[Archport] Fw: Público e Privado
Caro Luís Raposo,
... e no entanto estamos a conversar.
Ao trazer o problema para o plano
das pessoas, dos agentes, não creio estar a falar de forma abstracta, antes
pelo contrário. É uma escala do problema bem concreta. Abstractos são os
modelos, embora seja com eles que procuramos conformar a nossa acção individual
e colectiva.
Neste eterno debate, como referia
o Victor Jorge, o que me incomoda não é a existência de Estado com "serviços
públicos executados por agentes públicos". Para mim sobre isso não
há grande dúvida: não concebo que possa ser de outra maneira. O que me
incomoda é o juízo ético e moral lançado sobre a acção de quem não age
no serviço público e a confusão entre agir "no serviço público",
"agir ao serviço do público" e "agir servindo-se do público".
Ora se no primeiro caso estão representados apenas os funcionários públicos,
nos restantes dois estão todos representados, incluindo os funcionários
públicos.
Ou seja, a ética e moralidade que
informa as opções ideológicas e políticas não pode ser alheia à prática
observada e registada e ser também ela idealizada. E como nisso não vejo
grandes diferenças, reconheço que é cada vez mais difícil optar incondicionalmente
por um dos lados.
Que um Estado para poder ser soberano
tenha que dispor de meios para o ser, parece-me óbvio. No caso específico
do Património, parece-me perfeitamente natural que chame a si a responsabilidade
de deter e administrar património de interesse nacional e mundial. Que
o utilize no âmbito do seu programa político e ideológico. Mas nada impede
que na gestão patrimonial, a sociedade, dita civil, seja chamada a participar
sem que o anátma "lucro" seja de imediato evocado. Essa participação
até poderá ser "moderadora" de excessos de manipulação ideológica
do património e dos discursos sobre ele produzidos. A pluralidade é um
bem e um dinâmo e nem sempre o Estado tende a garanti-la, habituado que
está a impor. É que a generalização de que quem se mexe se mexe antes demais
por lucro é uma imagem grosseira. A ser assim, não existiriam agentes na
área do património arqueológico, por exemplo.
E por aqui me fico, pois este assunto
é complexo e sério e nada compatível com os simplismos, generalizações
e outras coisas que inevitavelmente estas mensagens acabam por aqui assumir.
António Carlos Valera
Direcção do Núcleo de Investigação Arqueológica - NIA
ERA Arqueologia SA.
Cç. de Santa Catarina, 9C,
1495-705 Cruz Quebrada - Dafundo
antoniovalera@era-arqueologia.pt
www.era-arqueologia.pt
----- Forwarded by António
Valera/ERA on 17-10-2012 09:40 -----
"LRaposo" <3raposos@sapo.pt>
Sent by: archport-bounces@ci.uc.pt
17-10-2012 09:09
|
To
| "ARCHPORT" <Archport@ci.uc.pt>
|
cc
|
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Subject
| Re: [Archport] Público e Privado |
|
Caro António Valera,
Concordo na substância com quase tudo
o que dizes abaixo, mas isso é pouco importa.
Discordaria apenas num ponto pequeno,
porventura menor: numa sociedade política organizada, seja ela tribal ou
estatal, o “bem comum”, que é difuso, reconheço, é definido através das
modalidades encontradas para investir alguns do poder da representação
e da acção em nome de todos.
No caso concreto – e é esse que afinal
motiva o comentário – os monumentos a que colectivamente foi entendido
reconhecer significado simbólico comum podem evidentemente ser geridos
por privados, visando (muito legitimamente) não apenas a satisfação das
suas necessidades de vida (tão respeitáveis como as dos “agentes públicos”),
como a acumulação de recursos que lhes permitam maior ascendência presente,
ou futura, sobre terceiros, ou seja, aquilo que habitualmente se chama
“lucro” (coisa que aos “agentes públicos” é interdita, vá-se lá saber
porquê...).
