“Antes da modernização o país não era um paraíso, mas pelo menos a sua diversidade era reconhecida – não oficialmente, pelo governo, o Governo tolerava-a e as populações, estas comunidades diferentes e coloridas, toleravam-se umas às outras”, resume Dezhamkhooy. Antes do Estado moderno, havia no Irão uma “tolerância” e uma “diversidade” que nos últimos 100 anos foi desaparecendo “até chegarmos à situação actual em que o poder exclui quase todos os cidadãos, até fazer de todos nós não-cidadãos”, acrescentará quase no final da conferência.
Papoli-Yazdi, de 44 anos, viveu os seus primeiros anos em Paris e lembra-se bem de chegar ao Irão e do encontro com “uma impressionante falta de cor”, poucos anos depois da Revolução Islâmica , contou ao PÚBLICO numa conversa a três, depois da conferência. A arqueologia veio através das séries e dos filmes e da “ideia de aventura” que estes evocavam. Dezhamkhooy, 38 anos, recorda a frustração com as aulas de História no Irão, “muito aborrecidas, cinzentas”, até descobrir o seu próprio caminho, através da “arqueologia do passado recente” e política, centrada nas questões de género, colonialismo, nacionalismo – um caminho que haveria de levar ao encontro com Papoli-Yazdi.
“Foi em 2016, quando eu estava a trabalhar em políticas de género e de sexualidade no Irão pré-moderno. A Leila estava na Alemanha a trabalhar sobre mulheres no Irão pré-moderno e as tradições e oportunidades que as ajudavam a empoderarem-se”, recordou. Tendo em conta “a significância e a dificuldade de falar sobre género, sexualidade e direitos das mulheres no nosso país, decidimos incorporar os estudos das duas”.
Aí começou a aventura que levaria à publicação do livro que as trouxe a Lisboa e à edição deste ano do Congresso do grupo CHAT (10 a 12 de Novembro), “Homogeneização, Género e Vida Quotidiana no Irão Pré e Trans-moderno: Uma Leitura Arqueológica” (numa tradução livre), editado em 2021. Antes, tinham embarcado na “loucura” de publicar a versão farsi, no seu país. As dificuldades para encontrar um editor levaram-nas até um senhor que tinha sido mullah (termo usado como título de respeito por figuras religiosas e juristas no Irão). Sim, porque o Irão também é o país do improvável, onde um estudioso da religião pode, um dia, “começar a pensar no conceito de igualdade, depois de ler O Capital”.
“Ser extremamente religioso na sua vida privada não o impediu de publicar o trabalho de feministas radicais”, nota Papoli-Yazdi, com um sorriso. “Ele é muito simpático, e é um editor muito pobre, nem escritório tem, a editora é na casa dele”, acrescentou Dezhamkhooy, já no fim da conversa
“Ele começou uma espécie de guerra para conseguir publicar isto”, conta Dezhamkhooy. Demorou um ano a ultrapassar a censura do Ministério da Cultura e da Orientação Islâmica e houve cortes, de texto, de imagens. “Mas a versão persa lá saiu e foi uma espécie de revolução”, recordou a arqueóloga na conferência. “Recebemos feedback muito positivo, particularmente da comunidade intelectual, dos alunos; os estudantes no Irão são muito abertos e interessados em novas discussões e leituras”, descreve.
Falamos de um livro centrado nas diferenças de género, sexualidade e direitos das mulheres antes e depois do golpe organizado pelo pai do Xá, Reza Khan Pahlavi, com a ajuda da Inglaterra, para derrubar a dinastia qajar , em 1921. E antes, no tal país tolerante, a “sociedade era muito mais diversa em termos sexuais” e “não havia sequer nenhum nome para designar as pessoas em função do seu género ou sexualidade”, destaca Dezhamkhooy. No livro escreve-se sobre bordéis femininos e masculinos, sobre as festas das mulheres e as festas dos homens e sobre um outro país onde tudo se esconde e a existência de homossexualidade ou de pessoas não-binárias é negada.
Para Papoli-Yazdi tudo começou com a pergunta “Por que é que eu sou tão pobre?”, que colocou ao marido, Omran Garazhian, também arqueólogo, e a Dezhamkhooy, obtendo respostas como “por causa do nacionalismo?” ou “não sei, tradição, religião?”. E é entre risos e garantias de que estão a falar a sério que as arqueólogas insistem que foi mesmo essa a pergunta de partida. Papoli-Yazdi sabia que a sua avó não tinha sido tão pobre, numa altura em que as mulheres eram agricultoras, tinham terra, e controlavam os sistemas de água. Ao mesmo tempo, uma sociedade tolerante tinha dado origem a um país fechado. Porquê
Dezhamkhrooy e Papoli-Yazdi pegaram nas suas perguntas e começaram a discuti-las em “conferências caseiras”, na casa de Papoli-Yazdi, com um grupo de estudantes que incluía pessoas não-binárias.
