Date: Fri, 22 Feb 2013 17:33:58 +0000
From: vitor.oliveirajorge@gmail.com
To: 3raposos@sapo.pt; Archport@ci.uc.pt; amarogoncalo@gmail.com
Subject: Re: [Archport] Fw: Terão a Arqueologia e a História os
mesmos objectivos?
Caros amigos
Tem muito interesse o vosso debate.
Aproveito para lembrar o modesto seminário que vai ocorrer na AAP em Lisboa
a partir de 8 de Março. Encontram informação sobre isso junto da Associação.
Creio que poderemos abordar temas interessantes também...
Nota: Bruce Trigger era canadiano.Foi lapso, por certo.
http://en.wikipedia.org/wiki/Bruce_Trigger
Cordial abraço
Vítor O. Jorge
On 13/02/22 16:01, "LRaposo" <3raposos@sapo.pt> wrote:
> Caro Gonçalo,
> De facto, Bruce Trigger continua a ser muito mal conhecido.
Cita-se a sua obra
> fundamental sobre ³História do Pensamento Arqueológico² (traduzida, aliás,
> para castelhano), cita-se mais raramente o seu contributo
inestimável enquanto
> biógrafo, porventura o maior, de Vere Gordon Childe, mas quase
nunca se cita o
> seu papel na construção teórica. Trigger sempre foi um ³mal amado² do
> establishment arqueológico americano, especialmente da chamada ³Nova
> Arqueologia² (³nova², cerca de duas décadas depois de já a Matemática, a
> Biologia, a Geografia, etc., bem como a Antropologia e a História antes de
> todas, se terem a sim também chamado ³novas²). Sofreu com isso, aliás.
> Trigger, um dos grandes vultos do pensamento arqueológico
norte-americano, por
> ter sido sempre um defensor do paradigma histórico para a Arqueologia, foi
> como que ³exilado² no Canadá, onde leccionou e teve de fazer pela vida.
>
> Mas vale muito a pena ler os seus textos, nomeadamente a
colectânea de artigos
> reunidos no livro que eu citava antes: Bruce Trigger (1978) - Time and
> Traditions: Essays in Archaeological Interpretation. Edinburgh: Edinburgh
> University Press, 1978.
>
> A citação que eu fazia, tirada de um desses artigos, foi por mim também
> referida no texto que tenho a ousadia de reproduzir abaixo e deu nome ao
> volume em que foi incluído, volume de co-autoria minha e do António Carlos
> Silva: A Linguagem das Coisas. Ensaios e Crónicas de Arqueologia,
Col. Forum
> da História, Publ. Europa-América, Lisboa, 1996.
>
> Perdoe-se a imodéstia, mas como julgo que tal texto continua hoje a fazer
> sentido (pelo menos para mim faz ³todo o sentido²).
>
> Luís Raposo
>
>
>
>
>
> As palavras e as coisas
>
>
>
> Longe vai o tempo em que da Arqueologia se retinha
apenas a ideia
> de um saber antiquarista destinado a melhor servir a colecção de objectos
> antigos. Se, enquanto arqueólogos e parafraseando Sir Mortimer Wheeler,
> procurássemos apenas objectos mortos, então ³mais valia que tivéssemos
> escolhido outra profissão², já que ³a Arqueologia morta é o pó
mais seco que
> pode soprar². Não nos movemos, pois, pelas ³coisas² que
desenterramos, mas as
> ³gentes² que temos a pretensão de saber colocar por detrás delas.
Será todavia
> que as nossas ³coisas², os objectos arqueológicos, estão à altura de
> desempenhar o papel que esperamos delas? Constituirão elas fontes
de dignidade
> e/ou de natureza idêntica às ³palavras² que tradicionalmente
alimentaram a
> pesquisa histórica ? Dito de outra forma e retomando uma velha
dicotomia: qual
> o estatuto e capacidade informativa de ³monumentos² e ³documentos² ?