Podem os monumentos ser assim geridos
privadamente, desde logo debaixo de ideologias liberais que eu nem sequer
contesto (até porque intervim inicialmente nesta matéria como Presidente
do ICOM Portugal e, nesta qualidade, não me é lícito optar pelas minhas
convicções e ideologias pessoais). Mas podem também ser geridos privadamente
debaixo de ideologias estatistas, embora admito que dentro de baias e critérios
de eficiência e eficácia muito mais restritos.
Podem, mas não nos iludamos: quem
paga sempre a factura somos todos nós, através dos recursos que colocamos
à disposição do Estado (ou que o Estado nos confisca, enquanto o deixarmos,
está claro).
Mas, sim senhor, aceito que podem.
É por isso que ouso acrescentar não ser nessa oposição que está o verdadeiro
problema. Está este, segundo creio, em saber, por um lado, se / quando
/ como existem para nós, colectivamente falando, ganhos sociais, nessa
opção gestionária privada. No plano material, por exemplo, se ela não envolve
por exemplo custos superiores ao que a gestão pública poderia alcançar
e se não dificulta, ou impede mesmo, a prossecução de políticas coerentes
nacionais, em que o “rentável” contribua para o “não rentável”. E no
plano social e simbólico, por exemplo, se ela promove melhor a cidadania,
quer dizer, a discussão reflexiva sobre identidades (convergências e divergências)
comuns.
Bem vistas as coisas, o grande problema
é de natureza política mais ampla, diria ideológica e simbólica, a saber:
justifica-se a existência de Estado e de serviços públicos executados por
agentes públicos ? Ou tudo pode ser privatizado, mesmo que por tal entendo
apenas a entrega a gestão privada, mantendo todavia a propriedade pública
? As estradas, os tribunais, a polícia, as prisões… enfim, a memória que
nos faz sentir cidadãos, europeus em certos aspectos, portugueses portugueses
noutros, minhotos ou alentejanos noutros ainda ?
Reclamar contra o simplismo da oposição
“público” e “privado” de uma forma abstracta – no que podemos todos
concordar – quando se está perante questões concretas mais não constitui
do que desconversar.
Luís Raposo
----- Original Message -----
From: antoniovalera@era-arqueologia.pt
To:
Sent: Tuesday, October 16, 2012 11:15 PM
Subject: [Archport] Público e Privado
Há hoje, em Portugal
(ou anda por cá há muito, mas hoje ganha maior relevo), uma perigosa dicotomia
em crescendo: o público vs privado. As virtudes estão num lado ou noutro,
segundo a perspectiva, frequentemente interessada (como são, naturalmente,
todas as perspectivas). No dia de hoje, o confronto voltou à cultura e
ao património.
Confesso-me cansado com este pelejar. Como se não houvesse no público incompetência
e abuso (quantos no público não se comportam com o que está à sua guarda
como se fosse para uso e benefício privado, seu?); como se no privado não
houvesse incompetência e má fé egoísta; como se no público não houvesse
dedicação e entrega séria à causa pública; como se no privado não existisse
seriedade e contribuição decisiva para o que de bom fazemos em benefício
da nossa vida social. Enfim, como se quem entra para a função pública fosse
tocado por uma varinha mágica que o transforma num fiel intérprete do bem
comum, paladino contra os interesses egoístas dos que não partilham o público
privilégio; como se quem se dedica ao serviço do Estado não seja competente
e deligente na defesa do difuso bem comum.
Incompetência, má fé, abusos, egoísmos, ética e falta dela, são características
de pessoas, não da área (pública ou privada) onde estão presentes.
Será que teremos que continuar eternamente no balancear entre estes pólos
que, de um lado e do outro destas barricadas que só servem aos respectivos
instalados, se vão guerreando com farpas a que falta o poder de uma argumentação
séria (aquela que também assume a autocrítica)?
Como escreveu Rentes de Carvalho, e diria
alguém que eu conheço, "Cada critério é fatalmente sujeito a erros.
Cada crítica facilmente contraditável."
A situação requere maturidade, empenhamento
e uma capacidade crítica para separar o trigo do joio e ambos estão por
todo o lado. Centremo-nos pois no trigo e no joio e não tanto no "lado".
António Carlos Valera
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