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Re: [Archport] Adoção de medidas urgentes de salvaguarda do património arqueológico

To :   José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] Adoção de medidas urgentes de salvaguarda do património arqueológico
From :   "M. Conceição Lopes" <conlopes@ci.uc.pt>
Date :   Tue, 20 Apr 2021 11:03:05 +0100

Acompanhando de perto este processo de actuação contemporânea sobre o património (num misto de pasmo e de espanto face à utilização obesa do património para tudo e à incúria e desproteção a que assistimos todos os dias) congratulo-me com a iniciativa do PCP. Não poderei, todavia, duvidar dos efeitos de bondade destas iniciativas, questionando se, tal qual ela é apresentada, não se presta apenas a um mais ou menos ruidoso “fogo de artifício” (mesmo que o fogo de artifício possa ser um contributo para alumiar”) que passa logo pela madrugada do dia seguinte.  E é pena, porque o assunto é sério e a iniciativa inecessária.

É verdade que é uma tragédia desaparecerem os monumentos megalíticos do Alentejo. Como é uma tragédia desaparecerem as villae e necrópoles romanas, os montes medievais, e outras formas visíveis e orgânicas de habitar em vida e em morte no passado (mais ou menos recente) no Alentejo.

Com a agricultura intensiva alteraram-se o regime de propriedade, as técnicas de trabalhar o solo e a sociedade rural; a vida associada ao trabalho agrícola, mudou totalmente. O cante Alentejano já não é o dos homens na taberna ao fim do de um dia de trabalho e as mulheres, tantas vezes temas dos versos, desaparecem dos campos.

Com as novas comunidades que chegam de longe alteraram-se as formas de vida e os modos de habitar.  

Os campos perdem o património ancestral: os sistemas de reagido tradicionais e as marcas de divisão cadastral de tempo longo, que também são património rural (ignorado na maior parte das vezes), descarnam-se do solo, e os aglomerados urbanos, os grandes e os pequenos, vêm as suas casas tradicionais (pobres ou ricas) entregues à transformação sem cuidado. Hoje há uma nova comunidade a viver nas cidades e vilas que se localizam no meio desse “mato” de oliveiras, amendoeira e outras eiras que transformaram a superfície dos campos. Alojar estas pessoas comporta uma alteração da estrutura das casas; a casa com suas divisões de recato apreciável esventra-se para dar lugar a espaços abertos sem intimidade; para poderem acoitar-se muitas pessoas em simultâneo, homens quase sempre.

E são sobretudo as casas mais antigas, aquelas que sobreviveram na sua traça à erosão dos tempos que são objecto destas transformações.

Basta passar nas ruas e ver os restos de abóbadas e arcos de tijolo (as formas ancestrais de construir) esfrangalhadas nos contentores que recebem o lixo e onde, muitas vezes, se vêm os fragmentos da penetração do solo e os restos da história da cidade esmigalhada em cacos. Sabemos bem que em Portugal a definição que consagra a cidade como um sítio arqueológico indiviso não tem procedência (vá-se lá saber porquê!), mas equipas de arqueólogos e outros deveriam ser chamadas a fazer o acompanhamento destas alterações, de modo a que pudesse garantir-se que os trabalhos contribuiriam para o enriquecimento do conhecimento sobre as nossas cidades antigas, em todos os seus patrimónios.

Abordar as rápidas transformações de casas em AL, faz igualmente parte deste processo. A transformação dos modos de fazer viver as cidades resulta, evidentemente, de estímulos internos, mas também de estímulos de larga geografia, uns e outros com impactos que devem ser avaliados em conjunto (não se discute nem qualificam aqui os impactos da proliferação de Al na sustentabilidade da cidade).

Transformam-se de modo dramático os campos, mas as cidades não param de apagar o processo antigo da sua construção. Tudo quase sempre devidamente autorizado e legalizado, pelo que todos os apelos são desejados, sobretudo se vierem de quem tem força para provocar mudança.

Porém, creio eu, é preciso mais. É preciso sair da coisa em si e localizá-la no lugar que lhe dá existência, no passado e na contemporaneidade.

