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[Archport] Perdoe-se-me a ousadia...

To :   "museum" <museum@ci.uc.pt>, "histport" <histport@uc.pt>, "archport" <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Perdoe-se-me a ousadia...
From :   José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>
Date :   Thu, 18 Apr 2019 12:27:48 +0100

… de partilhar a reflexão que o Doutor Frederico Lourenço teve a gentileza de me propor!

No voto de mui serenas festas pascais

 

J. d’E.

 


De: Frederico Lourenço [mailto:lourencofrederico@gmail.com]
Enviada em: quinta-feira, 18 de Abril de 2019 11:19
Para: José d'Encarnação
Assunto: Re: A reflexão após o incêndio

 

Muito obrigado! E, já que gostou, aqui vai outra pequena reflexão. Um abraço.

 

O lava-pés

A Quinta-Feira Santa remete-nos para o homem que instituiu a Eucaristia e lavou os pés dos seus discípulos. Quando eu era criança e adolescente, estes dois actos de Jesus, lembrados neste dia, eram para mim um todo inseparável, pois era assim que me tinha sido explicada a Quinta-Feira Santa em casa e na catequese. Devido ao fenómeno bem conhecido de todos os leitores dos Evangelhos – se lermos os quatro de seguida temos a impressão de estarmos a ler mais do mesmo e sempre a mesma coisa – levou algum tempo até que caísse a ficha, por assim dizer, no que toca a este facto fundamental: em Mateus, Marcos e Lucas, Jesus institui a Eucaristia, mas não lava os pés dos discípulos. Em João, Jesus lava os pés dos discípulos, mas não institui a Eucaristia.

A lavagem dos pés ocorre no início do Capítulo 13 de João. É um momento extraordinário deste evangelho que é, simultaneamente, uma obra-prima literária, porque João consegue por meio dele apontar prolepticamente para a fraseologia que empregará para relatar a Paixão. O acto preparatório da lavagem dos pés é o de Jesus despir as suas roupas (em grego «tà himátia», τὰ ἱμάτια). Esta palavra para roupas é usada por tudo e por nada pelos outros evangelistas, mas João usa-a apenas na lavagem dos pés e na crucificação de Jesus. O desnudar, o despir das roupas, é portanto altamente simbólico. Simbólico de quê? De exposição, de fragilidade, de rebaixamento. Antes de ser crucificado, Jesus será despido das suas roupas, que serão divididas pelos soldados (pormenor único do Evangelho de João, ausente dos outros Evangelhos). Antes de lavar os pés dos discípulos, é o próprio Jesus que toma a iniciativa de assim se expor, rebaixar e humilhar, para desempenhar um trabalho que, na expressão de Rudolf Bultmann (o mais brilhante de todos os comentadores do Evangelho de João), é «Sklavendienst», isto é, «trabalho de escravo». E não há dúvida de que «escravo» é uma das palavras-chave deste lava-pés, surgindo explicitamente no v. 16.

Antes de voltarmos a considerar o sentido de «escravo», frisemos outro ponto de contacto verbal entre a lavagem dos pés e a Paixão: é que a lavagem dos pés é introduzida pela afirmação de que Jesus amou os seus «até ao fim» («eis télos», εἰς τέλος); a Paixão descrita por João termina com Jesus a dizer, antes de morrer, «tetélestai» (τετέλεσται), «está cumprido» ou «foi levado até ao fim». Trata-se do verbo correspondente ao substantivo «télos», que introduz a narração do lava-pés.

A narração propriamente inicia-se com simplicidade desarmante: «levanta-se do jantar e despe as roupas e, tomando um “léntion”, pô-lo à volta da cintura. Depois atira água para uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e enxugar com o “léntion” que tinha à volta da cintura».

Este lavar e enxugar não são actos quaisquer. É imensamente expressiva a circunstância de o verbo para «enxugar» («ekmássō») ser o mesmo usado por Lucas (7:38) no episódio em que a mulher lava os pés de Jesus com lágrimas e os enxuga com os seus cabelos. Aqui Jesus não enxuga os pés dos discípulos com os seus cabelos, mas sim com um «léntion».

O que será este «léntion»? A palavra surpreende, não só por ter aqui a sua única ocorrência no Novo Testamento, como também pelo facto de ser um latinismo. Não é uma palavra grega. É a helenização da palavra latina «linteum», que designa um pano de linho. Vergílio usa a palavra para designar a vela de uma nau; Catulo e Petrónio usam-na com o sentido de «guardanapo» ou «toalha». Sabemos, graças à epigrafia grega, de um nome de profissão em grego formado a partir desta palavra: «lentários», que era quem nos ginásios e nos balneários tratava das toalhas. O contraste entre a categoria de Cristo e o desprestígio de papel por ele assumido de escravo de balneário está patente no vocativo com que Pedro reage, chocado, ao que Jesus acabou de fazer: «Kúrie» (Κύριε, ou seja «Senhor», mas também a versão grega do nome do Deus do Antigo Testamento) «tu lavas-me os pés?!»

