se pode
fazer três dias de glamour a beber vinho no castelo, mas não é isso que dá uma
imagem à cidade. Um museu como o de Beja deve ser o grande centro
interpretativo da cidade.
Bem longe do esplendor renascentista
Enquanto se reverencia com nostalgia uma cidade romana que foi florescente mas
que hoje jaz sob as calçadas, esquece-se que Beja “é um campo de experiências
no Renascimento português absolutamente incontornável”. Sem o qual não se pode
estudar como se processou a mudança urbanística da Idade Média para a
Modernidade, considera Joaquim Caetano. Exemplos disso são o Hospital da Nossa
Senhora da Piedade, uma construção manuelina de que já não restam réplicas na
capital do País. Segundo o especialista em pintura desse mesmo período (séculos
XV e XVI), tais vestígios, que estão à vista de todos – entre a praça da
República, que D. Manuel I, duque de Beja, quis “monumentalizar”, e o largo da
Conceição – estão “subaproveitados”, quer do ponto de vista “turístico”, quer
“referencial”. “As pessoas chegam a Beja e têm uma certa dificuldade em
perceber a cidade, a sua evolução. E cada vez mais”, lamenta. Para Caetano, a
maleita dá pelo nome de “negação urbanística do núcleo central”, reflete-se num
centro histórico “cada vez mais deserto e degradado” e numa periferia que lhe
“voltou completamente as costas”, resultando até em sintomas que afetam a
sociabilidade. “Se as pessoas vão viver para longe, andam menos a pé e
encontram menos as outras, não param, não conversam. É um espaço que deixou de
ser um referencial”, reflete o conservador de pintura. Outras das razões desta
“profunda crise”, tanto urbanística como social, prende-se com o distanciamento
das elites económicas, e em grande medida também culturais, em relação a uma
cidade onde outrora qualquer grande senhor da terra tinha estabelecidos moradia
e família, numa continuidade geracional. “Hoje em dia, numa situação em que grande
parte da exploração agrícola é de tipo empresarial, não é líquido que isso
aconteça. Pode haver facilmente um distanciamento, pelo menos cultural”, remata
Joaquim Caetano. CF