… de partilhar a
reflexão que o Doutor Frederico Lourenço teve a gentileza de me propor! No voto de mui
serenas festas pascais J. d’E. De:
Frederico Lourenço [mailto:lourencofrederico@gmail.com] Muito obrigado! E, já que gostou, aqui
vai outra pequena reflexão. Um abraço. O lava-pés A Quinta-Feira Santa
remete-nos para o homem que instituiu a Eucaristia e lavou os pés dos seus
discípulos. Quando eu era criança e adolescente, estes dois actos de Jesus,
lembrados neste dia, eram para mim um todo inseparável, pois era assim que me
tinha sido explicada a Quinta-Feira Santa em casa e na catequese. Devido ao
fenómeno bem conhecido de todos os leitores dos Evangelhos – se lermos os
quatro de seguida temos a impressão de estarmos a ler mais do mesmo e sempre a
mesma coisa – levou algum tempo até que caísse a ficha, por assim dizer, no que
toca a este facto fundamental: em Mateus, Marcos e Lucas, Jesus institui a
Eucaristia, mas não lava os pés dos discípulos. Em João, Jesus lava os pés dos
discípulos, mas não institui a Eucaristia. A lavagem dos pés
ocorre no início do Capítulo 13 de João. É um momento extraordinário deste
evangelho que é, simultaneamente, uma obra-prima literária, porque João
consegue por meio dele apontar prolepticamente para a fraseologia que empregará
para relatar a Paixão. O acto preparatório da lavagem dos pés é o de Jesus
despir as suas roupas (em grego «tà himátia», τὰ ἱμάτια). Esta palavra para
roupas é usada por tudo e por nada pelos outros evangelistas, mas João usa-a
apenas na lavagem dos pés e na crucificação de Jesus. O desnudar, o despir das
roupas, é portanto altamente simbólico. Simbólico de quê? De exposição, de
fragilidade, de rebaixamento. Antes de ser crucificado, Jesus será despido das
suas roupas, que serão divididas pelos soldados (pormenor único do Evangelho de
João, ausente dos outros Evangelhos). Antes de lavar os pés dos discípulos, é o
próprio Jesus que toma a iniciativa de assim se expor, rebaixar e humilhar,
para desempenhar um trabalho que, na expressão de Rudolf Bultmann (o mais
brilhante de todos os comentadores do Evangelho de João), é «Sklavendienst»,
isto é, «trabalho de escravo». E não há dúvida de que «escravo» é uma das
palavras-chave deste lava-pés, surgindo explicitamente no v. 16. Antes de voltarmos a
considerar o sentido de «escravo», frisemos outro ponto de contacto verbal
entre a lavagem dos pés e a Paixão: é que a lavagem dos pés é introduzida pela
afirmação de que Jesus amou os seus «até ao fim» («eis télos», εἰς τέλος); a
Paixão descrita por João termina com Jesus a dizer, antes de morrer,
«tetélestai» (τετέλεσται), «está cumprido» ou «foi levado até ao fim». Trata-se
do verbo correspondente ao substantivo «télos», que introduz a narração do
lava-pés. A narração
propriamente inicia-se com simplicidade desarmante: «levanta-se do jantar e
despe as roupas e, tomando um “léntion”, pô-lo à volta da cintura. Depois atira
água para uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e enxugar com o
“léntion” que tinha à volta da cintura». Este lavar e enxugar
não são actos quaisquer. É imensamente expressiva a circunstância de o verbo
para «enxugar» («ekmássō») ser o mesmo usado por Lucas (7:38) no episódio em
que a mulher lava os pés de Jesus com lágrimas e os enxuga com os seus cabelos.