A cena prossegue, até Jesus oferecer a explicação do que aconteceu. Tratou-se de um «hupódeigma» (ὑπόδειγμα), dado por ele: de um «exemplo» (e a palavra tem aqui a sua única ocorrência no conjunto dos quatro Evangelhos). «Para que tal como eu fiz vós também façais. Amém amém vos digo: um escravo não é maior do que o seu Senhor nem um apóstolo é maior do que quem o enviou. Se sabeis isto, sois bem-aventurados – se fizerdes estas coisas».

No que toca ao vocabulário distintivo deste episódio do lava-pés, chama também a atenção a palavra «apóstolo», aqui usada pela única vez no Evangelho de João. E é claro que a palavra «escravo» não pode ficar sem comentário. Pois João é o único evangelista que usa «escravo» em sentido não-denotativo, ou seja, dando-lhe um segundo sentido que não é o literal. É só João que põe na boca de Jesus a frase «quem comete o erro é escravo do erro» (8:34). Por outro lado, Jesus dirá aos discípulos em João 15:15 que «já não vos chamo escravos, porque o escravo não SABE o que faz o seu Senhor. Chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vos dei a CONHECER».

A palavra «escravo» pode ser entendida nestas passagens de João como designando a pessoa desconhecedora das palavras de Jesus e, ao mesmo tempo, como antónima não de «homem livre» mas sim como antónima de «amigo». E a escolha de cada um de nós é, portanto, entre sermos «escravos» (fazendo o erro, 8:34) e sermos «amigos» («se fizerdes as coisas que vos preceituei»: 15:14). E que coisas são essas que Jesus nos preceituou? «Se eu vos lavei os pés, sendo o Senhor e o Mestre, também vós tendes de lavar os pés uns dos outros» (8:14).

Finalmente, um pequeno comentário à representação na arte deste extraordinário episódio do Evangelho de João. Por norma, Jesus está completamente vestido. A ideia de um Jesus desnudado, de toalha à cintura, foi vista como demasiado chocante para ser pictoricamente representada. Algumas representações mostram o apóstolo «que Jesus amou» a entornar água para dentro da bacia, embora o texto diga explicitamente que Jesus assumiu todas as tarefas sozinho.

Talvez a mais extraordinária representação desta cena seja a que Tintoretto pintou para uma igreja veneziana (e que pertence actualmente à coleção do Prado, Madrid). No centro do quadro de Tintoretto, ao contrário do que é normal nas outras representações, não vemos Jesus, mas sim um cão. Jesus está desviado para um canto. Quem ocupa o lugar central do quadro é o cão. À volta vemos os apóstolos em posições pouco dignas, despindo as meias e descalçando o calçado. Jesus, de joelhos, levanta o olhar para Pedro, numa imagem expressiva da inversão de categorias e dignidades, que é o grande tema deste episódio do Evangelho. É que abaixo de senhor está o escravo; e abaixo de escravo? Já não existe mais nenhuma categoria humana; portanto o pintor representou um cão. Amigo mas também escravo, como se sabe, do seu dono.

 

 

La lavanda dei piedi  (Tintoretto).jpg

 

On Thu, 18 Apr 2019 at 09:47, José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt> wrote:

         Um abraço de aplauso!

                           

                   J. d’E.

                           

 


De: José d'Encarnação [mailto:jde@fl.uc.pt]
Enviada em: quinta-feira, 18 de Abril de 2019 01:01
Para: museum
Assunto: A reflexão após o incêndio

 

         Ousarei afirmar que, a exemplo do que aconteceu em 1755, quando o grande terramoto de Lisboa provocou por toda a parte, mormente entre os pensadores, as mais desencontradas reflexões, o incêndio da catedral de Notre Dame também suscitará o aprofundamento de questões sobre as quais nem sempre estamos disponíveis para nos debruçarmos.

