Público. 16.01.2008, Carlos Dias
Trabalhos de requalificação e valorização patrimonial iniciados há três anos foram suspensos por falta de verbas e autarquia não está disposta a assumir mais encargos com musealização
A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Anunciação, em Mértola, foi algo de uma intervenção arqueológica que revelou importantes vestígios da antiga mesquita islâmica que antecedeu o actual monumento. Mas a falta de verbas interrompeu os trabalhos.
O ex-Instituto Português do Património Arqueológico (Ippar) aprovou, em 2004, uma sondagem arqueológica para avaliar uma eventual cedência na base de suporte da estrutura da igreja e para resolver o problema da humidade que afectada o seu interior. A intervenção realizada pelo Campo Arqueológico de Mértola (CAM), a pedido do Ippar, levou à abertura de valas de sondagem - até três metros de profundidade e numa extensão de dez metros - junto a uma das paredes laterais do templo, no exterior e dentro do monumento.
O presidente do CAM, Cláudio Torres, disse que as sondagens não revelaram qualquer problema na estrutura, mas permitiram encontrar "vestígios arqueológicos importantes" que levaram a concluir estar a antiga mesquita assente num "monumental embasamento" de uma igreja do período paleocristão datado dos séculos VI a VIII.
O departamento histórico e artístico da diocese de Beja ter-se-á oposto aos trabalhos, pela sua dimensão, posição que não foi seguida pelo pároco local - entretanto substituído - que autorizou as sondagens. As escavações foram iniciadas em 2004, com a recuperação do telhado da mesquita. Seguiu-se a escavação, trabalho que não teve continuidade, o mesmo acontecendo com as sondagens que estavam a decorrer no castelo de Mértola e área envolvente, por alegada "falta de recursos financeiros", explicou Jorge Pulido Valente, presidente da Câmara de Mértola.
Trampolim para assaltos
O autarca alertou o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), que sucedeu ao Ippar, para os riscos que as valas abertas podem representar para o edifício, classificado como monumento nacional em 1910, e para a segurança das pessoas, dado o acesso livre ao local das escavações. Pulido Valente reclama, além das valas tapadas, a recuperação da porta da mesquita e outras partes do edifício, para obstar à sua degradação.
Cláudio Torres receia pela segurança da igreja, se não for encontrada uma solução. O arqueólogo propõe, em alternativa ao enchimento das valas, a musealização dos testemunhos descobertos. Pulido Valente responde que a câmara "não está disposta a concretizar" esse projecto, só viável através de apoio financeiro externo, recordando os encargos já suportados pelo município na rede de museus abertos na vila.
José António Falcão, do departamento histórico da diocese de Beja, também reclama uma solução para as valas abertas fora da igreja matriz. Os andaimes utilizados na reparação do telhado da igreja, ainda montados, serviram de trampolim "aos gatunos para roubar por duas vezes a caixa das esmolas". Os assaltantes "treparam pelo andaimes, foram até à torre sineira e por ali entraram na mesquita". O responsável alega que não faz sentido, "do ponto de vista religioso", manter aberta ao culto a igreja matriz. É frequente os visitantes do monumento esperarem à porta enquanto decorre a celebração. Na direcção do Igespar e na direcção regional da Cultura do Alentejo ninguém se mostrou disponível para comentar o assunto.
Arqueólogo defende abertura ao culto muçulmano
A mesquita de Mértola é o único exemplar de arquitectura religiosa islâmica que prevalece em território. Admite-se que remonte ao século XII. A datação foi realizada a partir de comparações feitas com a mesquita de Tinmel, em Marrocos. Por outro lado, a decoração vegetalista dos estuques apresenta paralelos com a de outros monumentos da mesma época, construídos naquele país magrebino, o que possibilitou aos investigadores datar com alguma segurança a época de construção deste local de culto.
É cada vez maior o número de naturais do Norte de África, sobretudo magrebinos, que se deslocam até Mértola para visitar a mesquita e orar no páteo fronteiro virados para Meca. O arqueólogo Cláudio Torres recorda que o anterior bispo de Beja, José Falcão, assistiu a um serviço religioso muçulmano no exterior da antiga mesquita, o que, do seu ponto de vista, justifica naquele local um reordenamento do culto que deveria ser extensivo à religião muçulmana.
Do seu passado permanecem inalteradas quatro portas de estilo árabe e o mirhab (orifício na parede, que indica a direcção de Meca), peça única da arte islâmica em Portugal que permaneceu durante muito tempo escondido sob uma camada de reboco, até que foi posto a descoberto em meados do século XX. O imóvel resistiu ao período da Reconquista e da Contra-Reforma, tendo chegado aos nossos dias em razoável estado de conservação. A actual configuração arquitectónica data do século XVI, altura em que grandes campanhas de obras lhe deram o aspecto que ainda conserva, com fachada manuelina-mudejar e portal renascentista. Possui cerca de 300 metros quadrados de área coberta.