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[Archport] Numa aldeia croata, portugueses fazem a arqueologia da resistência antifascista

To :   Archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Numa aldeia croata, portugueses fazem a arqueologia da resistência antifascista
From :   Rui Gomes Coelho <ruigomescoelho@gmail.com>
Date :   Mon, 21 Sep 2020 03:19:00 +0200

https://www.dn.pt/edicao-do-dia/20-set-2020/numa-aldeia-croata-portugueses-fazem-a-arqueologia-da-resistencia-antifascista-12716440.html 

Numa aldeia croata, portugueses fazem a arqueologia da resistência antifascista

Para lembrar a solidariedade das populações, uma equipa internacional que integra elementos portugueses resgata material de quando a população resistiu ao fascismo e ajudou quem procurava refúgio.

Os ultranacionalistas croatas têm um histórico de terror durante a Segunda Guerra Mundial. À frente de um regime fantoche impulsionado pelos nazis alemãese fascistas italianos, os croatas perseguiram e executaram sérvios, judeus e ciganos, tendo recorrido a campos de extermínio. Em apenas quatro anos, entre 1941 e 1945, os mortos chegaram à casa das centenas de milhares.

Mas nesses tempos de ódio houve também exemplos positivos, de quem se rebelou contra o regime odioso ou de quem, também arriscando a vida, deu guarida a refugiados. É dessa resistência que o projeto de arqueologia Heritage from Below. Dreznica - Traces and Memories, constituído por profissionais das universidades da Croácia, da Espanha, de Portugal e da Inglaterra, deseja documentar-se numa abordagem multidisciplinar.

"O objetivo principal do projeto é tornar visível o lado civil da resistência e da guerra, que geralmente é pouco compreendida e que tem que ver com a rede de solidariedade que se formava atrás das linhas de combate e que dava não só apoio ao combate mas também que se mantivesse de certa forma uma vida normal. Tudo isto era trabalho das mulheres, havia crianças-soldados, e os camponeses é que sustentavam tudo isto", explica Rui Gomes Coelho, atualmente professor na Universidade de Durham, em Inglaterra.

O local é uma aldeia que fica num vale no interior da Croácia, Dreznica, numa região em que a minoria sérvia no país constitui a maioria dos habitantes. Nas escavações que vão prosseguir até ao final do mês, a equipa esteve de volta de uma gruta e de uma casa que foi usada como quartel-general dos partizans, os guerrilheiros da resistência antifascista.

Na primeira semana de trabalho fizeram uma escavação numa gruta resultante de uma campanha de prospeção no ano passado, na qual avistaram uma série de cruzes medievais inscritas na rocha. "Depois ouvimos a história na comunidade local de que tinha servido para acolher refugiados da II Guerra Mundial e decidimos escavá-la", prossegue o professor assistente na Universidade de Durham.

E na semana passada o grupo decidiu escavar uma casa de camponeses que serviu de acampamento aos primeiros partizans, entre os quais se destacou um grupo de veteranos que esteve na Guerra Civil Espanhola. "Depois foram decisivos na organização, muita da experiência da Guerra Civil de Espanha acabou por se verter na guerra, não só pelo tipo de organização e de combate mas também pela sua formação cultural", prossegue.

Nessa casa nasceu em 1945 Anda Mamula. Ao fim de décadas, voltou a visitar a casa onde nasceu como refugiada, como contou à equipa de arqueólogos. Segundo Rui Gomes Coelho, a croata associou "imediatamente a sua história ao que se passa agora". Não é incomum que paquistaneses ou afegãos, não se sabe exatamente, lhe vão bater à porta a pedir água e comida. "E quando tenta falar com eles, comunicam a dizer 'America, bum bum'."

