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[Archport] SIRIA, ontem e hoje

To :   "archport" <archport@ci.uc.pt>, "museum" <museum@ci.uc.pt>, "histport" <histport@ml.ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] SIRIA, ontem e hoje
From :   José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>
Date :   Mon, 7 Oct 2013 18:57:21 +0100

 

SIRIA, ontem e hoje

Painel – Debate com Ângelo Correia, Adalberto Alves e Álvaro Figueiredo

8 de Outubro de 2013, 18h00

 

 

Posto que cultivamos a história, e por isso amamos a vida, nada nos educa mais do que viajar. Nesta quase consigna, pedida emprestada a Henri Pirenne e Leite de Vasconcelos, encontra-se o fundamento que mobiliza os nossos amigos, na deambulação que regularmente fazemos por terras remotas, por vezes exóticas e de difícil acesso, mas sempre ricas em ruínas do passado e rostos do presente. Disto nos dão conta as imagens colhidas na retina fotográfica de Marina Gorlier e os textos guardados na memória de Álvaro Figueiredo, companheiros dos mais constantes nas itinerâncias do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arqueologia (GAMNA).

Dizem-nos da Síria, que demandámos já mais de uma vez. Recordam-nos, num todo sincrético, a imponente cidadela fortificada e o buliçoso bazar de Aleppo, ambos agora tristes e esventrados na sua essência; falam-nos do oásis de Palmira, com o seu Vale do Silêncio onde hoje se chora, em ruidoso pranto; remetem-nos para cidades de diferentes épocas que salpicam o vale do Eufrates, todas encantatórias, desde Sergiopolis, Zenobia ou Dura Europos até Mari, com gente humilde e generosa à nossa beira, convidando-nos para casa e fazendo festa por termos Fátima em comum; evocam-nos a longa duração mediterrânica em Ugarit ou até no Krak des Chevaliers, onde nem cruzados, nem Saladino lograram produzir os desmandos que presentemente nos entram olhos dentro; lembram-nos o carácter telúrico de Bosra, fantasmática como se diria não voltar a poder ser; constroem em nós, enfim, uma estrada que tanto nos conduz a Damasco e à sua Grande Mesquita Omíada, como nos enternece face à luminosidade rosácea do Mosteiro de S. Simeão, e nos conforta, enfim, junto às noras do Orontes, cuja água, secular e límpida, pareceria destinada a, de uma vez por todas, nos dessedentar.

Afinal, não. A Síria pacífica e convivial do passado, onde em Maaloula e tantas outras aldeias um só olhar podia alcançar crescentes e cruzes, ou até mesmo estrelas sinagogais, deu lugar a uma espécie de inferno, que nos envergonha e causa profunda revolta. Por isso dizemos que, gostando de história, amamos também a vida e disso damos testemunho como está ao nosso alcance, pela imagem e pela escrita neste caso.

Luís Raposo

Museu Nacional de Arqueologia (Director, 1996 - 2012

 

Since we cultivate History, and as such we love Life, we educate ourselves primarily through travel. In what is nearly a cliché, borrowed from the ideas of Henri Pirenne and Leite de Vasconcelos, is found the essence that drives our friends to embark on our regular journeys across remote lands, which are sometimes exotic and of difficult access, yet always rich in terms of ruins of the past and faces of the present. These are all portrayed in the images captured by the photographic lens of Marina Gorlier and the words engraved in the memory of Álvaro Figueiredo, two constant companions in the travels of the Group of Friends of the National Museum of Archaeology.

They talk about Syria, which we have visited several times. In a syncretic whole, they recall the monumental fortified citadel and the bustling bazaar of Aleppo, which are now sad and have essentially been gutted; they tell us about the oasis of Palmyra, with its Valley of Silence, currently filled with the loud cries of suffering; they take us across the enchanted cities of different periods that dot the Euphrates Valley, from Sergiopolis, Zenobia or Dura Europos to Mari, inhabited by a humble and generous people who invite us to their homes and rejoice in mentioning the fact that we have Fatima in common; they recall the long-lived Mediterranean world of Ugarit or even Krak des Chevaliers, where not even the Crusaders nor Saladin produced the destruction that we currently see right before our eyes; they remind us of the telluric character of Bosra, ghostly as one never thought it would once again become; they establish, at last, a road that can either lead us to Damascus and her Great Umayyad Mosque, or move us as we stand before the rosy brightness of the Monastery of St. Simeon, to finally find comfort beside the water wheels on the Orontes, whose water, both ancient and clear, would seem destined to quench our thirst, once and for all.

