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Re: [Archport] A morte do Prof. Castro Nunes

To :   José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] A morte do Prof. Castro Nunes
From :   CARLOS FABIÃO <cfabiao@campus.ul.pt>
Date :   Mon, 20 Jun 2016 02:52:47 +0100

João de Castro Nunes deixou-nos.


Como muitos saberão, Castro Nunes foi / é aquele a quem desde há muito chamei e chamo Mestre. Não no habitual sentido da palavra, gasto, usado e abusado nos dias que correm, mas no sentido oriental da expressão, de alguém que me marcou profundamente como homem, como investigador, como professor. De João de Castro Nunes poderia dizer somente que foi um extraordinário ser humano que tive o privilégio de conhecer e com quem tive a honra de conviver, até porque não poderei transmitir por palavras tudo aquilo que generosamente me deu. Mas creio que importa dizer mais e por isso o direi.


João de Castro Nunes foi meu Professor (assim mesmo, com maiúscula) na minha Licenciatura em História, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Frequentei as suas aulas de Sociedades, Culturas e Civilizações Clássicas, Arqueologia, Arqueologia Pré-Histórica e Arqueologia Clássica e Medieval, durante a Licenciatura, e foi o meu orientador na prova de Capacidade Científica (As ânforas do acampamento romano da Lomba do Canho, Arganil).


Do Professor, deixo aqui dois ou três apontamentos que muito me marcaram: dizia constantemente que aquilo que pretendia era transmitir vivências, não propriamente informação ou conhecimento. Dizia que havia dois tipos de discentes, os bons alunos, que lêem toda a bibliografia que o professor indica, e os bons estudantes, que escolhem aquilo que lhes parece mais interessante e buscam para lá do que o professor indicou, naturalmente, sempre preferiu os segundos. As suas aulas eram muito pouco convencionais, um espaço de explanação das suas vivências, embalado pela sua vasta erudição e conhecimento, desde a escala da grande síntese à microanálise etnoarqueológica. Gostava de ouvir e sabia ouvir, gostava que pensássemos com ele e não necessariamente como ele. Pertencia a essa estirpae antiga (hoje quase desaparecida) que gostava de prolongar o seu magistério em informais encontros à mesa do café, frequentemente mais longos do que o próprio tempo de aula.


O seu magistério corria um pouco à margem dos grandes debates da época. Na Academia da minha formação, havia as correntes dominantes do Materialismo Histórico, de vários tons e sons, a que muitos chamavam Marxismo, embora com muito pouco de Marx; e a irrupção da Escola dos Annales, própria da formação francófona, frequentemente de exílio, de muitos dos professores existentes. Castro Nunes estava à parte. Evocando uma célebre ilustração do livro de Marrou (Do Conhecimento Histórico), que todos lemos à época, Castro Nunes estava do lado superior esquerdo, onde o autor colocava Nietzsche, era esse o flanco intelectual que habitava e naturalmente repercutia nas suas aulas. Juntava-se-lhe uma forte componente neo-Humanista e empirista. Era brilhantemente intuitivo, mais do que analítico. Creio que hoje em dia, o seu magistério seria muito mais apreciado e celebrado, do que naqueles tempos em que os ventos sopravam fortes em outras direcções, particularmente no mundo da Arqueologia, onde o novo paradigma dominante era aquilo a que hoje chamamos processualismo. De qualquer modo, imprimia uma vivíssima impressão em alguns dos seus alunos, que se prolongava muito para lá das salas de aula, nesses momentos se afirmava a aludida característica de saber ouvir e de gostar de pensar em grupo.


Como leccionava na FCSH, da Universidade Nova de Lisboa, e simultaneamente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, gostava de juntar em grupos de estudo, reflexão e debate informal estudantes de ambas escolas. Assim passei a frequentar as salas do Departamento de Estudos Clássicos e do Instituto de Arqueologia da FLUL onde hoje trabalho. Foi no âmbito desses grupos que conheci o Amílcar Guerra, o Arnaldo Espírito Santo, o saudoso Victor Jabouille, o João Senna-Martinez, o António Dias Diogo, entre outros. Era também exímio na construção destas pontes interinstitucionais e na capacidade de agregação de pessoas de diversificadas formações e trajectos.


