MUSEU DO SER-HUMANO
MUSEUM OF THE HUMAN BEING
Tito Augusto, a etnografia na alma
Tito Augusto, ethnography in the soul
by João Azenha da Rocha
Ao chegar a Lodeiro d’Arque, a estrada fragosa que sobe da ribeira dá lugar ao vasto planalto de Barroso, e logo se distinguem os extensos lameiros e as searas entrecortadas de bosques. No velho burgo
de Santa Maria de Salto, com um cesto de vergueiros ao ombro, do cimo de um pequeno escadote, um homem descarregava espigas de milho para um canastro alto de tabuinhas, tipo local de espigueiro criado pela inventiva entreajuda de vizinhos.
Era o Sr. Tito, na cortinha da sua Casa do Muro. A escolha dos termos prudentes e do tempo certo de diálogo resultou, a partir daí, no privilégio de que nos partilhasse a sua visão sábia do
mundo, favorecida pelo lar culto onde se criara, é certo, onde formou no carácter um ideário moral e estético, mas igualmente através do quotidiano participativo nas casas de lavoura de parentes e vizinhos.
As funções ao balcão da loja familiar permitiram captar todos os detalhes referentes à vida da freguesia, num clima vicinal de intensa troca de informações e numa época favorável ao comércio, entre
as duras jornadas dos últimos almocreves e a transitória opulência dos farristas, experiência propiciadora da sua subtil e pujante presença de espírito.
Aos seus ensinamentos, memórias e domínio técnico, transversal a diferentes áreas, em particular dos processos e práticas agro-pastoris, associava um profundo sentir etnográfico. Respondendo
a perguntas acerca do manuseamento de um arado ou de um engenho de rega, à explicação dada eram amiúde associados desenhos e esquemas que ilustravam, com traço elaborado de pormenor, os segredos do seu funcionamento. Sempre com exemplar modéstia, valorizando
a perfeição e o talento dos artesãos da comunidade: “foucinhas, fazia-as o tio Domingos da Fraga…!”.
O material preferido para os seus esboços era um tição de salgueiro, que utilizou no seu sublime desenho “A semeadora a lançar os grãos à terra”. Tinha outras obras em projecto, uma das quais nos desvendou
como sendo a imagem de “uma jovem a bandejar depois de receber a farinha amassada de outra rapariga que a retirara do tendal, entregando-a depois a uma terceira, que segurava a pá e colocava a massa no forno.”
De olhar atento para todos os aspectos da vida material, o seu conhecimento era seguro e detalhado no tema do vestuário: “às vezes, a algibeira com atilhos tinha o mesmo ramo bordado que exibia o saiote”;
“alguns usavam colete de pele de coelho e umas calças de burel sem vincos, com joelheiras, e socos atamancados, que apertavam com cordões ou fivelas”.
O seu interesse pelas actividades culturais era abrangente, sendo activamente dedicado à ideia da criação de um museu na Casa do Capitão que tão bem conhecera em criança, cujos espaços funcionais recordava
e propunha reinterpretar: “no quinteiro juntavam as manadas. Com ordens dos patrões pernoitavam aqui; costume antigo, com interesse no estrume que o gado deixava, depois facilmente levado para os campos”; “os ferreiros ficavam em cima, junto ao tear; o patrão
da casa dizia-lhes, indicando que deviam poupar carvão: faça-me aí duas tachas num fogo. Eram tachas de asa de mosca, usadas nos socos ferrados”.
Os seus conselhos eram programáticos: “devia fazer-se a reprodução de todos os antigos brinquedos das crianças – e explicar qual a melhor madeira para o fabrico de um pião, de uma fisga, do estoirete;
mostrar como se faz uma funda, uma catapulta de pedra; contar como se joga o jogo das pedrinhas, com pedras redondas de volfrâmio, o reino com esferas de rolamentos trazidos das minas da Borralha, e explicar como se faz o arco com argola de vime e gancho
de pau…”.
Através da sua palavra esclarecida, com modos de rigorosa educação, algo grave, mas tão natural que afoitava à conversa de boa disposição, ficamos devedores a este nosso contemporâneo pelo exemplo
notável da sua distinta humanidade.
MUSEU DO SER-HUMANO
MUSEUM OF THE HUMAN BEING
Coord. Pedro Manuel-Cardoso
Advisory Board/Conselho Consultivo: Elísio Summavielle, Kevin Shirley, João Azenha da Rocha
factory of the Unpronounceable |
Gatão, Amarante, Portugal
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MUSEUM OF THE HUMAN BEING Tito Augusto ethnography in the soul by João Azenha da Rocha 29may2023.pdf
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