Barreiras
A cadeira de
rodas é um outro apartheid
As
cidades podem ser um inferno para quem sofre de mobilidade reduzida. Apesar dos
apoios. Apesar dos apelos e das campanhas. A partir de amanhã, há mais milhões
para tirar obstáculos do caminho. Até agora, o que fizemos? Pouco, muito pouco
Por Marisa Soares
"As cidades não estão preparadas para nós." Jorge Falcato, 56 anos,
paraplégico desde os 24, lamenta-se enquanto aponta para locais onde a sua
cadeira de rodas, muitas vezes, não entra. Edifícios públicos, restaurantes,
discotecas, monumentos, transportes públicos, espaços verdes. "Limito a minha
vida aos locais onde tenho a certeza que posso ir." "Não conheço bem a minha
cidade." Que cidade é esta, livre para alguns, acessível para a maioria, uma
prisão para outros que se tornam uma minoria invisível?
Há um exercício
que se pode fazer e que resulta elucidativo: assinalar a negro num mapa todas as
barreiras que encontramos numa cidade, por exemplo Lisboa. Jorge Falcato, que se
move numa cadeira de rodas há 32 anos, já se deu a este trabalho, recorrendo a
autocolantes. O arquitecto garante que se tivesse marcado cada obstáculo com um
ponto negro, o mapa da capital transformar-se-ianuma "enorme mancha negra".
Pessoas com mobilidade reduzida vivem ainda "um regime de apartheid não
decretado e invisível aos olhos do cidadão comum". Pedro Oliveira, a quem a
paralisia cerebral não impediu de ser investigador na área da ciência e
tecnologias de inovação, tem outra crítica: "A acessibilidade ainda não é uma
questão estratégica para o país." Quem sofre na pele as agruras de muitas
pessoas com mobilidade reduzida considera que "devia haver incentivos, tal como
há para a inovação tecnológica". Porque Portugal tem "um dos melhores sistemas
internacionais de legislação sobre a deficiência". Mas a lei não basta.
O
diploma sobre a promoção da acessibilidade, de 2006, é generoso, como acontece
muitas vezes, mas os resultados até agora são, no mínimo, insuficientes. A
legislação previu que em 2017 as cidades portuguesas estariam livres de
barreiras físicas e que os espaços públicos seriam acessíveis a todos, sem
excepção. É o princípio da não-discriminação. "A acessibilidade é uma questão de
direito", sublinha Falcato. O problema é que uma promessa tão antiga poderá não
ser cumprida tão cedo.
"Os privados ainda não perceberam que a
acessibilidade é um bom investimento", até porque as pessoas com mobilidade
reduzida nunca andam sozinhas. No turismo, o país ainda não fez o trabalho de
casa. Segundo um relatório de avaliação de Fevereiro de 2010, dos 13 locais que
Portugal tem classificados como património mundial, apenas dois têm acesso
parcial para cidadãos em cadeira de rodas. Já os oito casinos do país são
completamente acessíveis.
Em Lisboa, a parte antiga e mais turística da
cidade - como o Bairro Alto e Alfama - é inacessível. "É uma pena não
conseguirmos ir ao Castelo de S. Jorge com os nossos clientes", nem ouvir fado,
lamenta Ana Garcia, directora da agência de viagens Accessible Portugal, a
primeira agência vocacionada para viagens e turismo acessível para pessoas com
mobilidade reduzida. "As ruas são estreitas, não há estacionamento, há pinos a
fechar as ruas...", nota. Com o envelhecimento cada vez mais acentuado da
população - o que aumenta o grau de dependência - e a expansão do turismo
senior, vamos querer ficar para trás?
A primeira legislação nesta matéria
é de 1982, mas foi revogada depois de o então primeiro-ministro, Cavaco Silva,
ter adiado a sua entrada em vigor. "Mais de 50 por cento das habitações foram
construídas depois disso. Podíamos ser hoje um dos países mais acessíveis do
mundo", sublinha Falcato, arquitecto de profissão. Mas perdemos a oportunidade.
Porquê? "Os políticos não quiseram abrir os cordões à bolsa."
