Evocação de Theodor Hauschild (1929-2024)
Porque há pessoas que marcam as nossas vidas, queria evocar Theodor Hauschild, um homem que marcou profundamente a minha (certamente, sem disso ter noção).
A primeira vez que vi Theodor Hauschild, foi em Faro, em maio de 1980, decorria então o IV Congresso Nacional de Arqueologia, onde apresentei a minha primeira comunicação num encontro científico, sendo ainda estudante. Num restaurante de Faro, alguém me disse, indicando um senhor de barbas que jantava sozinho numa mesa ao fundo: “Aquele é o alemão que estuda a villa de Milreu”, sítio que tínhamos visitado na véspera.
Nos inícios dos anos 80 do século passado, creio que também ainda era estudante ou recém-licenciado, o meu Mestre João de Castro Nunes, convidou-me a acompanhá-lo numa visita de cortesia às novas instalações da delegação de Lisboa do Instituto Arqueológico Alemão, na Avenida da Liberdade, sendo Theodor Hauschild o novo Director. Lá fui e lá estive, presenciando a conversa, e recebendo simpática atenção de Hauschild que, no final, convidou Castro Nunes para um encontro / recepção de fim de tarde que viria a acontecer daí a dias e, virando-se para mim, disse: “Também está convidado, venha”.
E fui. Se bem recordo, era o único júnior num encontro muito informal, copo na mão (à boa maneira alemã), numa sala cheia de arqueólogos, onde havia uns pósteres com plantas e alçados dos mausoléus do Milreu e do Serro da Vila, em torno dos quais os “crescidos”, Hauschild, Bairrão Oleiro, Luís de Matos e outros, debatiam questões de planimetria, arquitectura, cronologia. Nesse final de tarde conheci Armando Coelho Ferreira da Silva, que viria a ser o meu orientador de tese de Doutoramento, mais um sénior, que simpaticamente se me dirigiu. A sala era uma biblioteca cheia de livros e revistas, em livre acesso, que me encheram os olhos de espanto – estávamos nos inícios dos anos 80, não havia ainda União Europeia, para nós, não havia Internet, nem bibliotecas de livre acesso aqui em Portugal. Olhava deleitado para o que supunha ser um espaço reservado a investigadores.
Creio que timidamente terei perguntado algo sobre a dita e Theodor Hauschild respondeu-me: “a biblioteca é pública, venha quando quiser”. Assim começou a minha frequência, regular, habitual, daquela que seria a minha principal fonte de estudo e informação durante muitos anos. Ali estavam a Philine Kalb, o Martin Höck (que eu já conhecera no Congresso de Faro) e ali estavam também a Fernanda Torquato (a competentíssima fada madrinha das bibliotecas de Arqueologia de Lisboa, agora na biblioteca de Arqueologia da Ajuda), o Fernando, a Catarina, a D. Maria, um conjunto de pessoas maravilhosas que foram amparo e companhia das minhas jornadas de estudo, sempre disponíveis e amáveis, sem esquecer todos os outros companheiros e companheiras, bolseiros do Instituto, que ali conheci e com quem encetei duradouras e sólidas relações.
Com Hauschild o relacionamento foi sempre afável, sempre simpático. Mais tarde, quando iniciou as escavações na envolvente do templo de Évora, conversámos. Perguntei-lhe por novidades e ele falou-me da identificação de um estranho tanque na lateral do tempo, ao que eu respondi “Ah, então sempre existe o tanque envolvendo o podium do templo?” – eu já conhecia o relatório das intervenções do Cunha Rivara, que tinha lido, com grande cepticismo, na Biblioteca Pública de Évora -, Hauschild espantado perguntou-me: “Mas, como sabia da existência do tanque?”. Fiquei contente por lhe ter fornecido as indicações do dossier do Cunha Rivara, com o relatório das escavações e a correspondência reveladora de como tentou persistentemente conseguir que repusessem o pavimento da praça, esventrado pela sua escavação. “Por isso aquilo parecia já ter sido escavado, tinha muito entulho moderno”, disse-me Hauschild, com aquele brilho nos olhos que lhe era tão característico, de quem acabou de esclarecer algo que o perturbava.
Fomo-nos depois encontrando regularmente e, já jubilado, tive o gosto de lhe dar boleia umas quantas vezes, depois de ter passado o criterioso crivo da sua simpaticíssima esposa “Você guia com cuidado, sim?”; um par de vezes a encontros em Espanha, com longas viagens e agradabilíssimas conversas. Recordo particularmente o encontro e a exposição sobre “Munígua la colina sagrada”, em Sevilha, 2006, já sob a égide do Thomas Schattner.
Para lá da dimensão científica e pessoal, de Theodor Hauschild fica-me a dívida eterna de ter aberto ao jovem que eu era as portas de um mundo novo e a grata recordação desses momentos de convívio com a sua discreta amabilidade e simpatia
Carlos Fabião
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