>
>
>
> Tradicionalmente, a historiografia positivista não
teve dúvidas em
> responder: a História, na procura de factos (de ³pequenos cubos
de mosaico,
> bem distintos, bem homogéneos, bem polidos², como Lucien Febvre
tanto gostava
> de ironizar), deveria aceitar com humildade a sua função perpetuadora de
> memórias, através da decifração de ³palavras², recolhidas por escrito. Sem
> documentos escritos não haveria História, como enfaticamente fazia notar
> Fustel de Coulanges no final do século passado. E foi no quadro
deste ambiente
> conceptual que, na mesma ocasião, se desenvolveu tanto uma ³Pré-história²,
> entendida não apenas como período histórico, mas principalmente
como campo de
> estudos estruturalmente distinto da História (muito mais ligado à
Etnologia,
> ao estudo dos usos e costumes dos ³povos primitivos², dos ³povos sem
> história²), como uma ³Arqueologia², entendida como ³técnica auxiliar² (ou
> simples ³criada de quarto², com já houve quem lhe chamasse) da História.
>
>
>
> Entretanto, passou-se cerca de um século. Muita água
correu sob as
> pontes da ciência histórica. Sob o impacto da historiografia do
pós-guerra, a
> oposição ³documento²/²monumento², ou ³palavra²/²coisa², viu-se
profundamente
> alterada, senão mesmo desfeita. Já nos anos 50, Lucien Febvre não
hesitava em
> escrever nos seus ³Combates pela História²: ³A história faz-se
com documentos
> escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se,
deve fazer-se
> sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a
habilidade do
> historiador lhe permite utilizar... palavras, signos, telhas... Toda uma
> parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de
historiadores, não
> consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para
> fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os
homens, sobre as
> sociedades que as produziram, e para construir, finalmente, entre
elas, aquela
> vasta rede de solidariedade e de entre-ajuda que supre a ausência
do documento
> escrito ?².
>
>
>
> Para alguns filósofos, as ³coisas² chegaram até a
constituir, do
> ponto de vista epistemológico, o principal objecto do discurso
histórico, que
> definitivamente deveria deixar de resumir-se a uma espécie de
memorização de
> ³palavras². Michel Foucault, cuja evocação neste texto se não esconde,
> refere-se explicitamente ao ³triunfo dos monumentos² na sua
³Arqueologia do
> saber²: ³nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em
> monumentos². Ou seja, tal como outrora se considerava que a
Arqueologia apenas
> se cumpriria plenamente na História (³era um tempo em que a
arqueologia, como
> disciplina dos monumentos mudos, dos traços inertes, dos objectos
sem contexto
> e das coisas deixadas do passado, se voltava para a história e só tomava
> sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico²), assim,
no presente
> Foucault nos sugere um caminho em sentido contrário: ³poder-se-ia dizer,
> jogando com as palavras, que a história, nos nossos dias, tende para a
> arqueologia, para a descrição intrínseca do monumento². E a
verdade é que, no
> quadro do percurso filosófico e historiográfico acabado de resumir,
> Arqueologia e História foram sendo cada vez mais atraídas uma
para a outra,
> puxadas pela força conjugada de historiadores e arqueólogos.
Gordon Childe,
> pelo lado dos arqueólogos: ³Os dados arqueológicos são documentos
históricos
> por direito próprio e não meras abonações de textos escritos. A
arqueologia é
> uma forma de história e não uma simples disciplina auxiliar².
Jacques Le Goff,
> pelo lado dos historiadores: ³A arqueologia tradicional transformou-se em
> história e arqueologia da cultura (ou da civilização) material².
³Coisas² e
> ³palavras² passaram, por conseguinte, a ser consideradas como
fontes da mesma
> natureza, apreensíveis pelo recurso aos mesmos aparelhos teóricos,
> manipuláveis através dos mesmos cuidados hermenêuticos.