         Transcrevo, pois, com a devida vénia, o que o Doutor Frederico Lourenço – que empreendeu, como se sabe, a tarefa de traduzir os textos bíblicos – publicou:

 

O numinoso

A angústia com que, ontem, todos recebemos a notícia do incêndio de Notre Dame foi uma chamada de atenção que nos lembrou esse extraordinário contributo da Igreja Católica para a humanidade: a sua arte (seja ela arquitectura, pintura, escultura ou música). O que seria do mundo sem as grandes obras-primas da arte católica? Seria um mundo incomparavelmente mais pobre – e um mundo onde eu, pessoalmente, detestaria viver. A beleza das catedrais românicas e góticas, a harmonia da arte renascentista católica, a glória da sua arte barroca: que deserto espiritual seria viver sem estes testemunhos do numinoso, que nos mostram um aspecto fundamental da experiência religiosa: o facto de as palavras não chegarem para exprimir Deus.

Gosto da palavra «numinoso». Vem do substantivo latino «nūmen», que se refere a algo da esfera do sobrenatural: talvez um poder ou uma influência divina, talvez a própria ideia de divindade. Mas eu diria que o sentido essencial de «nūmen» está ligado à sua etimologia, à sua ligação com o verbo «nuō», que significa à letra fazer um sinal com a cabeça. O mesmo étimo indo-europeu está presente em grego (no verbo νεύω, «fazer sinal com a cabeça») e em sânscrito, numa forma verbal que significa «move-se». Gosto de pensar no «numinoso» como uma maneira de Deus nos acenar.

A arte é por excelência o campo de acção do numinoso e, quando contemplamos o tecto da Capela Sistina ou ouvimos a música de Bach, sentimos esse estremecimento de sermos objecto do aceno numinoso de Algo que se move: Deus. A filosofia grega preferia conceber Deus como entidade isenta de movimento, mas não é assim que judeus e cristãos entendem o seu Deus que, logo no versículo 2 do Génesis, é descrito como tendo «um espírito» que é entidade dotada de movimento (levado «sobre as águas», como no original hebraico e na Vulgata, ou «sobre a água», na Septuaginta).

O Deus cristão é um Deus que se move; e dir-se-ia que apercebermo-nos da sua moção provoca em nós comoção. Sempre que me comovo diante de uma catedral gótica, ou diante da Pietà de Michelangelo, sinto isso como aceno de que Deus se moveu em mim. Agradeço essa experiência numinosa do sagrado à inspiração de tantos artistas e por isso dou plena razão a Ovídio quando escreveu que os artistas, enquanto «vates» (ou seja, mediadores entre o sagrado e o humano), são eles próprios sagrados («sacri» em latim) e objecto do cuidado divino: «existem inclusive aqueles que pensam que temos um nūmen» («sunt etiam qui nos numen habere putent», Amores 3.9.18).

A grande arte pictórica, arquitectónica e musical tem um papel insubstituível na experiência religiosa, porque a inspiração numinosa que lhe subjaz tem uma validade que pode ser sentida e aceite independentemente da razão. A experiência de ouvir a Paixão Segundo São Mateus de Bach é diferente de ler a seco o texto grego de Mateus porque não é possível, na leitura, desligar a razão. Quando leio Mateus pergunto-me se o papel de Judas na entrega de Jesus às autoridades terá verosimilhança histórica ou se não é uma retroprojecção nascida a partir da inimizade contra os judeus dos primeiros cristãos (pois o nome Judas sugere de imediato Judá e judeus). Se foi Judas a entregar Jesus às autoridades, por que motivo não há menção disso no texto mais antigo que fala desse facto (1 Coríntios 11:23)?

Por que razão só em Mateus os judeus presentes na condenação de Jesus dizem «o sangue dele <caia> sobre nós e sobre os nossos filhos»? Nenhum outro evangelista regista esta carta branca para a culpabilização eterna de judeus por parte de cristãos. Quando Mateus menciona a coroa de espinhos colocada em cima da cabeça de Jesus, ocorre-me sempre perguntar por que razão não existe coroa de espinhos em Lucas. E por associação de ideias, lembro-me da coroa de espinhos, essa tão famosa quanto duvidosa relíquia da catedral de Notre Dame, templo que conserva ainda fragmentos da «vera» cruz e até um prego com que Jesus foi crucificado (o que por sua vez me leva a pensar que Marcos, Mateus e Lucas nunca dizem que Jesus foi pregado na cruz).

No entanto, quando oiço isto transposto e sublimado pela música de Bach, tudo adquire outra dimensão. Não se trata já de questionar a sua verosimilhança histórica. Não se trata de analisar por meio da razão. A grande arte religiosa (e Notre Dame é disso um extraordinário exemplo) leva-me para outro plano. E nesse plano – onde actua o numinoso – posso sentir a experiência do sagrado como aceno de Deus.

 

 

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Professor Doutor José d'Encarnação

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