Caro António Valera,
Como bem sabes, concordamos no essencial.
Não considero em absoluto que haja qualquer tipo de linha de demarcação ética pessoal entre público e privado. Ganhar dinheiro para a vida é tão legítimo num caso como noutro.
Nem sequer condeno o lucro organizacional (empresarial, se quiseres), entendido como acumulação de riqueza não necessária à vida e destinada a usar, cedo ou tarde, em "jogos de poder" social. Apenas registo que aos "agentes públicos", enquanto tais, está impedida (ou devia estar...) essa motivação e, pelo menos na tradição europeia, não se constituem também em accionistas do Estado para reclamar dividendos em tempo de "lucros" (já o mesmo não se passa no Oriente, em Macau por exemplo, onde aos agentes públicos é retribuída uma quota-parte dos "lucros" públicos gerados pelo jogo, por exemplo).
Não, o que se passa é que continuo a considerar que existem certos domínios da vida social em que não apenas é legítima a regulação estatal, como o Estado se deve assumir claramente como gestor privilegiado. A memória colectiva, protagonizada em ícones que, bem ou mal, a representam, é uma delas. Outras serão a administração da justiça e a ordem pública, por exemplo. Bem sei que existem ideologias liberais extremas, contrárias ao teu e ao meu pensamento, que consideram serem os tribunais, as polícias ou as prisões instituições que poderiam ser mais rentavelmente geridas por privados. E até admito que o fossem. Bastava que regressámos ao enquadramento societário do Antigo Regime (uso o termo no seu sentido histórico próprio).
Não, não é isso que ambos defendemos.
Inversamente, também conheço como podem ser obscurantistas e opressivos os “agentes públicos” quando comodamente sentados sobre as cadeiras que lhe são outorgadas pelo Poder Político. Tendo passado eu toda a vida a lutar pelo interesse público, numa óptica de “agente público”, sabes bem como tenho combatido o sistema e os seus “agentes”. Hoje em dia, temo até mais o cinzentismo sem rosto do aparelho, dos numerosos “sirs humphreys” que nele pululam, do que as motivações dos políticos de turno, as mais das vezes bem intencionados, mas ineptos (embora os haja também ocasionalmente também pérfidos).
Não, não é também isso que ambos defendemos.
Talvez quanto aos monumentos e museus tenhamos sensibilidades diversas. Mas ainda aqui não tanto como se poderia imaginar.
A vida tem-me ensinado que em muitos casos é mais vantajosa (economica e patrimonialmente falando) a adjudicação a privados de segmentos da gestão e valorização de monumentos e museus do que a sua manutenção no domínio da gestão por “agentes públicos”. É assim por várias razões, das quais a da progressiva decapitação dos serviços públicos em saber-pensar e em saber-fazer não é a menor.
Mas vai uma grande diferença entre adjudicações de serviços a privados, ditadas pela aplicação de estratégias gestionárias públicas, e a pura e simples entrega a privados dos monumentos, mormente dos mais emblemáticos, que muitas vezes são também os mais rentáveis do ponto de vista financeiro.
Fazer dinheiro a todo o custo não pode ser a motivação primeira da vida social, seja pública seja privada. Ao Estado em especial compete dar o exemplo, não orientando a sua acção apenas pela venda dos activos para fazer dinheiro…
Enfim, não me resigno a acordar um dia num PORTUGAL SARL. Ou só SARL, quando os “mercados” entenderem que a “marca” Portugal já não é rentável.
E estou certo que tu também não, porque mesmo actuando no âmbito privado tens sabido defender (o que inclui também problematizar) o interesse público bastante melhor que muitos funcionários do Estado. Afinal, tenho usado “agente público” sempre entre aspas, porque estes tanto podem ser trabalhadores do Estado como trabalhadores das empresas privadas.
Luís Raposo
obs - não sei porquê, as aspas são às vezes transformadas em interrogações; por isso peço a quem leia este texto o esforço da tradução destas naquelas. Obrigado.
