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[Archport] Algumas reflexões à volta de 1980

To :   archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Algumas reflexões à volta de 1980
From :   Luís Raposo <3raposos@sapo.pt>
Date :   Wed, 16 Dec 2020 15:43:10 +0000

Algumas reflexões à volta de 1980

 

Vejo que as “datas redondas” estimulam o pensamento e sem dúvida que para a arqueologia portuguesa 1980 é uma delas.


Mas, como todas, como sempre em história, constitui uma data de sol e sombra, seja dentro da arqueologia seja no seu entorno. Isto lhe não retira importância, mas convém ser tido em conta, em benefício do ofício do historiador.


1980 é o ano da constituição do Governo da AD; o ano de acesas lutas, de casa e de rua, contra tal governo, que representava um corte radical com o percurso havido desde 1974 e, para muitos nós, o fim de um certo 25 de Abril democrático. Foi o ano e que lutámos (eu certamente lutei) com todas as forças, na rua, contra Soares Carneiro, o “general fascista” como depreciativamente era chamado: o primeiro a declarar que, ganhando, impediria o estabelecimento de acordos de governo com o PCP (…e como tal depois fez escola durante décadas…).


Este é um dos lados da questão. Mas só quem verdadeiramente nunca participou em lutas a doer, como é o caso actualmente de muitos dos activistas do teclado, instiladores do ódio nas redes sociais, mas inconsequentes e na verdade desprezíveis (senão medrosos, em muitos casos), é que pode supor ser essa dimensão da luta e do posicionamento político seria incompatível tanto com a cordialidade pessoal, como com o aproveitamento, participação e mesmo saudação dos avanços parciais que pudessem existe aqui ou acolá. Já tinha sido assim antes de 1974, muito mais o seria e foi no depois.


E, como sempre, jogam em cada situação factores circunstanciais e factos estruturais, causas subjectivas e causas objectivas.

No caso da arqueologia, estruturalmente, o percurso havido entre 1974 e 1979 tinha criado um novo quadro. Nas universidades evoluiu-se das primeiras “pré-especializações”, instituídas na prática pelos estudantes, até às primeiras variantes, estas já na sequência das reformas do Ministro Cardia. Já agora e a propósito recordo como este, que sempre combati, sobretudo na minha fase de professor do ensino preparatório e secundário, teve mais tarde, e não obstante, a frontalidade de me defender do processo disciplinar movido por Santana Lopes, em termos tão duros, que só um anti-fascista do antigamente poderia mesmo usar (...cá está: mais uma manifestação de cordialidade).


Fora da universidade (e recordo artigo que escrevi intitulado “A Arqueologia portuguesa fora das universidades”, a que certo colega amigo, não recordo qual, resolveu dizer que só faltava o “já!”, típico da época), sedimentaram-se e democratizaram-se os órgãos de consulta e intensificou-se muitíssimo a pressão para que uma nova realidade emergisse, dando lugar aos mais jovens. A diferença para agora é que esses jovens de então estavam, muitos deles, fortemente empenhados também na luta política geral. E, no plano da disciplina, não tinham medo de enfrentar os poderes fáticos quando necessário, mesmo mantendo relações de cordialidade. Ou seja, faziam mais do que falavam.


Acrescentou-se depois a conjuntura: Francisco Alves, regressado de França e objectivamente sem o adequado cursus honorum (académico ou curricular), tinha logrado captar a simpatia de Jorge Alarcão, que o indicou para criar em Braga um Campo Arqueológico. Compreendo muito bem esta atitude de Jorge Alarcão: Francisco Alves era de facto uma força organizativa e a sua condição de outsider do nosso meio, acrescida da veemência e sedução do seu verbo, seriam bastantes para captar a atenção de quem, toda a vida e mesmo nos tempos mais duros da ditadura, sempre apoiou a rebeldia e “o contra” (Jorge Alarcão, recordo o que dele me disse Cláudio Torres, era um dos poucos, talvez o único com a categoria de assistente, que não passava para o passeio contrário e antes lhe aceitava e guardava dobrado debaixo do braço o “Avante!”, quando ela o andava a distribuir pelas rua em Coimbra).


Em Braga, Francisco Alves fez obra: todos a gabavam. Quando em 1980 foi nomeado por Sá Carneiro um secretário de Estado da Cultura algo “louco” e com pontes à esquerda, Vasco Pulido Valente, Francisco Alves aparecia-lhe como o companheiro das barricadas de Maio de 1968, em Paris.


Instalou-o no MNA, contra expressa vontade do PSD conservador (na altura representado neste sector por Natália Correria Guedes). MNA onde um novo poder estava em curso de implantação, com Caetano de Mello Beirão à cabeça (e a assistência de Mário Varela Gomes e Carlos Penalva) e incumbiu-o de lhe apresentar propostas para a reorganização da arqueologia nacional… O que foi ele fazer! Alves mobilizou todos os “jovens turcos”, sobretudo lisboetas (e nos quais eu me contava), e “tomou de assalto” o IV Congresso Nacional de Arqueologia, tendo mesmo escrito (segundo se diz) o discurso que lá proferiu Pulido Valente.


Ou seja e em conclusão: 1980 foi, de facto, devido à conjunta, porventura até do que à estrutura. Um ano de fronteira para a nossa arqueologia. Uma boa fronteira, em meu entender. O País, no seu todo, atravessava o Rubicão em direcção contrária, a do regime mais cesarista.


Pergunto-me, passadas as décadas se qualquer destas duas fronteiras foi assim tão boa ou tão má, respectivamente. Ainda penso que sim, mas confesso que muito do que em ambos os sentidos pensei tem sido matizado pelo tempo, esse grande escultor. Afinal, para matizar o bom, vimos que os mesmos temas de 1980 continuam válidos em 2020, agora talvez com perspectivas ainda mais pessimistas (era o que me dizia hoje uma amiga). E, por outro lado, para relativizar o mau, o País não guinou assim tanto para a direita como supúnhamos e até se deu o caso nos últimos anos se ter finalmente, com algo a que nos habituámos a chamar de “Geringonça”, posto cobro ao esconjuro do general que em 1980 perdeu para Eanes (outra ironia da história) e a quem chamávamos “fascista” – com exagero, reconheço.


16.12.2020


Luís Raposo

 





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