In the end, it was not to be. The peaceful and friendly Syria of the recent past, where in Maaloula and many other villages, a single glance could catch a glimpse of crescents and crosses, or even stars on synagogues, gave way to a kind of inferno that puts us to shame and causes deep outrage. This is why we say that, in liking History we also love Life, paying tribute to it as we deem appropriate, in this case through images and writing.

Luís Raposo

Museu Nacional de Arqueologia (Director, 1996 – 2012)

 

 

SÍRIA:um olhar

Fotografia: Marina Gorlier

Textos: Alvaro Figueiredo

A Síria é um país com uma rica herança cultural, fruto de uma longa e complexa história e da diversidade geográfica do seu território. Situada numa região do mundo que abrange as esferas culturais do Médio Oriente e do Mediterrâneo, e fazendo parte do chamado Crescente Fértil, aqui podemos seguir os passos da história da humanidade como se de um vasto museu se tratasse, incluindo os primórdios da vida sedentária, a adopção da agricultura há cerca de 10.000 anos, e assistir ao desenvolvimento da escrita pelas primeiras civilizações urbanas no vale do rio Eufrates, na Mesopotâmia, durante os V-IV milénios a.C. Desde a remota antiguidade que a Síria se situa num importante eixo do comércio de longa distância, através do qual os produtos exóticos da Ásia e as especiarias das terras do Oceano Índico eram transportados para os grandes centros urbanos da Síria, para depois serem redistribuídos por todo o Levante e mundo mediterrânico. 

Durante a Idade do Bronze (c. 3100-1150 a.C.), a importância estratégica da região e a prosperidade das suas cidades, como Mari (Tell Hariri) no vale do Eufrates, ou Ugarit (Ras Shamra), centro de um vasto empório comercial localizado na costa mediterrânica, cedo atraíram Egípcios, Babilónios e Hititas. Na Idade do Ferro (c. 1150-539 a.C.), a riqueza das cidades-estado fenícias do litoral mediterrânico e dos estados aramaicos do interior levou à ocupação do território pelos Assírios e, mais tarde, pelos Neo-Babilónios e Persas Aquemênidas. Em 333 a.C. a Síria foi integrada no vasto império de Alexandre o Grande e, após a sua morte, no dos seus sucessores Greco-Macedónios. Seguindo o exemplo de Alexandre, estes fundaram importantes centros urbanos tal como Apamea. Fundada no vale do Orontes, por Seleuco I Nicator em homenagem a sua mulher persa, Apama, a cidade depressa se torna num grande bastião do helenismo e centro de domesticação e treino de elefantes para combate nos exércitos selêucidas.

Em 64 a.C. Pompeio Magno anexa a Síria criando a província romana com o mesmo nome, tornando-se este um dos territórios mais importantes e prósperos de todo o Império Romano. No final do século II d.C., com o matrimónio do imperador romano Septímio Severo e Julia Domna, esta última natural da cidade de Emesa (Homs), a Síria assume durante algumas décadas uma enorme relevância política, de tal forma que os imperadores Elagabalo (218-222) e Alexandre Severo (222-235), sobrinhos de Julia Domna, eram de origem síria. Este foi também o período da gradual expansão económica e política do reino árabe pré-islâmico de Palmyra, cujo centro, no oásis de Tadmor, preserva ainda magníficos testemunhos da sua importância durante os séculos I-III d.C. Palmyra foi um dos primeiros grandes entrepostos comerciais da chamada Rota da Seda, e tal era o seu prestígio que Zenobia, a sua mais famosa rainha, chegou a assumir o título de Augusta do próprio Império Romano entre 270-272 d.C.