Aqui Jesus não enxuga os pés dos discípulos com os seus cabelos, mas sim com um
«léntion». O que será este
«léntion»? A palavra surpreende, não só por ter aqui a sua única ocorrência no
Novo Testamento, como também pelo facto de ser um latinismo. Não é uma palavra
grega. É a helenização da palavra latina «linteum», que designa um pano de
linho. Vergílio usa a palavra para designar a vela de uma nau; Catulo e
Petrónio usam-na com o sentido de «guardanapo» ou «toalha». Sabemos, graças à
epigrafia grega, de um nome de profissão em grego formado a partir desta palavra:
«lentários», que era quem nos ginásios e nos balneários tratava das toalhas. O
contraste entre a categoria de Cristo e o desprestígio de papel por ele
assumido de escravo de balneário está patente no vocativo com que Pedro reage,
chocado, ao que Jesus acabou de fazer: «Kúrie» (Κύριε, ou seja «Senhor», mas
também a versão grega do nome do Deus do Antigo Testamento) «tu lavas-me os
pés?!» A cena prossegue, até
Jesus oferecer a explicação do que aconteceu. Tratou-se de um «hupódeigma»
(ὑπόδειγμα), dado por ele: de um «exemplo» (e a palavra tem aqui a sua única
ocorrência no conjunto dos quatro Evangelhos). «Para que tal como eu fiz vós
também façais. Amém amém vos digo: um escravo não é maior do que o seu Senhor
nem um apóstolo é maior do que quem o enviou. Se sabeis isto, sois
bem-aventurados – se fizerdes estas coisas». No que toca ao
vocabulário distintivo deste episódio do lava-pés, chama também a atenção a
palavra «apóstolo», aqui usada pela única vez no Evangelho de João. E é claro
que a palavra «escravo» não pode ficar sem comentário. Pois João é o único
evangelista que usa «escravo» em sentido não-denotativo, ou seja, dando-lhe um
segundo sentido que não é o literal. É só João que põe na boca de Jesus a frase
«quem comete o erro é escravo do erro» (8:34). Por outro lado, Jesus dirá aos
discípulos em João 15:15 que «já não vos chamo escravos, porque o escravo não
SABE o que faz o seu Senhor. Chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi
do meu Pai vos dei a CONHECER». A palavra «escravo»
pode ser entendida nestas passagens de João como designando a pessoa
desconhecedora das palavras de Jesus e, ao mesmo tempo, como antónima não de
«homem livre» mas sim como antónima de «amigo». E a escolha de cada um de nós
é, portanto, entre sermos «escravos» (fazendo o erro, 8:34) e sermos «amigos»
(«se fizerdes as coisas que vos preceituei»: 15:14). E que coisas são essas que
Jesus nos preceituou? «Se eu vos lavei os pés, sendo o Senhor e o Mestre,
também vós tendes de lavar os pés uns dos outros» (8:14). Finalmente, um pequeno
comentário à representação na arte deste extraordinário episódio do Evangelho
de João. Por norma, Jesus está completamente vestido. A ideia de um Jesus
desnudado, de toalha à cintura, foi vista como demasiado chocante para ser
pictoricamente representada. Algumas representações mostram o apóstolo «que
Jesus amou» a entornar água para dentro da bacia, embora o texto diga
explicitamente que Jesus assumiu todas as tarefas sozinho. Talvez a mais
extraordinária representação desta cena seja a que Tintoretto pintou para uma
igreja veneziana (e que pertence actualmente à coleção do Prado, Madrid). No
centro do quadro de Tintoretto, ao contrário do que é normal nas outras
representações, não vemos Jesus, mas sim um cão. Jesus está desviado para um
canto. Quem ocupa o lugar central do quadro é o cão. À volta vemos os apóstolos
em posições pouco dignas, despindo as meias e descalçando o calçado. Jesus, de
joelhos, levanta o olhar para Pedro, numa imagem expressiva da inversão de
categorias e dignidades, que é o grande tema deste episódio do Evangelho. É que
abaixo de senhor está o escravo; e abaixo de escravo? Já não existe mais
nenhuma categoria humana; portanto o pintor representou um cão. Amigo mas
também escravo, como se sabe, do seu dono. On Thu, 18 Apr 2019 at 09:47, José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt> wrote:
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