"É muito importante no momento atual na Europa, em que há pessoas em situações de guerra, ou que foram forçadas a abandonar as suas casas e os seus países e que estão a atravessar regiões que noutra época tiveram o mesmo problema. Fazemos uma sobreposição direta entre o que se viveu aqui durante a II Guerra Mundial, em que havia pessoas a movimentar-se pela montanha e pela floresta para chegarem a locais seguros e eram apoiadas pela população local e pelos partizans, e isso é uma experiência que nos dá uma lição muito importante para os dias de hoje. Hoje há migrantes que tentam chegar à Alemanha e atravessam esta região escondidos para tentar ter uma vida melhor", lembra.

Afastar os fantasmas do passado

Exprimindo-se num português notável, o ex-embaixador em Portugal Želimir Brala saúda "contribuições valiosas como essa" para o fomento da "cultura de memória". "Também acho de suma importância que os nossos dois países periféricos em sentido geográfico consigam afastar os fantasmas do passado e o extremismo radical que infelizmente surge em várias partes da Europa", disse, não sem antes recordar que "o movimento dos partizans foi o único que defendeu a Jugoslávia na época, sozinho, sem apoio do Exército Vermelho e com o apoio logístico e material dos aliados ocidentais".

Brala, atualmente docente na Universidade de Zagreb, congratula-se por "ver que os meios académicos dois países estão a trabalhar juntos", e augura que a cooperação vai fortalecer-se no futuro.

"Não há melhor maneira de cultivar a cultura de memória aos tempos gloriosos em que as pessoas foram defender os seus ideais, no nosso caso pelo Partido Comunista da Jugoslávia, liderado por Tito; no caso da guerra de Espanha, onde os meus compatriotas também participaram, pelos republicanos", conclui o antigo diplomata.

Esse trabalho dos partizans vai ser alvo de investigação da equipa no futuro. "Estamos a planear escavar no próximo ano um sítio que a comunidade local chama de Agit-prop. Era onde funcionava a propaganda dos partizans. Tinham uma série de casas, tudo em madeira, onde tinham uma imprensa e produziam folhetos, panfletos, canções e até peças de teatro.

A equipa encontrou uma peça de teatro que foi produzida durante a guerra, e os italianos, a principal força ocupante, a dado momento, atacaram e destruíram o edifício, como comprova a munição italiana encontrada com o detetor de metais.

Levar à cena uma peça de teatro escrita então e realizar uma exposição são dois objetivos para concretizar no próximo ano.

Contra o revisionismo histórico

"A função do nosso projeto é fazer a ligação entre o que aconteceu num período que já poucos se lembram e o presente. Queremos demonstrar que há um substrato que é o sentimento de solidariedade e humanitário, que é mais profundo do que as divisões em determinadas circunstâncias. Este é um projeto com um objetivo político, não é uma arqueologia comum no sentido de querermos descobrir o passado. Nós queremos tratar do presente, e para tratar do presente vamos buscar coisas do passado que nos interessa mobilizar para defender os valores no presente", explica Coelho.

"O outro aspeto é o do revisionismo histórico. Estamos a assistir a uma viragem na extrema-direita em toda a Europa, incluindo em Portugal e nos Balcãs, e queremos mostrar que o movimento partizan era local, era a força organizada naquele momento contra a ocupação alemã e italiana. Isso é um sentimento comum em comunidades rurais um pouco por todo o lado, também em Espanha ou em Portugal. Com o mesmo grupo de arqueólogos estivemos há dois anos a trabalhar numa aldeia chamada Cambedo, no concelho de Chaves", que foi bombardeada pelo Exército português por suspeitas de ter acolhido antifranquistas.

"As pessoas estavam muito longe de saber o que era o comunismo, mas sentiam-se injustiçadas e sentiam o dever de hospitalidade, de acolher. Se há 80 anos fizeram-no em situações muito mais difíceis, agora também o podemos fazer."

Neste sábado a população conheceu os resultados da intervenção arqueológica, através de uma palestra, e foi auscultada sobre o futuro do projeto Heritage from Below. Dreznica - Traces and Memories. Foram ainda expostos os objetos encontrados nas escavações.





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