>
>
>
> Expostas estas ideias dir-se-ia ser pacífico e linear
o percurso da
> ligação epistemológica entre Arqueologia e História. Ora, a
verdade é que nas
> últimas décadas não poucos arqueólogos se esforçaram por provar o
contrário,
> afirmando a existência de dicotomias profundas. De um lado,
teríamos os bens
> materiais, ³mudos² e ³estáticos²; do outro, os documentos escritos,
> ³explícitos² e ³dinâmicos². E este facto obrigaria a considerar
que o estatuto
> de ambas as disciplinas seria não apenas diverso, como
radicalmente oposto: a
> Arqueologia, desenvolvendo ³teorias de grau intermédio² através
das quais se
> pudessem explicar os mecanismos de passagem do ³dinâmico²
(sistemas sociais do
> passado) ao ³estático² (vestígios arqueológicos encontrados no presente),
> poderia pretender ser uma verdadeira ciência, no âmbito da Antropologia; a
> História, remetida para o domínio da interpretação particularista de
> documentos, através de argumentos acomodativos, baseados no ³bom
senso², não
> passaria de uma ³humanidade². Obviamente, a esta dicotomia não é
estranha a
> filosofia hempel-popperiana de ciência. E também se pressentem nela as
> circunstâncias que, na Europa e no ³Novo Mundo², conduziram a
posicionamentos
> diversos em relação à História: na velha Europa, pela densidade e
continuidade
> da ocupação humana (sem o reconhecimento de rupturas civilizacionais que
> levassem a traçar uma qualquer fronteira onde o ³outro² pudesse
ter existência
> separada do ³nós²), sempre se favoreceu o estudo integrado do passado,
> incluindo numa só disciplina, a História; na América, a descontinuidade
> civilizacional que deu origem aos EUA ajudou a surgirem campos de estudo
> separados, a ponto de, como observou Bruce Trigger, ³a história tratar dos
> brancos e a antropologia, dos índios²(... e ³brancos e índios é
susposto terem
> pouco em comum²).
>
>
>
> Mas, para além disto, verifica-se que a maior parte dos ³novos
> arqueólogos² defensores do paradigma antropológico se fixam ainda agora na
> antiga concepção positivista de História. Pode dizer-se que
pararam no século
> XIX, repetindo, talvez sem saberem, as mesmas teses, aceitando os mesmos
> logros, defendendo as mesmas dicotomias. Arrogantes, julgam ter
descoberto a
> pólvora, sem sequer se darem ao trabalho de ler textos elementares, como
> aquele onde, nos anos 40, Marc Bloch já afirmava que ³os textos
escritos, ou
> os documentos arqueológicos, mesmo os mais claros na aparência e os mais
> condescendentes, só falam quando se sabe interrogá-los. Nunca, em ciência
> alguma, foi fecunda a observação passiva. Supondo, aliás, que
seja possível².
> Ou seja: a historiografia contemporânea interiorizou pelo menos
desde há meio
> século o princípio de que nenhuma fonte é totalmente ³explítica² ou
> ³dinâmica², tal como nenhuma é o contrário.
>
>
>
> Erguendo clivagens e dicotomias onde elas não existem, e
> elevando-as ao plano ontológico mais global, não admira, como
observou Luis F.
> Bate, de um ponto de vista marxista, que os arqueólogos processualistas se
> venham depois a situar ³entre o salto mortal e o milagre
dialéctico² quando
> pretendem passar no ³registo estático² ao ³passado dinâmico². Mas
não é apenas
> a Arqueologia marxista que tem nos últimos anos reclamado contra
aquele tipo
> de oposições. Também a chamada ³Arqueologia contextual² o tem
feito, aliás com
> grande insistência: ³Muitos arqueólogos dirão certamente que os
seus dados são
> mudos. Certamente um objecto enquanto objecto, sózinho, é mudo. Mas a
> arqueologia não é o estudo de objectos isolados. Logo que o contexto de um
> objecto é conhecido ele deixa de ser totalmente mudo² - afirma
Ian Hodder no
> seu livro ³Reading the Past² (Cambridge University Press, 1986), onde se
> refere com elegância à unidade fundamental entre o estudo dos documentos
> escritos e dos testemunhos materiais, que prefere designar por ³textos de
> cultura material².
>
>
>
> E finalmente, não sendo ³mudos², os dados
arqueológicos também não
> são completamente ³estáticos². De resto, sendo certo que, como
diria o senhor
> de La Palice, todos os passados já passaram, nenhum deles pode no
presente ser
> considerado vivo, ³dinâmico², seja qual fôr o meio utilizado para o
> perscrutar. Daí que a força de um ou outro tipo de fonte
histórica não esteja
> no maior ou menor valor apriorístico do seu testemunho, no
colorido mais ou
> menos dinâmico do seu relato, na apresentação mais ou menos explícita das
> intenções dos seus autores, mas tão-só na coerência da sua integração num
> contexto que o historiador/arqueólogo reescreve e, idealmente,
espera poder
> representar a melhor aproximação da realidade passada.