Quoting antoniovalera@era-arqueologia.pt:
Caro Luís Raposo,
... e no entanto estamos a conversar.
Ao trazer o problema para o plano das pessoas, dos agentes, não creio estar a falar de forma abstracta, antes pelo contrário. É uma escala do problema bem concreta. Abstractos são os modelos, embora seja com eles que procuramos conformar a nossa acção individual e colectiva.
Neste eterno debate, como referia o Victor Jorge, o que me incomoda não é a existência de Estado com "serviços públicos executados por agentes públicos". Para mim sobre isso não há grande dúvida: não concebo que possa ser de outra maneira. O que me incomoda é o juízo ético e moral lançado sobre a acção de quem não age no serviço público e a confusão entre agir "no serviço público", "agir ao serviço do público" e "agir servindo-se do público". Ora se no primeiro caso estão representados apenas os funcionários públicos, nos restantes dois estão todos representados, incluindo os funcionários públicos.
Ou seja, a ética e moralidade que informa as opções ideológicas e políticas não pode ser alheia à prática observada e registada e ser também ela idealizada. E como nisso não vejo grandes diferenças, reconheço que é cada vez mais difícil optar incondicionalmente por um dos lados.
Que um Estado para poder ser soberano tenha que dispor de meios para o ser, parece-me óbvio. No caso específico do Património, parece-me perfeitamente natural que chame a si a responsabilidade de deter e administrar património de interesse nacional e mundial. Que o utilize no âmbito do seu programa político e ideológico. Mas nada impede que na gestão patrimonial, a sociedade, dita civil, seja chamada a participar sem que o anátma "lucro" seja de imediato evocado. Essa participação até poderá ser "moderadora" de excessos de manipulação ideológica do património e dos discursos sobre ele produzidos. A pluralidade é um bem e um dinâmo e nem sempre o Estado tende a garanti-la, habituado que está a impor. É que a generalização de que quem se mexe se mexe antes demais por lucro é uma imagem grosseira. A ser assim, não existiriam agentes na área do património arqueológico, por exemplo.
E por aqui me fico, pois este assunto é complexo e sério e nada compatível com os simplismos, generalizações e outras coisas que inevitavelmente estas mensagens acabam por aqui assumir.
António Carlos Valera
Direcção do Núcleo de Investigação Arqueológica - NIA
ERA Arqueologia SA.
Cç. de Santa Catarina, 9C,
1495-705 Cruz Quebrada - Dafundo
antoniovalera@era-arqueologia.pt
www.era-arqueologia.pt
----- Forwarded by António Valera/ERA on 17-10-2012 09:40 -----
Caro António Valera,
Concordo na substância com quase tudo o que dizes abaixo, mas isso é pouco importa.
Discordaria apenas num ponto pequeno, porventura menor: numa sociedade política organizada, seja ela tribal ou estatal, o “bem comum”, que é difuso, reconheço, é definido através das modalidades encontradas para investir alguns do poder da representação e da acção em nome de todos.
No caso concreto – e é esse que afinal motiva o comentário – os monumentos a que colectivamente foi entendido reconhecer significado simbólico comum podem evidentemente ser geridos por privados, visando (muito legitimamente) não apenas a satisfação das suas necessidades de vida (tão respeitáveis como as dos “agentes públicos”), como a acumulação de recursos que lhes permitam maior ascendência presente, ou futura, sobre terceiros, ou seja, aquilo que habitualmente se chama “lucro” (coisa que aos “agentes públicos” é interdita, vá-se lá saber porquê...).
Podem os monumentos ser assim geridos privadamente, desde logo debaixo de ideologias liberais que eu nem sequer contesto (até porque intervim inicialmente nesta matéria como Presidente do ICOM Portugal e, nesta qualidade, não me é lícito optar pelas minhas convicções e ideologias pessoais). Mas podem também ser geridos privadamente debaixo de ideologias estatistas, embora admito que dentro de baias e critérios de eficiência e eficácia muito mais restritos.
