Ambas son muy agudas y oportunas reflexiones, gracias.
Añadiría una minucia: en español (como en portugués, lenço) hemos conservado la palabra "lienzo", derivada directamente del latín lintĕum (acepciones 5 y 1) , aunque hoy en día su uso para "pañuelo" o "toalla" está completamente abandonado, lo mismo que los tejidos, especialmente los usados para pintar (acep. 2 y 3), porque hoy ya no son de lino (carísimo), sino de algodón y poliéster. Y seguramente hechos en China... ;-)
Felices Pascuas, igualmente,
A.C.
José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt> escribió:
> … de partilhar a reflexão que o Doutor Frederico Lourenço teve a
> gentileza de me propor!
>
> No voto de mui serenas festas pascais
>
>
>
> J. d’E.
>
>
>
> _____
>
> De: Frederico Lourenço [mailto:lourencofrederico@gmail.com]
> Enviada em: quinta-feira, 18 de Abril de 2019 11:19
> Para: José d'Encarnação
> Assunto: Re: A reflexão após o incêndio
>
>
>
> Muito obrigado! E, já que gostou, aqui vai outra pequena reflexão. Um abraço.
>
>
>
> O lava-pés
>
> A Quinta-Feira Santa remete-nos para o homem que instituiu a
> Eucaristia e lavou os pés dos seus discípulos. Quando eu era criança
> e adolescente, estes dois actos de Jesus, lembrados neste dia, eram
> para mim um todo inseparável, pois era assim que me tinha sido
> explicada a Quinta-Feira Santa em casa e na catequese. Devido ao
> fenómeno bem conhecido de todos os leitores dos Evangelhos – se
> lermos os quatro de seguida temos a impressão de estarmos a ler mais
> do mesmo e sempre a mesma coisa – levou algum tempo até que caísse a
> ficha, por assim dizer, no que toca a este facto fundamental: em
> Mateus, Marcos e Lucas, Jesus institui a Eucaristia, mas não lava os
> pés dos discípulos. Em João, Jesus lava os pés dos discípulos, mas
> não institui a Eucaristia.
>
> A lavagem dos pés ocorre no início do Capítulo 13 de João. É um
> momento extraordinário deste evangelho que é, simultaneamente, uma
> obra-prima literária, porque João consegue por meio dele apontar
> prolepticamente para a fraseologia que empregará para relatar a
> Paixão. O acto preparatório da lavagem dos pés é o de Jesus despir as
> suas roupas (em grego «tà himátia», τὰ ἱμάτια). Esta palavra para
> roupas é usada por tudo e por nada pelos outros evangelistas, mas
> João usa-a apenas na lavagem dos pés e na crucificação de Jesus. O
> desnudar, o despir das roupas, é portanto altamente simbólico.
> Simbólico de quê? De exposição, de fragilidade, de rebaixamento.
> Antes de ser crucificado, Jesus será despido das suas roupas, que
> serão divididas pelos soldados (pormenor único do Evangelho de João,
> ausente dos outros Evangelhos). Antes de lavar os pés dos discípulos,
> é o próprio Jesus que toma a iniciativa de assim se expor, rebaixar e
> humilhar, para desempenhar um trabalho que, na expressão de Rudolf
> Bultmann (o mais brilhante de todos os comentadores do Evangelho de
> João), é «Sklavendienst», isto é, «trabalho de escravo». E não há
> dúvida de que «escravo» é uma das palavras-chave deste lava-pés,
> surgindo explicitamente no v. 16.
>
> Antes de voltarmos a considerar o sentido de «escravo», frisemos
> outro ponto de contacto verbal entre a lavagem dos pés e a Paixão: é
> que a lavagem dos pés é introduzida pela afirmação de que Jesus amou
> os seus «até ao fim» («eis télos», εἰς τέλος); a Paixão descrita por
> João termina com Jesus a dizer, antes de morrer, «tetélestai»
> (τετέλεσται), «está cumprido» ou «foi levado até ao fim». Trata-se do
> verbo correspondente ao substantivo «télos», que introduz a narração
> do lava-pés.