Conferências caseiras, note-se, surgiram por necessidade na vida de Papoli-Yazdi, que ao longo das suas investigações foi experimentando cada vez mais dificuldades para trabalhar no Irão até chegar à fase em que enviou 52 propostas de livros, investigações, cursos, escavações e todas foram rejeitadas ou ignoradas, ao mesmo tempo que era permanentemente interrogada pela polícia (até ir para a Suécia com os Scholars at Risk, rede de instituições que ajuda académicos perseguidos).
O petróleo
A partir de 300 entrevistas a mulheres de três gerações e da consulta de milhares de documentos históricos, as arqueólogas viram como a intervenção externa e o chamado “colonialismo interno” contribuíram para “desmantelar os mecanismos e as oportunidades tradicionais que permitiram às mulheres manterem-se”. Por um lado, as leis de propriedade e herança foram sendo mudadas no sentido de as discriminar, por outro, foram extintos costumes, como o dote e o “ mehriyeh [acordo de casamento], em que os noivos ofereciam um presente às noivas, muitas vezes água, uma fonte de riqueza”, enumera Papoli-Yazdi.
Ao mesmo tempo, nota Dezhamkhooy, “é preciso incorporar a história do petróleo na história da repressão”. Porque “há uma longa história de discriminação que começa no dia em que o petróleo foi descoberto e nós fomos, de alguma forma, colonizados”. No Irão, um dos primeiros países onde foi descoberto petróleo, a sua exploração começou por ser quase monopólio da Empresa Anglo-Persa de Petróleo (britânica).
Antes da modernização, não se encontram provas de “repressão sistemática” ou de “imposição de violência governamental contra as pessoas, particularmente as mulheres” – pelo contrário, “há milhares de documentos da era qajar onde se vêem as mulheres a desempenhar papéis importantes, por exemplo, a liderar protestos”, sem nada que indique que foram presas. “Com a modernização, isso começou a mudar, e foi o governo constitucional [depois da revolução constitucional, ainda na dinastia qajar] a pedir ajuda aos europeus para estabelecer a primeira força de polícia moderna em Teerão”, descreve Dezhamkhooy . Surgem aí os “primeiros sinais de violência sistemática contra a população, mesmo por crimes menores”.
Com o regime Pahlavi , “esse sistema tornou-se muito mais agressivo” e controlador, precisamente por causa da riqueza, da indústria do petróleo e da vontade de impor hábitos estrangeiros vistos como mais civilizados – da roupa às relações sociais (ou sexuais). As associações ou jornais formados pelas mulheres durante a revolução constitucional, por exemplo, foram encerradas e as mulheres começaram a ser presas “por terem tendências socialistas ou conduzirem actividades independentes”. O primeiro Xá criou mesmo “uma espécie de centro de mulheres único para controlar as suas actividades”.
Mapa colorido
Faltava ainda mais uma etapa, a do regime islâmico , que retirou as mulheres do espaço público e impôs regras sobre a forma de vestir e, acima de tudo, uma visão única da religião que usou para estabelecer uma nova lei civil. Enquanto tudo isto acontecia, o Irão ia perdendo as suas cores: “O Irão nunca surge com este mapa colorido”, diz Papoli-Yazdi a apontar para um mapa com todas as etnias, línguas e religiões do país. “Isso é um grande problema que os arqueólogos ajudaram a criar, apagando estas cores para construir uma nação persa, alterando um passado diverso para um passado nacional, baseado no arianismo [os primeiros iranianos, persas, eram conhecidos como arianos, de onde deriva o nome Irão]”, explica. Papoli-Yazdi reforça o que diz chamando a atenção para a roupa que tem vestida, túnica comprida e calças de fundo laranja e com um padrão bordado colorido ao centro. “Fui detida uma vez por estar a usar um fato tradicional, baluche , em Teerão”, conta.
Uma das primeiras medidas dos líderes da nova República Islâmica, em 1979, foi a imposição do hijab (lenço islâmico) obrigatório. Depois, “as mulheres iranianas encontram as suas próprias soluções, organizaram debates em casa, foram para o estrangeiro, e é por isso que estamos aqui”, afirma Papoli-Yazdi. Os grupos minoritários e discriminados também e é por isso que estfha revolução permitiu a Dezhamkhooy descobrir que “as mulheres baluches são muito activas e estão muito organizadas”.
Para Papoli-Yazdi, “o importante neste livro não era só o facto de estarmos a falar de mulheres, etno-nacionalismo ou religião e tradição”, mais importante “é que estávamos a prever o futuro, com base na arqueologia, e o futuro é isto”. Uma revolução desencadeada pelas mulheres e apoiada pelos homens (“é uma das primeiras vezes no país em que os homens estão a ser mortos pelos direitos das mulheres”, diz Papoli-Yazdi), que teve na morte de uma rapariga curda a sua faúlha e que tem sido marcada por grande solidariedade multiétnica.
“Finalmente encontrámo-nos”, afirma Dezhamkhooy. “Penso que o mais importante desta revolução é estarmos a criar um ‘nós’ que não vai desaparecer”, descreve Papoli-Yazdi. “Como arqueológas, do nosso ponto de vista, a revolução social já foi bem-sucedida”, acrescenta. “O que é que vai acontecer ao regime? Não sabemos ainda.”