Tomando as palavras de Bruno Latour: “A Arqueologia abre sobre corpos incompletos e trabalha em contextos incertos, e com objectos largamente desconhecidos. É, portanto, uma abordagem confrontada com a invenção permanente do seu discurso. E é aqui que os arqueólogos oscilam entre dois pólos contraditórios: ou se comprometem resolutamente com o desconhecido e dele retiram todo o tipo de consequências, ou integram o novo no já conhecido, que é um já reconhecido. Esta oscilação é o campo de tensão próprio da disciplina e a passagem de um para o outro é o trabalho de mediação”, a Arqueologia pode, caso queira sair da coisa em si mesma, da integração e mediar o debate.   A Arqueologia pode desencadear uma reflexão profunda e sobre o todo, fazendo com que o impacto seja mais ensurdecedor e, quem sabe, aglutinador; uma reflexão de fundo, séria e multidisciplinar, que parta de um conhecimento solidificado. Além dos trabalhos dos nossos etnógrafos, que tudo nos ensinaram sobre o património, na obra maior de José Cutileiro “Ricos e Pobres no Alentejo”, um clássico da antropologia portuguesa e europeia dos anos 70 do século XX, na “Evolução da Agricultura do Alentejo Meridional: As cartas agrícolas de g. pery . difíceis perspectivas” de Mariano Feio, encontra a Arqueologia sem dificuldade os pontos de partida para iniciar esse debate. Com todos os fogos de artifício que ajudem.


Maria da Conceição Lopes
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No dia 19/04/2021, às 23:57, <jde@fl.uc.pt> <jde@fl.uc.pt> escreveu:

São várias as situações que têm vindo a público, acerca de um grande número de destruições de património arqueológico provocadas por revolvimentos de solos de grande profundidade e extensão associados a novas culturas permanentes, designadamente, de cariz intensivo e superintensivo. Esta situação, não sendo nova e não se restringido a um único ponto do país, tem sido particularmente marcante no Alentejo pela dimensão e pela rapidez da destruição de património arqueológico de valor inestimável.
 
No sentido da resolução destes problemas o PCP apresentou o Projeto de Resolução n.º 1146/XIV/2.ª que Recomenda ao Governo a adoção de medidas urgentes de salvaguarda do património arqueológico, onde defende: 
1 - O reforço, de imediato, os meios de intervenção da Direção Geral do Património Cultural e das Direções Regionais de Cultura, com vista ao aumento do acompanhamento e fiscalização no terreno; 
2 - A criação de um mecanismo legal para a instrução a título excecional de processos de classificação abrangentes, como o referente ao conjunto dos monumentos megalíticos do Alentejo; 
3 - A atualização urgente da informação constante no Endovélico - Sistema de Informação e Gestão Arqueológica, assegurando todos os meios necessários para esse efeito; 
4 - A articulação entre o Ministério da Cultura, o Ministério da Agricultura e o Ministério do Ambiente, garantindo a interoperabilidade dos sistemas de informação georreferenciada e a regular troca de informações relevantes;
5 - A regulamentação prevista da Lei de Bases do Património Cultural, elaborando a respetiva legislação de desenvolvimento referente, designadamente: ao regime de reserva arqueológica; ao regime das cartas arqueológicas; aos outros tipos de providências limitativas da modificação do uso, da transformação e da remoção de solos até que possam ser estudados os testemunhos que se saiba ou fundamentadamente se presuma ali existirem; aos benefícios e incentivos fiscais relativamente a operações de arqueologia preventiva promovidas por detentores; 
6 - A contratação atempada e a todo o tempo de todos os trabalhadores necessários à Direção Geral do Património Cultural e serviços dependentes, procedendo ao reforço dos quadros de pessoal e assegurando vínculos laborais estáveis;
7 - O levantamento sistemático e geral de todos os casos de destruição de património arqueológico identificados nos últimos 5 anos, com as situações denunciadas, a caracterização do acompanhamento de cada uma, as medidas tomadas pela tutela respetiva, os casos que deram origem a queixa-crime e os seus resultados, enviando um relatório com estas informações à Assembleia da República até ao final do primeiro semestre de 2021;
8 - A elaboração, até ao final de 2021, uma estratégia nacional de proteção e salvaguarda do património arqueológico, incluindo uma vertente de sensibilização e informação patrimonial, com a auscultação e envolvimento dos sindicatos, das associações de arqueólogos e de defesa do património e da comunidade científica.
 
Este Projeto, que envio em anexo, foi aprovado na generalidade com os votos contra do CDS e a abstenção do PS e da IL. 
Com os melhores cumprimentos, 
 
Pedro Ramos
Chefe de Gabinete do Grupo Parlamentar do PCP
 
 



<Projeto de Resolução 1146 que Recomenda ao Governo a adoção de medidas urgentes de salvaguarda do património arqueológico.pdf>_______________________________________________
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