>
> A narração propriamente inicia-se com simplicidade desarmante:
> «levanta-se do jantar e despe as roupas e, tomando um “léntion”,
> pô-lo à volta da cintura. Depois atira água para uma bacia e começou
> a lavar os pés dos discípulos e enxugar com o “léntion” que tinha à
> volta da cintura».
>
> Este lavar e enxugar não são actos quaisquer. É imensamente
> expressiva a circunstância de o verbo para «enxugar» («ekmássō») ser
> o mesmo usado por Lucas (7:38) no episódio em que a mulher lava os
> pés de Jesus com lágrimas e os enxuga com os seus cabelos. Aqui Jesus
> não enxuga os pés dos discípulos com os seus cabelos, mas sim com um
> «léntion».
>
> O que será este «léntion»? A palavra surpreende, não só por ter aqui
> a sua única ocorrência no Novo Testamento, como também pelo facto de
> ser um latinismo. Não é uma palavra grega. É a helenização da palavra
> latina «linteum», que designa um pano de linho. Vergílio usa a
> palavra para designar a vela de uma nau; Catulo e Petrónio usam-na
> com o sentido de «guardanapo» ou «toalha». Sabemos, graças à
> epigrafia grega, de um nome de profissão em grego formado a partir
> desta palavra: «lentários», que era quem nos ginásios e nos
> balneários tratava das toalhas. O contraste entre a categoria de
> Cristo e o desprestígio de papel por ele assumido de escravo de
> balneário está patente no vocativo com que Pedro reage, chocado, ao
> que Jesus acabou de fazer: «Kúrie» (Κύριε, ou seja «Senhor», mas
> também a versão grega do nome do Deus do Antigo Testamento) «tu
> lavas-me os pés?!»
>
> A cena prossegue, até Jesus oferecer a explicação do que aconteceu.
> Tratou-se de um «hupódeigma» (ὑπόδειγμα), dado por ele: de um
> «exemplo» (e a palavra tem aqui a sua única ocorrência no conjunto
> dos quatro Evangelhos). «Para que tal como eu fiz vós também façais.
> Amém amém vos digo: um escravo não é maior do que o seu Senhor nem um
> apóstolo é maior do que quem o enviou. Se sabeis isto, sois
> bem-aventurados – se fizerdes estas coisas».
>
> No que toca ao vocabulário distintivo deste episódio do lava-pés,
> chama também a atenção a palavra «apóstolo», aqui usada pela única
> vez no Evangelho de João. E é claro que a palavra «escravo» não pode
> ficar sem comentário. Pois João é o único evangelista que usa
> «escravo» em sentido não-denotativo, ou seja, dando-lhe um segundo
> sentido que não é o literal. É só João que põe na boca de Jesus a
> frase «quem comete o erro é escravo do erro» (8:34). Por outro lado,
> Jesus dirá aos discípulos em João 15:15 que «já não vos chamo
> escravos, porque o escravo não SABE o que faz o seu Senhor.
> Chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vos dei
> a CONHECER».
>
> A palavra «escravo» pode ser entendida nestas passagens de João como
> designando a pessoa desconhecedora das palavras de Jesus e, ao mesmo
> tempo, como antónima não de «homem livre» mas sim como antónima de
> «amigo». E a escolha de cada um de nós é, portanto, entre sermos
> «escravos» (fazendo o erro, 8:34) e sermos «amigos» («se fizerdes as
> coisas que vos preceituei»: 15:14). E que coisas são essas que Jesus
> nos preceituou? «Se eu vos lavei os pés, sendo o Senhor e o Mestre,
> também vós tendes de lavar os pés uns dos outros» (8:14).
