A propósito do artigo muito haverá a dizer mas indo ao essencial julgo que é preciso ter em conta que parece estar a pegar a moda deste tipo de artigos-encomenda com fins pouco claros, ainda mais quando os autores estão de certa forma implicados no negócio que propõem. Como nesta terra de cegos quem tem olho é rei, julgo que é preciso ter em atenção que se trata de um artigo que apesar de conter uma visão simplória sobre um assunto tão sério, é divulgado numa publicação com eco no mundo dos negócios por isso, com peso político.
Como primeira observação a autora conclui resumidamente que o património e os museus do Estado estão em eminente ruína ou ao abandono, dirigidos por uma cambada de incompetentes. Concluindo, por isso, que é necessário mudarem dessas garras que os apertam para a gestão privada. Por outro lado, o Estado não tem realmente em conta os cidadãos, sendo por isso necessário que as maravilhosas empresas jovens e eficientes, surjam para os salvar, passando a olhá-los como merecem ou seja, já não como cidadãos mas como maravilhosos consumidores de monumentos transformados em maravilhosos produtos destinados a festas de aniversário, casamentos, férias, etc. ou seja, ao serviço de uma mega indústria do comércio e do lazer ainda toda por explorar!
Se agora passarmos para o mundo real vimos como nos últimos anos se tem vindo a desinvestir na Cultura deixando até de haver qualquer tipo de Instituição a substituir o antigo Ministério, pois nem uma Secretaria temos, apesar de muitos continuarem a pensar que sim como convém. Por outro lado, assiste-se a um progressivo e intencional apagamento do papel dos organismos especializados em património em algumas áreas, nomeadamente na gestão de alguns dos monumentos mais rentáveis como é o caso de Sintra.
O debate sobre os modelos de gestão dos bens culturais que são propriedade do Estado (e não alguns serviços o que será sempre salutar), coloca-se em primeiro lugar ao nível político, e ao nível das ideias e não dos bitaites, pressupondo, antes de mais, que se defina o que se pretende dos bens culturais que são património do Estado e que objetivos se ambiciona alcançar com a sua gestão.
Como sabemos, não só a legislação nacional como a própria Constituição tem em conta a natureza própria dos monumentos, que lhe advém da sua qualidade de «testemunhos com valor de civilização ou de cultura» (n.º1 do artigo 2º da Lei de Bases do Património Cultural), em virtude da qual, no caso dos monumentos nacionais, a «respetiva proteção e valorização, no todo ou em parte, representa um valor cultural de significado para a Nação» (n.º4 do artigo 15º da Lei de Bases do Património Cultural).
A visão dos monumentos apenas como um ?produto? que é preciso rentabilizar ao máximo tem (vejam lá que maçada), alguns inconvenientes começando pela descriminação dos chamados cidadãos (aqui não clientes) ou seja, a generalidade da população portuguesa que, cada vez mais empobrecida, passará a não ter direito ao património. Veja-se, por exemplo, os preços praticados no caso sintrense.
Ainda outra questão grave que se coloca a esta liberalização, é que ela só poderá ser aplicável a monumentos com nível de atração muito elevada, ou seja, onde o negócio terá que estar assegurado à partida, não dando por isso qualquer resposta ao enorme problema dos edifícios ou monumentos com o mesmo grau de valor patrimonial mas que, por diversas razões são menos atrativos - uma imensa minoria...
Por último, não estou a ver como as maravilhosas empresas passarão a acudir ao dia a dia dos nossos monumentos, um dia a dia nada cor-de-rosa como é pintado neste artigo desfocado, com telhados por arranjar, pinturas por restaurar, estruturas por entivar, seguros, contas de luz, água, limpeza, etc. etc. ou será que para pagar as despesas o Estado já serve como se tem visto em tantos outros negócios ruinosos do mesmo género ?
Maria Ramalho
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Editorial
A liberalização da gestão patrimonial
Para aqueles que estão mais afastados do tema do património cultural (monumentos, museus e palácios), importa saberem que, até à data de hoje, em Portugal, a gestão deste bem é um monopólio estatal operacionalizado por instituições do poder central ou então de nível municipal. Existe ainda uma curta parcela de bens que é gerida por entidades de natureza privada, praticamente todas elas com o carácter de fundação sem fins lucrativos.
Esta opção continuada no tempo tem os seus resultados bem à vista de todos: a percepção comum que o estado de conservação dos edifícios com carga patrimonial é de eminente ruína ou, pelo menos, de acentuado abandono; a generalidade da população portuguesa sem hábitos instituídos de visita a museus ou monumentos; uma matéria ?patrimonial? que circula num ambiente restrito constituído por uma dupla ?académicos / dirigentes de instituições?, alternando entre si, ciclicamente, os lugares de decisão. Tudo confluindo naquilo que nem poderemos chamar de ?divórcio? ? porque tal pressupõe uma relação prévia ?, mas mais uma ausência de relação com um bem que é, afinal, uma herança de todos.
De facto, o património cultural é de todos: sendo cidadãos deste país, cada um de nós recebe à nascença um conjunto de bens extraordinários, materialização de uma história rica, diversificada e longa que é a História de Portugal. Todos somos proprietários destes bens.