Podem, mas não nos iludamos: quem paga sempre a factura somos todos nós, através dos recursos que colocamos à disposição do Estado (ou que o Estado nos confisca, enquanto o deixarmos, está claro).
Mas, sim senhor, aceito que podem. É por isso que ouso acrescentar não ser nessa oposição que está o verdadeiro problema. Está este, segundo creio, em saber, por um lado, se / quando / como existem para nós, colectivamente falando, ganhos sociais, nessa opção gestionária privada. No plano material, por exemplo, se ela não envolve por exemplo custos superiores ao que a gestão pública poderia alcançar e se não dificulta, ou impede mesmo, a prossecução de políticas coerentes nacionais, em que o “rentável” contribua para o “não rentável”. E no plano social e simbólico, por exemplo, se ela promove melhor a cidadania, quer dizer, a discussão reflexiva sobre identidades (convergências e divergências) comuns.
Bem vistas as coisas, o grande problema é de natureza política mais ampla, diria ideológica e simbólica, a saber: justifica-se a existência de Estado e de serviços públicos executados por agentes públicos ? Ou tudo pode ser privatizado, mesmo que por tal entendo apenas a entrega a gestão privada, mantendo todavia a propriedade pública ? As estradas, os tribunais, a polícia, as prisões… enfim, a memória que nos faz sentir cidadãos, europeus em certos aspectos, portugueses portugueses noutros, minhotos ou alentejanos noutros ainda ?
Reclamar contra o simplismo da oposição “público” e “privado” de uma forma abstracta – no que podemos todos concordar – quando se está perante questões concretas mais não constitui do que desconversar.
Luís Raposo
----- Original Message -----
From: antoniovalera@era-arqueologia.pt
To:
Sent: Tuesday, October 16, 2012 11:15 PM
Subject: [Archport] Público e Privado
Há hoje, em Portugal (ou anda por cá há muito, mas hoje ganha maior relevo), uma perigosa dicotomia em crescendo: o público vs privado. As virtudes estão num lado ou noutro, segundo a perspectiva, frequentemente interessada (como são, naturalmente, todas as perspectivas). No dia de hoje, o confronto voltou à cultura e ao património.
Confesso-me cansado com este pelejar. Como se não houvesse no público incompetência e abuso (quantos no público não se comportam com o que está à sua guarda como se fosse para uso e benefício privado, seu?); como se no privado não houvesse incompetência e má fé egoísta; como se no público não houvesse dedicação e entrega séria à causa pública; como se no privado não existisse seriedade e contribuição decisiva para o que de bom fazemos em benefício da nossa vida social. Enfim, como se quem entra para a função pública fosse tocado por uma varinha mágica que o transforma num fiel intérprete do bem comum, paladino contra os interesses egoístas dos que não partilham o público privilégio; como se quem se dedica ao serviço do Estado não seja competente e deligente na defesa do difuso bem comum.
Incompetência, má fé, abusos, egoísmos, ética e falta dela, são características de pessoas, não da área (pública ou privada) onde estão presentes.
Será que teremos que continuar eternamente no balancear entre estes pólos que, de um lado e do outro destas barricadas que só servem aos respectivos instalados, se vão guerreando com farpas a que falta o poder de uma argumentação séria (aquela que também assume a autocrítica)?
Como escreveu Rentes de Carvalho, e diria alguém que eu conheço, "Cada critério é fatalmente sujeito a erros. Cada crítica facilmente contraditável."
A situação requere maturidade, empenhamento e uma capacidade crítica para separar o trigo do joio e ambos estão por todo o lado. Centremo-nos pois no trigo e no joio e não tanto no "lado".
António Carlos Valera
Direcção do Núcleo de Investigação Arqueológica - NIA
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