>
> Finalmente, um pequeno comentário à representação na arte deste
> extraordinário episódio do Evangelho de João. Por norma, Jesus está
> completamente vestido. A ideia de um Jesus desnudado, de toalha à
> cintura, foi vista como demasiado chocante para ser pictoricamente
> representada. Algumas representações mostram o apóstolo «que Jesus
> amou» a entornar água para dentro da bacia, embora o texto diga
> explicitamente que Jesus assumiu todas as tarefas sozinho.
>
> Talvez a mais extraordinária representação desta cena seja a que
> Tintoretto pintou para uma igreja veneziana (e que pertence
> actualmente à coleção do Prado, Madrid). No centro do quadro de
> Tintoretto, ao contrário do que é normal nas outras representações,
> não vemos Jesus, mas sim um cão. Jesus está desviado para um canto.
> Quem ocupa o lugar central do quadro é o cão. À volta vemos os
> apóstolos em posições pouco dignas, despindo as meias e descalçando o
> calçado. Jesus, de joelhos, levanta o olhar para Pedro, numa imagem
> expressiva da inversão de categorias e dignidades, que é o grande
> tema deste episódio do Evangelho. É que abaixo de senhor está o
> escravo; e abaixo de escravo? Já não existe mais nenhuma categoria
> humana; portanto o pintor representou um cão. Amigo mas também
> escravo, como se sabe, do seu dono.
>
>
>
>
>
> La lavanda dei piedi (Tintoretto).jpg
>
>
>
> On Thu, 18 Apr 2019 at 09:47, José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt> wrote:
>
> Um abraço de aplauso!
>
>
>
> J. d’E.
>
>
>
>
>
>
> _____
>
>
> De: José d'Encarnação [mailto:jde@fl.uc.pt]
> Enviada em: quinta-feira, 18 de Abril de 2019 01:01
> Para: museum
> Assunto: A reflexão após o incêndio
>
>
>
> Ousarei afirmar que, a exemplo do que aconteceu em 1755,
> quando o grande terramoto de Lisboa provocou por toda a parte,
> mormente entre os pensadores, as mais desencontradas reflexões, o
> incêndio da catedral de Notre Dame também suscitará o aprofundamento
> de questões sobre as quais nem sempre estamos disponíveis para nos
> debruçarmos.
>
> Transcrevo, pois, com a devida vénia, o que o Doutor
> Frederico Lourenço – que empreendeu, como se sabe, a tarefa de
> traduzir os textos bíblicos – publicou:
>
>
>
> O numinoso
>
> A angústia com que, ontem, todos recebemos a notícia do incêndio de
> Notre Dame foi uma chamada de atenção que nos lembrou esse
> extraordinário contributo da Igreja Católica para a humanidade: a sua
> arte (seja ela arquitectura, pintura, escultura ou música). O que
> seria do mundo sem as grandes obras-primas da arte católica? Seria um
> mundo incomparavelmente mais pobre – e um mundo onde eu,
> pessoalmente, detestaria viver. A beleza das catedrais românicas e
> góticas, a harmonia da arte renascentista católica, a glória da sua
> arte barroca: que deserto espiritual seria viver sem estes
> testemunhos do numinoso, que nos mostram um aspecto fundamental da
> experiência religiosa: o facto de as palavras não chegarem para
> exprimir Deus.
>
> Gosto da palavra «numinoso». Vem do substantivo latino «nūmen», que
> se refere a algo da esfera do sobrenatural: talvez um poder ou uma
> influência divina, talvez a própria ideia de divindade. Mas eu diria
> que o sentido essencial de «nūmen» está ligado à sua etimologia, à
> sua ligação com o verbo «nuō», que significa à letra fazer um sinal
> com a cabeça. O mesmo étimo indo-europeu está presente em grego (no
> verbo νεύω, «fazer sinal com a cabeça») e em sânscrito, numa forma
> verbal que significa «move-se». Gosto de pensar no «numinoso» como
> uma maneira de Deus nos acenar.