Como investigador, João de Castro Nunes não deixou publicada uma obra à dimensão da sua grandeza intelectual. A não integração em instituição académica depois do Doutoramento forçou-o a um enriquecedor, mas complexo, périplo por diferentes Universidades espanholas, como Leitor de Língua Portuguesa até se fixar como docente do Ensino Secundário, em Portugal, só alcançando a Universidade, mais tarde, em Angola, de onde regressou após a independência da ex-colónia portuguesa. O grosso da sua obra foi publicado na década de 50 e inícios de 60 do século XX, em pequenos artigos extremamente elegantes e de um rigor ático: “nem uma palavra a mais, nem uma palavra a menos”, como tantas vezes dizia, frase que tenho sempre presente quanto tento (sem êxito) seguir o Mestre. Mas esses pequenos artigos são, de facto, peças marcantes e de temática muito diversa, desde a epigrafia, Os miliários de Nerva (1950), por exemplo; indústrias macrolíticas do noroeste (1955-56); os temas da Idade do Bronze, com especial referência ao estudo da estela de Meimão (1960), que deixou incompleto, tendo-me mostrado várias imagens e texto da segunda parte do trabalho, nunca publicada; as fíbulas de tipo Nauheim (1959); a arte rupestre de Góis, Pedra Letreira (1959) e Pedra Riscada (1974); o megalitismo do curso inferior do Alva (1974), que apresenta a escavação do monumento dos Moinhos de Vento, Lomba do Canho, Arganil, onde, na década de 50, realizou uma intervenção de escavação e estudo de todo o monumento e não somente da câmara e corredor, como era então norma. Não vale a pena enumerar a obra, que pode ser rastreada nos volumes da Bibliografia Arqueológica Portuguesa, de Pires de Oliveira. Refira-se, contudo, para além da obra conhecida, publicada em revistas de Arqueologia, em Espanha e Portugal, essa outra quase esquecida dada à estampa em periódicos regionais (“Arquivo Histórico de Góis”) ou mesmo na imprensa generalista (penso, por exemplo, na notícia sobre o tesouro de denários da época de Augusto, da Moura da Serra, Oliveira do Hospital, cuja única publicação se encontra nas páginas do jornal regional “A Comarca de Arganil” (1959), para onde escrevia com alguma regularidade). Alguns dos seus estudos foram publicados em brochuras autónomas, nem sempre fáceis de encontrar ou conhecer. Pequenos trabalhos, digo, mas extremamente ricos, de tal modo que, creio, podem ainda hoje ser lidos com todo o proveito, pelo rigor da informação transmitida e pelas belíssimas intuições constantemente presentes. Infelizmente, nos tempos que correm, com a investigação a cingir-se por norma ao publicado na última década, presumo que Castro Nunes não seja muito lido. Mas sei que os seus trabalhos permanecerão como pequenas pérolas que ao longo dos anos novos estudiosos irão redescobrindo e valorizando.


Comecei a trabalhar no campo com João de Castro Nunes em 1978, justamente em Arganil. No que respeita à prática arqueológica retive dois ensinamentos maiores: a utilidade de trabalhar de uma forma continuada os sítios arqueológicos, em vez de praticar pequenas intervenções em vários locais e, na esteira da lição de Estácio da Veiga, em privilegiar a instalação local de unidades museológicas e centros interpretativos nas regiões onde se localizam os sítios arqueológicos, para que se não perca a relação entre os sítios e os seus espólios móveis. Castro Nunes praticou-o desde os tempos em que tal perspectiva não era habitual e, pode dizer-se, foi de algum modo um marco a instalação, em 1980, do Museu Regional de Arqueologia, em Arganil. A salutar multiplicação de unidades museológicas e centros de interpretação de escala local e regional que hoje em dia se verifica demonstra bem o acerto da perspectiva do Mestre.


