Estupefacção / Indignação:
O algoritmo do Google
presenteou-me com este incrível anúncio:
https://lifestyle.sapo.pt/amp/casa-e-lazer/noticias-casa-e-lazer/artigos/ruinas-do-teatro-romano-de-lisboa-do-seculo-iv-integram-loft-totalmente-exclusivo-a-venda-por-perto-de-1-milhao-de-euros
“Ruínas
do Teatro Romano de Lisboa do século IV integram Loft totalmente exclusivo à
venda por perto de 1 milhão de euros. Este é um dos mais históricos e
exclusivos apartamentos em Lisboa.”
As ruínas do teatro
romano de Felicitas Iulia Olisipo
foram identificadas em 1798, no contexto dos desaterros para a reconstrução da
cidade de Lisboa, depois do grande terramoto de 1755. Numa época em que se
afirmava o gosto pela arquitectura clássica, Francisco Fabri, arquitecto
italiano o serviço da coroa portuguesa propôs no ano seguinte (1799) o embargo
das obras de reconstrução naquela área e a conservação in situ das ruínas (a primeira proposta do género que se fez em
Portugal). A longa conjuntura turbulenta e conflitiva da primeira metade do
nosso século XIX inviabilizou o plano.
As ruínas do teatro
jazeram quase esquecidas até aos meados do século XX, quando sofreram novas
afectações, numa época em que já não estavam à vista.
Recentemente, Cristina
Leite divulgou um notável conjunto de documentos do acervo do Arquitecto
Cassiano Branco sobre o teatro romano, realizados, note-se, quando nada era já
visível. Cassiano Branco manifestou-se em 1960 contra a construção de um novo
imóvel na área onde se encontrariam as ruínas do edifício cénico, sugerindo que
a Câmara Municipal de Lisboa adquirisse e demolisse os imóveis dessa área, para
recuperar e restaurar o teatro romano, chegando mesmo a esboçar um plano de
enquadramento para as ruínas. Veja-se:
http://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/Investigacao/artigo_cristinaleite.pdf
Ignoradas as propostas do
Arquitecto e construído o edifício, começou em 1964 a tentativa de recuperação,
valorização, conservação e divulgação das ruínas, primeiro por iniciativa de
Fernando de Almeida, a partir da Faculdade de Letras de Lisboa, com os seus
alunos, depois pela continuada e persistente batalha de Irisalva Moita, nem
sempre bem-sucedida.
Ainda assim, as ruínas
foram classificadas como Imóvel de Interesse Público, por Decreto de 1967, e
publicada a sua ZEP (Zona Especial de Protecção), por Portaria de 1969.
Os avanços e recuos
continuaram, aparentemente porque nenhum responsável (?) político alguma vez
entendeu que Lisboa é a única capital europeia (para além de Roma, bem
entendido) que possui um teatro romano, ou seja, uma indiscutível mais-valia em
múltiplas dimensões.
Finalmente, já neste
século, em 2001, foi inaugurado o Museu do Teatro Romano de Lisboa. Um projecto
modesto, face à dimensão da área abrangida pelo monumento, mas um excelente
equipamento que poderia ser um bom ponto de partida para, paulatinamente, se
reconfigurar a área, de modo a valorizar essa magnífica pré-existência.
Lamentavelmente,
reabilitação urbana em Lisboa é sinónimo de fazer tábua rasa das
preexistências, conservando aqui e ali uns “apontamentos de memória histórica”,
para apaziguar consciências. Não vale a pena voltar a falar do exemplo de
Cartagena, mas merece destaque o facto de nesse já longínquo ano de 1960,
Cassiano Branco ter proposto o que mais tarde se fez na cidade andaluza:
musealizar as ruínas do teatro romano, realizando um vasto plano de
requalificação urbana da envolvente.
Ao longo das décadas de
70 e 80, quando se debateu periodicamente o tema do teatro romano e da sua
recuperação, muita agitação houve, sobretudo com as queixas dos moradores sobre
eventuais despejos e realojamentos. Os mais velhos recordarão que um dos mais
acérrimos (e mediáticos) adversários do projecto foi o poeta Ary dos Santos, morador
na Rua da Saudade, justamente em um dos prédios que merecia ser demolido,
aquele que se fez em 1960 e cuja construção Cassiano Branco deplorou.
Eram atendíveis as
queixas dos residentes, pessoas idosas, desde sempre moradores naquela zona.
Sempre pensei que o tempo poderia vir a resolver naturalmente a questão.
Eis que surge a novidade.
Não se trata já dos moradores, mas de projectos imobiliários de evidente teor
especulativo. O caso está para além de tudo o que se pudesse temer ou mesmo
imaginar. Um Imóvel de Interesse Público, devidamente classificado, com ZEP
publicada, é literalmente atropelado por um projecto imobiliário. Como foi
possível? Como se licenciou?
Já não pergunto como pôde
alguém propor-se a projectá-lo ou a fazê-lo, porque sabemos bem da desigual
repartição do Bom Senso e Bom Gosto entre o Género Humano.
Como se admite que a
memória histórica de uma cidade se venda assim, por bom preço, note bem, porque
se está a pagar não somente o “loft”, mas a memória histórica, a alma, a
dignidade da capital do país!...
Amargamente, veio-me à
memória um velho (?) tema de Sérgio Godinho: O Charlatão.
“Na
ruela de má fama, faz negócio o charlatão (…) entre a rua e o país vai o passo de um anão (…)
e o trono é do charlatão”…
Estávamos então em
ditadura, agora em democracia, mas parece que o trono voltou a ser do
charlatão.
Quando uma cidade e um
país estão dispostos a vender a sua herança cultural, memória histórica, alma e
dignidade, sendo somente uma questão de preço, algo vai mal.
Pela minha parte,
pergunto-me: o que ando eu aqui a fazer?
Carlos Fabião
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UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
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