>
> A arte é por excelência o campo de acção do numinoso e, quando
> contemplamos o tecto da Capela Sistina ou ouvimos a música de Bach,
> sentimos esse estremecimento de sermos objecto do aceno numinoso de
> Algo que se move: Deus. A filosofia grega preferia conceber Deus como
> entidade isenta de movimento, mas não é assim que judeus e cristãos
> entendem o seu Deus que, logo no versículo 2 do Génesis, é descrito
> como tendo «um espírito» que é entidade dotada de movimento (levado
> «sobre as águas», como no original hebraico e na Vulgata, ou «sobre a
> água», na Septuaginta).
>
> O Deus cristão é um Deus que se move; e dir-se-ia que apercebermo-nos
> da sua moção provoca em nós comoção. Sempre que me comovo diante de
> uma catedral gótica, ou diante da Pietà de Michelangelo, sinto isso
> como aceno de que Deus se moveu em mim. Agradeço essa experiência
> numinosa do sagrado à inspiração de tantos artistas e por isso dou
> plena razão a Ovídio quando escreveu que os artistas, enquanto
> «vates» (ou seja, mediadores entre o sagrado e o humano), são eles
> próprios sagrados («sacri» em latim) e objecto do cuidado divino:
> «existem inclusive aqueles que pensam que temos um nūmen» («sunt
> etiam qui nos numen habere putent», Amores 3.9.18).
>
> A grande arte pictórica, arquitectónica e musical tem um papel
> insubstituível na experiência religiosa, porque a inspiração numinosa
> que lhe subjaz tem uma validade que pode ser sentida e aceite
> independentemente da razão. A experiência de ouvir a Paixão Segundo
> São Mateus de Bach é diferente de ler a seco o texto grego de Mateus
> porque não é possível, na leitura, desligar a razão. Quando leio
> Mateus pergunto-me se o papel de Judas na entrega de Jesus às
> autoridades terá verosimilhança histórica ou se não é uma
> retroprojecção nascida a partir da inimizade contra os judeus dos
> primeiros cristãos (pois o nome Judas sugere de imediato Judá e
> judeus). Se foi Judas a entregar Jesus às autoridades, por que motivo
> não há menção disso no texto mais antigo que fala desse facto (1
> Coríntios 11:23)?
>
> Por que razão só em Mateus os judeus presentes na condenação de Jesus
> dizem «o sangue dele <caia> sobre nós e sobre os nossos filhos»?
> Nenhum outro evangelista regista esta carta branca para a
> culpabilização eterna de judeus por parte de cristãos. Quando Mateus
> menciona a coroa de espinhos colocada em cima da cabeça de Jesus,
> ocorre-me sempre perguntar por que razão não existe coroa de espinhos
> em Lucas. E por associação de ideias, lembro-me da coroa de espinhos,
> essa tão famosa quanto duvidosa relíquia da catedral de Notre Dame,
> templo que conserva ainda fragmentos da «vera» cruz e até um prego
> com que Jesus foi crucificado (o que por sua vez me leva a pensar que
> Marcos, Mateus e Lucas nunca dizem que Jesus foi pregado na cruz).
>
> No entanto, quando oiço isto transposto e sublimado pela música de
> Bach, tudo adquire outra dimensão. Não se trata já de questionar a
> sua verosimilhança histórica. Não se trata de analisar por meio da
> razão. A grande arte religiosa (e Notre Dame é disso um
> extraordinário exemplo) leva-me para outro plano. E nesse plano –
> onde actua o numinoso – posso sentir a experiência do sagrado como
> aceno de Deus.
>
>
>
>
>
> ............................................
>
> Professor Doutor José d'Encarnação
>
> R. Eça de Queiroz, 89
>
> PAMPILHEIRA
>
> P - 2750-662 CASCAIS
>
> Tel. (+351) 214 866 409
>
> TM: (+351) 96 302 34 10
>
>
>
>
>
>
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>
> Sem vírus.
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