O país integra também um espaço geográfico e ideológico que é conhecido como Terra Santa desde a antiguidade romano-bizantina. Aqui desenrolaram-se alguns dos acontecimentos descritos no Antigo e Novo Testamentos, incluindo alguns dos episódios relacionados com os discípulos de Jesus, como por exemplo a conversão, na via para Damasco, de Saul de Tarso (c. 5-67 d.C.), mais tarde conhecido por Apóstolo Paulo.

O aramaico, a língua de Jesus e dos seus contemporâneos, é ainda hoje compreendida e utilizada na liturgia cristã diariamente vivida na igreja de Mar Sarkis (S. Sergius) em Maalula, nas encostas do Antilíbano. As ruínas do mosteiro de S. Simeon o Estilita, situado a noroeste de Aleppo, e de Resafa (Sergiopolis), outrora o centro político-religioso da tribo árabe cristã dos Ghassanidas localizado no deserto sírio, são testemunhos ainda presentes deste passado glorioso.

Este foi também um dos primeiros territórios a ser islamizado, tornando-se Damasco uma das maiores e mais importantes metrópoles do mundo árabe. Situada num vasto e luxuriante oásis que, segundo a tradição, o Profeta Muhammad comparou ao Paraíso, Damasco foi durante o Califado Omíada (661-750) o centro político de um império que se estendia da Ásia Central à Península Ibérica. A decoração e monumentalidade da Grande Mesquita da cidade, construída no reinado do Califa el-Walid (705-715), transmite-nos ainda não só o espírito piedoso do seu tempo, mas também a diversidade étnico-religiosa da Síria.

Essa diversidade ainda actualmente visível, resultado de um percurso histórico único e de uma enorme tolerância religiosa e cultural, encontra-se hoje ameaçada por acontecimentos recentes com impacto a nível internacional. Em Março de 2011, na sequência do movimento denominado de Primavera Árabe, um dos mais importantes acontecimentos do mundo árabe contemporâneo iniciado na Tunísia e no Egipto, a Síria é palco de uma série de contestações populares que reivindicam uma sociedade mais democrática e menos corrupta. No entanto, a resistência por parte do regime do partido Ba’ath e dos seus aliados a uma reforma política rápida, e os interesses externos de vários países que têm como objectivo principal a queda do regime e o desmantelamento do eixo Síria-Irão, resultaram numa prolongada guerra civil com elevados custos humanos e materiais, incluindo, a destruição indiscriminada do rico património arqueológico e histórico do país.

O centro histórico das cidades de Damasco e Aleppo, as “Cidades Desertas” romano-bizantinas do norte, o castelo de Krak des Chevaliers, e os sítios arqueológicos de Palmyra e Bosra, todos classificados como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, foram sujeitos a diferentes níveis de destruíção e pilhagem. Em Aleppo, grande parte do conjunto arquitectónico do período Mameluco (1250-1516) e Otomano (1516-1917) que constituia as ruas cobertas, khans e lojas do suq, testemunhos vivos da importância económica, política e cultural da cidade desde então, foram destruídos quase por completo durante a luta entre as forças governamentais e os grupos rebeldespelo controlo da cidade. Ainda em Aleppo, a Grande Mesquita tem sido alvo de danos significativos, culminando em Abril de 2013 com a total destruíção do seu minarete.

Embora a Síria seja um país signatário da Convenção para a Protecção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (Haia, 1954), alocalização estratégica de vários sítios arqueológicos, ou o facto de estes terem sido originalmente utilizados para fins militares, tal como a Cidadela de Aleppo ou o castelo de Krak des Chevaliers, levou a que estes fossem escolhidos como lugares estratégicos nesta guerra, sendo as consequências fatais para estes sítios.  Para além destes danos materiais, vários sítios, tal como Palmyra, Apamea ou Bosra, têm sido também alvo de pilhagem de elementos decorativos e estatuária para venda no mercado ilegal de antiguidades. Em Fevereiro de 2013, numa conferência da UNESCO em ‘Amman, Jordânia, o Departamento Geral de Antiguidades e Museus (DGAM) da Síria chamou a atenção para essa pilhagem e consequente exportação ilegal de antiguidades. Esta situação tem afectado também alguns dos museus regionais como, por exemplo, em Homs e Hama, em que se tem verificado o desaparecimento de artefactos.

