Quase cinco anos após o seu anúncio, foi extinto hoje o Instituto
Português de Arqueologia. Logo em 2002, eu (e uma parte considerável dos
arqueólogos do IPA) considerei esta medida como um erro, de consequências
necessariamente nefastas para a Arqueologia portuguesa. Por isso, hoje,
considero um imperativo de consciência divulgar junto dos meus colegas a minha
opinião sobre a reestruturação em curso. Ao longo destes anos, muitos
argumentos contra a extinção foram sustentados, quer relativamente aos
benefícios de uma gestão autónoma só por si, quer relativamente ao avanço que
o modelo institucional e funcional proposto e desenvolvido pelo IPA tinha
trazido para a realidade arqueológica nacional. De uma maneira ou de outra, os
argumentos não colherem efeito positivo e, com a implementação do PRACE
(Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado), lá foi
decretada a fusão entre o IPA, o IPPAR e a DGEMN.
No que à Arqueologia diz respeito, o processo de
reorganização orgânica começou muito, muito mal, com a publicação da Lei
Orgânica do Ministério da Cultura (Outubro de 2006). Num ápice, a gestão
arqueológica desapareceu das
atribuições e competências da Tutela, do próprio organismo resultante da fusão
- o IGESPAR ? e também das Direcções Regionais da Cultura. Apenas o património
classificado merecia referência. Terá sido um lapso, mas, bolas, os lapsos
caem sempre para o mesmo lado! E também não deixa de ser estranho que após
tantos protestos, críticas, moções, cartas abertas, etc, sobre os problemas da
Arqueologia num contexto de fusão orgânica, não tenha havido o cuidado de
colocar uma única alínea sobre a gestão arqueológica, que é uma função do
Estado, consagrada na Lei de Bases do Património Cultural!
Por fim, saem as leis orgânicas do IGESPAR e das
DRC?s seguidas das portarias regulamentares. Do meu ponto de vista, e
analisando apenas a letra da lei (porque relativamente à sua aplicação, logo
se verá), podem tirar-se algumas conclusões. Em primeiro lugar regista-se como
ponto positivo que este Governo optou por um modelo de gestão do Património
muito claro: acabou-se (finalmente) a bicefalia do património classificado
(património cultural/obras públicas), fixou-se na Cultura a tutela do
Património Cultural, escolheu-se um modelo de gestão com dois níveis distintos
(o central - normativo e regulador - e o regional, executivo e interventor).
Outro aspecto positivo é revelado pela orgânica do IGESPAR que manifesta
tendencialmente a opção por uma gestão orgânica integrada, sem separação
?disciplinar? (património arquitectónico, arqueologia, história de arte, etc).
Verifica-se também algum cuidado em garantir equidade e paridade orgânica
entre as diferentes áreas funcionais. Pela primeira vez, a Arqueologia
alcança, ao nível da estrutura orgânica, um presença equilibrada em relação ao
organismo na sua globalidade.
Também registo alguns pontos claramente
negativos. Apesar do esforço que se denota, ainda, na letra da lei, se
verifica com alguma frequência um enfoque excessivo relativamente ao
património classificado (esquecendo-se o património arqueológico não
classificado). Infelizmente, e de forma até um pouco incompreensível num
processo tão demorado e de alguma forma tão escrutinado, verificam-se
frequentes sobreposições de competências (eliminar estas sobreposições era um
dos objectivos do PRACE). Por exemplo no que respeita à importante actividade
de salvaguarda de monumentos classificados e respectivas áreas de protecção,
verifica-se que é competência do IGESPAR e das DRC?s em articulação. A
emissão de pareceres em processos de AIA é competências de diversas unidades
orgânicas do IGESPAR e também das DRC?s, em articulação. O inventário
do património é função (se não estou em erro) de todas as unidade orgânicas do
IGESPAR e também das DRC?S, em articulação, apesar de existir um
departamento e um divisão com essa função específica que também terá que se
articular com inventários aparentemente externos a estes organismos
(!?). Parece-me articulação a mais, principalmente quando não é perceptível a
presença de instrumentos de gestão orgânica transversal! Eventualmente,
funcionarão a nível do gabinete ministerial, já que estes organismos despacham
directamente com a tutela, e não entre si.
No que se refere à área orgânica da Arqueologia,
em grande parte herdeira das competências e funções do IPA, verifica-se uma
formulação bastante alargada de tarefas específicas da gestão arqueológica,
colmatando a lacuna gritante da Lei Orgânica do MC. Outra característica
claramente positiva deste modelo é a manutenção das Extensões Regionais de
Arqueologia (cuja presença se intui) funcionando em articulação com o
acompanhamento dos processos de Avaliação de Impacte Ambiental (vertente
arqueológica), numa única Divisão (DAPA). Uma melhor coordenação entre estes
importantes níveis de intervenção (ET?s e AIA?s) era uma necessidade já
sentida no IPA e que poderá desta forma ter desenvolvimentos
positivos.