>
>
>
> Luís Raposo
>
> ----- Original Message -----
> From: gonçalo amaro
> To: 3raposos@sapo.pt ; archport@ci.uc.pt
> Sent: Friday, February 22, 2013 12:35 AM
> Subject: RE: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos
> objectivos?
>
>
> Estimado Luís obrigado por esta frase tão interessante.
>
>
> Na realidade isso ainda continua a passar, quando viajei ao Sul
para estudar
> a produção de cerâmica entre as comunidades mapuches era notória
a diferença
> "museológica" das pequenas cidades; num extremo o museu histórico
e noutro o
> museu mapuche, vi pelo menos disto em 3 localidades.
>
>
> No entanto, ainda bem que falas em Trigger, como já comentei
com alguém em
> privado, no âmbito deste debate, somos tão ensaboados nos
primeiros anos da
> Faculdade com as teorias das fontes e as problemáticas do saber
histórico e
> Trigger... Trigger nem se vê.
>
>
> Um abraço
>
>
>
>
>
>
------------------------------------------------------------------------------
> From: amaro_goncalo@hotmail.com
> To: 3raposos@sapo.pt; archport@ci.uc.pt
> Subject: RE: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos
> objectivos?
> Date: Fri, 22 Feb 2013 00:32:20 +0000
>
>
> From: 3raposos@sapo.pt
> To: Archport@ci.uc.pt
> Date: Thu, 21 Feb 2013 23:17:31 +0000
> Subject: Re: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos
> objectivos?
>
>
> Citação
>
> [nos Estados Unidos] ³A história trata dos brancos e a antropologia, dos
> índiosŠ e brancos e índios é suposto terem pouco em comum².
>
>
>
> Bruce Trigger (1978) - Time and Traditions: Essays in Archaeological
> Interpretation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1978
>
>
>
>
>
>
>
> ----- Original Message -----
> From: gonçalo amaro
> To: archport@ci.uc.pt ; jde@fl.uc.pt
> Sent: Tuesday, February 19, 2013 11:31 PM
> Subject: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os
mesmos objectivos?
>
>
> Boa noite,
>
> Peço desculpa por os estar a maçar, ultimamente tenho estado
com algumas
> inquietações no que diz respeito à forma como fazemos ou devemos fazer
> ArqueologiaŠ é uma conversa chata, e se calhar ingénua, bem sei.
>
>
>
>
> Sucede o seguinte: aqui no Chile, onde estou a fazer
investigação sobre
> cultura material, ando meio estagnado nos conceitos teóricos, neste país a
> Arqueologia é mais Antropologia que outra coisa (demasiado
Binford para o meu
> gosto); por conseguinte o pensamento arqueológico segue um pouco
os modelos
> anglo-saxões (mais processuais que pós-processuais). Aqui são
muito críticos
> em relação à História (às vezes mais por temas políticos que propriamente
> metodológicos). E de facto, se temos em conta a mais recente
literatura sobre
> cultura material, estamos cada vez mais distantes. Não quero com
isto dizer
> que não são compatíveis, apenas que provavelmente tem fins e métodos
> diferentes.
>
>
>
> Seguindo, mais ou menos, as palavras de Foucault na sua
³Arqueologia do
> conhecimento²: a História procura a verdade através de documentos
escritos,
> tenta construir uma narrativa contínua do desenvolvimento dos
modos de pensar,
> por outro lado, a Arqueologia interessa-se pelo particular e pela ruptura
> temporal. Não busca descobrir o que é que as pessoas, deste ou
daquele tempo,
> estariam a pensar ou a escrever no passado, mas sim os mecanismos que as
> permitem falar e ser tomadas em sério. Mais que uma disciplina do
passado como
> é a História (ou não?), será a Arqueologia uma disciplina
mediadora entre o
> passado e o presente? E como tal, temos de partir de uma base
> teórico-filosófica diferente?
>
>
>
> Queria então perguntar aos colegas lusos qual é vossa opinião sobre o
> tema, uma vez que em Portugal continuamos a ser formados nas
universidades,
> como se calhar na maior parte da Europa continental, por uma estratégia de
> investigação com base no modelo da História das Ideias sei que
em Espanha o
> tema tem sido discutido, tanto pela Almudena Hernando como pelo Alfred
--
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