Durante o decorrer deste conflito, a DGAM e a UNESCO calculam que apenas 3% dos sítios e monumentos de interesse histórico do país não foram ou não estão a ser afectados pela guerra. 

Nesta exposição convidamos o visitante a fazer uma viagem pela história milenar desta nação, entre o presente e o passado, através de um registo fotográfico efectuado em 2007 durante uma das viagens do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arqueologia (GAMNA) à Síria, um país rico em tradição e hospitalidade.

 

Marina Gorlier nasceu em Lisboa em 1949. É licenciada em Economia pelo Instituto Superior de Economia, e exerceu funções nacionais e internacionais numa empresa americana durante 30 anos. Desde sempre sentiu o apelo pelas viagens e pela fotografia utilizando esta como testemunho das suas interpretações do que ia descobrindo, primeiro a miúde para então, a partir dos anos 80 começar compulsivamente a viajar por terras até então apenas sonhadas e utilizando câmaras SLR. Simultaneamente frequentou cursos de história e estética de arte, workshops com fotógrafos nacionais e internacionais, tendo realizado a pós-graduação em Teoria da Fotografia no IADE e mais recentemente o mestrado em Cultura Visual também no IADE. Participou nas seguintes exposições fotográficas (individuais): “No Vai e Vem das Marés”- Biblioteca da C.M. de Alcácer do Sal (2008); “Corpo, Yoga e Linguagem” – Soc. Nac. de Belas Artes (2003); “Marcas do Tempo-Gentes de Cabeção” – Junta de Freguesia de Cabeção (2002); e (colectivas): “Rota da Biodiversidade” – Fórum Picoas (2012); “Sentir a Fotografia I” – Espaço de Arte, Portugal Telecom (2011); “Janelas de Marvão” -11a. Bienal de Fotografia, V. F. de Xira (2010); “Marcas do Tempo” – Espaço de Arte do C.C. Olivais (2009); “Mora, Alentejo –Símbolos da Terra” – Centro Cultural de Mora (2001). Publicou também  “O Mundo que se Apre(e)nde”  Ed. Blurb (2012)  www.blurb.com

Álvaro Figueiredo estudou em Londres no Institute of Archaeology, University College London, onde se especializou em Arqueologia do Próximo e Médio Oriente Antigo, e língua Árabe na School of Oriental & African Studies, University of London. Tendo participado em vários projectos arqueológicos no Egipto (Hierakonpolis/el-Kom el-Ahmar), Jordânia (el-‘Azraq e Qasr Burqu’) e na Síria, onde se destaca o seu trabalho em Tell Nebi Mend (Qadesh, local da famosa batalha entre Ramses II e os Hititas), colabora actualmente como bioarqueólogo para a empresa Era Arqueologia e é um dos investigadores principais do Lisbon Mummy Project, uma parceria entre o Museu Nacional de Arqueologia e Imagens Médicas Integradas (I.M.I., Lisboa). Autor de textos nas seguintes exposições fotográficas: “Síria” (2010, Loulé; 2011, Silves), “Egipto” (2012, Loulé; 2013 Silves) e “Jordânia” (2013, Loulé). Ao longo dos anos tem vindo a acompanhar viagens de âmbito cultural (http://periplos-do-oriente.blogspot.co.uk/) a vários países do Médio Oriente, África, Ásia Central e India. Professor convidado de várias instituições de âmbito cultural e científico no Reino Unido, em Portugal e nos E.U.A., autor de diversas publicações de carácter científico, e com especial interesse nas áreas da Egiptologia, Império Romano no Mediterrâneo Oriental e na Península Ibérica, origens e desenvolvimento do Islão, e história contemporânea do Mundo Árabe. Trabalha e vive entre as cidades de Londres e Lisboa.

 

 









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