Outra grande preocupação da comunidade
arqueológica foi aplacada com estas leis: está garantida a continuidade e
autonomia da Biblioteca de Arqueologia do IPA (o mais importante fundo
bibliográfico da arqueologia nacional) em parte legada pelo Instituto
Arqueológico Alemão.
Em contraponto, não é nada claro o futuro da
Arquivo Histórico da Arqueologia Portuguesa (em permanente construção) e menos
ainda se poderá dizer da minha antiga aspiração de o ver transformado num
arquivo público, verdadeiro centro de documentação e informação aberto a todos
arqueólogos.
Outro aspecto que me parece de relevar é, em
continuidade aliás com o que se passava no IPA, um destaque muito forte à
Arqueologia Preventiva, que neste momento constitui seguramente mais de 90% da
arqueologia praticada em Portugal (para o bem e para o mal...). O que é
estranho é que este destaque não é acompanhado de uma referência clara e
inequívoca à existência, especificidade e autonomia técnica da Carta
Arqueológica de Portugal, materializada no sistema Endovélico. Aliás, é
notável a ausência de qualquer referência ao Endovélico, nas
atribuições do Departamento de Inventário, Estudos e Divulgação do IGESPAR,
apesar de serem referidos explicitamente o ?inventário geral do património
cultural?, o ?sistema de informação para o património? e o ?sistema de
informação relativo às bases de dados georeferenciadas do património cultural
arquitectónico e arqueológico?, figuras que certamente merecerão alguma
clarificação futura. Este aspecto é muitíssimo preocupante, pois não creio ser
aceitável desperdiçar o investimento de décadas de arqueólogos que tem
colaborado na construção deste Endovélico que começa agora a
aproximar-se da forma desejada. Também não será aceitável que Portugal seja o
único país civilizado a não possuir um sistema de informação arqueológica
georeferenciado, autónomo e específico, independentemente da
inter-operacionalidade que se possa estabelecer com outros sistemas de
informação de património.
Também da área específica da Arqueologia, como
na salvaguarda, se verificam sérias sobreposições de competências entre o
IGESPAR e as DRC?s. Depois de tanta crítica aos conflitos entre o IPPAR e o
IPA, temos aqui campo fértil para longos e picantes processos problemáticos.
Portanto, ou as pessoas mudam todas muito, ou a Lei é corrigida, ou a situação
vai piorar...
Eventualmente, o ponto mais negativo neste
enquadramento legal, no que à arqueologia diz respeito, seja o enquadramento
destinado ao CIPA. Sinceramente, não me parece que juntar numa Divisão
?culturas? de trabalho tão distintas como as de um centro de investigação de
ponta e de craveira mundial e as
de um centro mais vocacionado para a divulgação e sensibilização patrimonial,
seja uma boa ideia. Temo muito sinceramente pelo futuro do CIPA tal como todos
o sonhámos. Tenho esperança que no contexto do IGESPAR e fora dele possam
continuar a ser exploradas novas e melhores soluções. E sobre as colecções de
referência, nem uma palavra... Sobre a colaboração em projectos de
investigação arqueológica nacionais
(PNTA) ou internacionais, também nada se diz...
Tratamento idêntico teve a linha editorial do
IPA. Todos esperamos que a Revista Portuguesa de Arqueologia e ao série
monográfica Trabalhos de Arqueologia, não sejam já vestígios do
passado. Todos os arqueólogos em Portugal sabem como estas edições são
imprescindíveis e como, nestes últimos anos, elas mudaram o panorama editorial
da arqueologia nacional. Assim, espera-se que a omissão, não signifique
extinção.
Como esta contribuição já vai longa vou ficar
por aqui, embora não se tenham esgotado todas as minhas interrogações e
preocupações. Quando a história da arqueologia se debruçar sobre 10 anos
passados, os anos do IPA, terá seguramente que distinguir 5 anos de construção
e 5 anos de degradação (só não foi pior porque o projecto era forte!). Como em
todas as generalizações poderá haver aqui uma pitada de injustiça, mas não
muita. Perdoem o desabafo, mas nestes últimos tempos tenho-me sentido um pouco
como a ?Teresa Baptista?, cansada de guerra. É por isso tempo de passar
construção e eu como arqueóloga-funcionária pública que sou por vocação e que
me orgulho de ser, cá estarei com todos vós para participar neste processo.
Olho o futuro com esperança, em primeiro lugar, por feitio e em segundo lugar,
por depositar confiança no futuro responsável da arqueologia nacional. Não lhe
atribuo qualquer responsabilidade nos pontos negativos que encontrei nesta
minha análise. A ele e à sua tenacidade se devem seguramente todos os pontos
positivos. A quem teve a paciência para chegar ao fim deste longo texto, muito
obrigada.
Jacinta Bugalhão
1 de Abril de
2007