Na morte de Manuel Maia
Eu gostava do Manuel Maia, daquele seu feitio truculento, frontal (por vezes, brutalmente frontal), temperado por um fundo de bondosa candura, quase infantil.
Manuel Maia foi Assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa até 1988 (creio) de onde saiu na sequência da reprovação da sua Dissertação de Doutoramento em provas públicas, como bem recordará quem às ditas assistiu, não com uma recusada tese sobre ânforas, como aqui se escreveu, mas com uma Dissertação sobre o processo de Romanização no Sul de Portugal.
A tese está disponível em linha (formato pdf) e pode ser consultada e citada, como já o fiz, mais do que uma vez (a última, em texto publicado neste ano de 2021).
Por estar disponível, cada um poderá aquilatar dos seus méritos e deméritos. Diria que não é uma obra de referência, mas contém abundante informação interessante. Não é pior do que outras Dissertações submetidas e aprovadas nesses e noutros tempos e a reprovação deveu-se no meu entender ao peculiar ecossistema académico desses longínquos anos 80 do século XX, que espero (e desejo) se extinguiu para sempre:
Maia, M. M. F. A. (1987) Romanização do território hoje português a sul do Tejo. Contribuição para a análise do processo de assimilação e interacção sócio-cultural 218-14 d.C.. Dissertação de Doutoramento entregue à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (policopiado). Disponível em:
Depois deste episódio, naturalmente traumático, Manuel Maia afastou-se das lides arqueológicas por uns tempos. Estava por Castro Verde e como estávamos próximos (ali em Almodôvar) visitamo-lo e recebemos a sua visita (dele e de Maria Maia) com regularidade.
Fomos mantendo o convívio até que, há mais de uma dúzia de anos, uma questão lateral, que nada teve de pessoal, gerou entre nós uma briga feia. Cortámos relações, deixamos de nos falar.
O tempo passou e a situação incomodava-me. Não sou de rancores (ainda por cima quando nada de pessoal estava em causa) e não gosto de viver zangado com ninguém.
Várias vezes comentei que desejava ultrapassar a situação, chegou-lhe aos ouvidos e, por terceiros, Manuel Maia fez-me saber que também para isso estava disponível. Teimosos os dois (como diz o povo, ninguém teima sozinho) estávamos naquela: quem dá o primeiro passo? Eu achava que devia ser ele, porque penso ter sido ele a provocar a nossa zanga; provavelmente, ele pensava o mesmo a meu respeito. Assim ficámos. Agora é tarde e lamento sinceramente que tenha acabado assim.
Bom descanso, Manuel Maia.
Carlos Fabião
_______________________________________________O falecimento do Dr. Manuel Maia
Há, naturalmente, notícias que nos custam dar muito mais do que outras. Esta é uma das que nos dilacera o coração, por se tratar de um companheiro de viagem desde os bancos da Universidade, quando ambos cursámos História na Faculdade de Letras de Lisboa (1964-1969) e integrámos o grupo de estudantes que se deixou facilmente entusiasmar pelo magistério de D. Fernando de Almeida.
Depois, fizemos o Curso de Conservador de Museus no Museu Nacional de Arte Antiga, em 1972-1973, sempre acompanhados pela Maria (a Dra. Maria Adelaide Maia), sua mulher também já falecida. Daí terem ido ambos trabalhar de seguida para o Museu Nacional de Arqueologia.
Uma cumplicidade enorme nos ligou sempre, nessas lutas pela Arqueologia e pelos museus.
Consumado o 25 de Abril, ele e a Dra. Maria Adelaide ficaram como assistentes da Faculdade, na altura de renovação dos quadros.
Interessava-se, então, pela ocupação romana da actual Beira Alta, tendo sido dos primeiros a rever a problemática do templo de Almofala (comunicação ao II Congresso Nacional de Arqueologia, em Coimbra); e desse território «interaniense» estudou as vias e as villas romanas (O Arqueólogo Português 1974-1977).
Manuel Maia chegaria mesmo a propor-se a doutoramento com uma tese sobre ânforas, um domínio de investigação que, na altura, dava entre nós os primeiros passos. Não chegou a ser aceite, não se tendo então compreendido muito bem as razões aduzidas, o que lhe provocou alguma mágoa duradoura.
Aliás, esse facto, aliado às circunstâncias políticas e académicas posteriores levaram-nos a sair de Lisboa e, no Algarve, deram corpo ao grande projecto de preservar a cidade romana de Balsa, em Tavira, criando um Campo Arqueológico, a designação comum na altura para as estruturas de apoio a um sítio arqueológico. Aí desenvoklveram uma actividade a todos os títulos notável, podendo mesmo afirmar-se que, sem o seu entusiasmo e dedicação, de Balsa se não conheceria o que se sabe hoje.
De Balsa seguiram para Castro Verde, onde deram corpo ao mui singular Museu da Lucerna e se dedicaram a explorações arqueológicas que muito contribuíram para o conhecimento da ocupação romana nessa área da Lusitânia.
Recorde-se que foi de Manuel Maia a ideia de terem existido ‘castelos’ no início da permanência dos Romanos nesse território, como locais altaneiros destinados não apenas à defesa militar mas também à organização económica, designadamente ligada à mineração (cf. «Fortaleza romana do monte Manuel Galo», comunicação apresentada ao III Congresso Nacional de Arqueologia, no Porto).
Aliás, Manuel Maia colaborou intensamente com a empresa das minas Neves-Covo, sempre procurando salvaguardar tudo o que fosse possível. Deve-se-lhe – e a Maria Maia – muito do que se sabe acerca do depósito votivo de Santa Bárbara de Padrões, onde – em seu entender (e não só) – se deverá localizar a cidade romana de Arandis (cf. MAIA, Maria Garcia Pereira, Lucernas de Santa Bárbara. Castro Verde: Núcleo de Arqueologia da Cortiçol, 1997).
Da sua bibliografia pode ainda destacar-se:
MAIA, M. (1984) - Os povos do sul de Portugal nas fontes clássicas - Os Cónios. Arqueologia e História. série X. 1/2, p. 71-9.
MAIA, M. (1985) - Celtici e Turduli nas fontes clássicas. Actas del III Coloquio sobre Lenguas e Culturas Paleohispánicas da Península Ibérica (Lisboa. 1980). Salamanca, p. 165-77.
No voto de pesar hoje mesmo apresentado pelo Município de Castro Verde, pode ler-se:
“O seu desaparecimento físico constitui para Castro Verde e para a comunidade científica ligada à História a perda irreparável de alguém que, nos últimos 40 anos, assumiu no nosso concelho e no país um forte compromisso cívico e de carácter social”.
Do saber e experiência de Manuel Maia, ora falecido aos 76 anos, ainda havia, naturalmente, muito a esperar, porque se mantinha activo e entusiasmado. A cada passo me dava conta do aparecimento de mais uma epígrafe (que publicámos no Ficheiro Epigráfico).
Custa-nos muito vê-lo partir!
Que descanse em paz!
José d’Encarnação
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