No volume que publicou sobre a Pedra Letreira, de Góis, escolheu como epígrafe uma bela frase de Maurice Barrès, de que muito gostava e que, no seu entender, constituía a melhor explicação para a escolha de certos lugares do Sagrado: Il est des lieux où souffle l’esprit. Há mais de uma dúzia de anos atrás, no Serro de S. Miguel da Mota, Alandroal, com o Amílcar Guerra, comentando o sítio e a sua localização, saltou-nos espontaneamente a frase tantas vezes ouvida ao Mestre: Il est des lieux où souffle l’esprit… Com toda a sinceridade, é a resposta que me parece mais adequada para a pergunta constantemente feita da razão por que se escolheu aquele Serro em particular para instalar um Santuário.


Partiu João de Castro Nunes. Imagino que, sem antes soltar aquele ligeiro pigarro com que discretamente anunciava a sua chegada. Que descanse em paz, meu inesquecível Mestre.



 

Carlos Fabião     


No dia 19 de junho de 2016 às 00:46, José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt> escreveu:

         Acabo de saber por mensagem de seu filho, que ora mesmo divulguei na archport, que faleceu o Prof. João de Castro Nunes.

         A seu filho, Manuel, e demais família, apresento os mais sentidos pêsames.

         Personalidade forte, do género dos portugueses de «antes quebrar que torcer», o Doutor Castro Nunes não hesitava em dizer o que lhe parecia correcto, não temendo enfrentar polémicas.

         Formado na Faculdade de Letras de Coimbra, foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no âmbito dos Estudos Clássicos, mas cedo começou a dedicar-se à Arqueologia. Natural de Arganil, teve no acampamento romano da Lomba do Canho um dos seus primeiros e mais importantes trabalhos, que abriu novas perspectivas à história dos primórdios da vinda dos Romanos para a Lusitânia.

         Também a Epigrafia o interessou e «Inscrições latinas inéditas do conventus Bracaraugustanus», publicado em Santiago de Compostela em 1948, deve ter sido um dos seus primeiros artigos nesse domínio, a que outros se seguiram: os miliários de Nerva na Gallaecia (1950), «Pugius, um erro de leitura epigráfica» (1954)… Fez também incursões no âmbito da Pré-História e da Idade do Bronze e teve papel preponderante na organização, de 4 a 8 de Novembro de 1980, do III Colóquio Internacional sobre Línguas e Culturas Páleo-Hispânicas, em Lisboa (Fundação Calouste Gulbenkian), que terminou com uma inesquecível jornada precisamente em Arganil com visita à Lomba do Canho e memorável recepção por parte das entidades locais.

Acrescentarei que não se coibia, amiúde, de – com elevado espírito crítico e sempre pleno de ironia – comentar com uma quadra notícia que, veiculada pela archport ou por qualquer outra das listas, particularmente lhe caísse no goto. Exemplifico, em sua memória:

- A 4 de Outubro de 2014, a propósito do Destaque do mês "180 anos da morte D. Pedro IV - Palácio de Queluz", escreveu:

                      D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil

                        Foi no Real Palácio de Queluz

                        que sob o signo da fatalidade

                        a sua infausta mãe o deu à luz

                        para instaurar na pátria a liberdade.

- Antes, a 13 de setembro de 2014, a propósito do convite para a apresentação do Foral de Aldeia Galega:

Se acaso lá não me virem,

por motivo é de saúde:

longe estou da juventude

para comigo... insistirem!

- Sobre uma reunião científica em que o tema era a Turdetânia, não hesitou em dar a sua opinião (07-11-2014):

Mas que raio de projecto

que coisa alguma adianta:

marcando passo, em concreto

poeira apenas levanta!

 

Que descanse, pois, em paz quem sempre foi um estrénuo lutador!

 

                                                                  J. d’E.

 


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