Pouco foi
feito
"A maior parte das autarquias não tem meios para as obras, nem as
define como prioritárias", assinala por seu lado o arquitecto Pedro Gouveia,
especialista nesta matéria. Ao contrário do que acontece, por exemplo, na
Catalunha, em Espanha, onde dois por cento do orçamento municipal se destina a
eliminar barreiras físicas, tal não está previsto na lei portuguesa das finanças
locais. "Não há um verdadeiro compromisso", vinca Gouveia.
Se nos anos de
1980 era caro tornar um edifício acessível, hoje será muito mais. Por isso,
"reservar um por cento dos orçamentos locais para esses fins seria um bom
começo", propõe Paula Teles, arquitecta e especialista em acessibilidade.
Enquanto tal não acontece, a solução pode estar nos fundos comunitários. A
partir de amanhã, câmaras e associações de municípios podem candidatar-se, até
14 de Setembro, ao programa RAMPA (Regime de Apoio aos Municípios para a
Acessibilidade). Cada projecto pode ser financiado até 300 mil euros, um apoio
que vai desde a planificação até à execução da obra, explica Rui Fiolhais,
gestor do Programa Operacional do Potencial Humano, que financia este apoio aos
projectos que tornem as cidades mais acessíveis a todos.
Em 2008, foram
aprovados 58 projectos, que valiam 9,3 milhões de euros. Destes, 47 foram
apresentados por câmaras municipais. Foram atribuídos 8,3 milhões para a criação
de planos locais de acessibilidade, que têm de estar concluídos até ao final
deste ano, porque depois disso o dinheiro deixa de estar disponível. Até agora,
só foi executado 21 por cento do montante atribuído.
Mas será que os
planos locais vão garantir cidades acessíveis em 2017, como previa a lei? "Não
serão suficientes, se não existir vontade política", frisa João Cotim, o
primeiro provedor municipal e metropolitano dos cidadãos com deficiência, cargo
criado em 2002 pela Câmara do Porto. Esta cidade ainda não tem um plano local de
acessibilidade, tal como Lisboa, onde só em Junho foi constituída a equipa que
vai elaborar o documento. "Os planos poderão contribuir para que em 2017 o saldo
seja mais positivo em termos de acessibilidade", reconhece Lia Ferreira,
arquitecta e adjunta do provedor, paraplégica desde os quatro anos. Porém,
"corremos o risco de, em vários casos, se limitarem ao que são:
planos".
Bons exemplos
Palmela, Portimão e Vila Real de Santo
António são as cidades apontadas por Rui Fiolhais como bons exemplos, na
apresentação do RAMPA, anteontem. Palmela tem já um plano de acessibilidade em
estado avançado; Portimão inaugurou em Junho a Rota Acessível, um percurso de
sete quilómetros pelos principais locais da cidade; e Vila Real de Santo António
tem a brigada "passo a passo" para eliminar barreiras.
As três integram
a Rede Nacional de Cidades e Vilas com Mobilidade para Todos, que conta com 74
municípios. A rede foi lançada pela Associação Portuguesa de Planeadores do
Território em 2003, Ano Europeu de Pessoas Portadoras de Deficiência, e desafiou
os municípios a tornarem uma área central do seu espaço público mais acessível,
de forma faseada. Dez municípios estão ainda a acabar o projecto.
Mas
ainda há muito por fazer, por exemplo, nas universidades. "Quando tirei o curso
[na década de 1980], a acessibilidade estava longe dos planos curriculares",
conta Jorge Falcato. O Plano de Acção para a Integração das Pessoas com
Deficiência e Incapacidades previa a criação até 2009 de um guia de
recomendações para incluir as questões do design universal nos currículos das
universidades e escolas técnicas. Esse plano tinha 99 medidas. Dezanove
continuam por aplicar. Uma delas foi o financiamento de obras em prédios com
espaços comuns para eliminar barreiras. O apoio podia ir até aos 3000 euros por
habitação, mas a medida não saiu do papel.
Não se sabe quantos edifícios
são acessíveis em Lisboa. O Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU)
é responsável por essa avaliação e tem de publicar anualmente um relatório.
Questionado sobre este assunto, o IHRU não respondeu.Jorge Falcato, arquitecto,
56 anos, há 32 numa cadeira de rodas.
Fonte:
http://jornal.publico.pt/noticia/11-07-2010/a-cadeira-de-