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[Archport] rabiscos e tacanhices

To :   Archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] rabiscos e tacanhices
Date :   Fri, 11 Jul 2008 20:07:58 +0100


Olá a todos os archportianos!
Sendo um arqueólogo a trabalhar no vale do Côa desde 2005, deixo aqui a minha contribuição para a discussão.

Dos artigos de opinião de Miguel Sousa Tavares (MST) e Helena Matos (HM), surgem algumas questões fulcrais para a discussão do tema. Em primeiro lugar, a contraposição entre a barragem do Sabor e a barragem do Côa, com a afirmação de que a primeira apenas surge como contrapartida da não construção da segunda; em segundo lugar, o mais que estafado tema da autenticidade paleolítica das gravuras; em terceiro e último, uma questão essencial, que é se valeu ou não a pena a decisão de 1995, e se o Côa, o Parque e as gravuras corresponderam à expectativas criadas, tanto do ponto de vista económico como científico. É indubitável que há uma corrente de opinião que acha que a barragem do Sabor apenas surge porque não se construiu a do Côa, mas tal não é verdade. O projecto da barragem do Sabor, tal como o do Côa, integra o plano nacional de barragens há muito tempo, e a ideia de levar a cabo o empreendimento surge em força no ano de 1994, estando a barragem do Côa em plena construção e antes do desencadear da polémica, tendo o ano de 2005 como horizonte para a construção. O caso do Côa altera efectivamente os dados da questão, mas o resultado efectivo é o atrasar da construção. Ou seja, sem a polémica, o mais provável é que a barragem do Sabor já estivesse construída ou em construção por esta altura, conjuntamente com a barragem do Côa e todas as restantes barragens previstas em cascata para o Côa e Cova da Beira abaixo até ao Tejo, uma vez que a barragem do Côa era uma peça fulcral do plano de transvazes de água da bacia do Douro para as bacias do Tejo e Guadiana, como foi na altura discutido (na minha opinião, um plano economicamente desastroso e uma atrocidade ambiental, em boa hora colocado na gaveta, onde esperamos que se perca para todo o sempre). Pensávamos que a questão da cronologia das gravuras do Côa já estava mais do que ultrapassada, a partir do momento em que a escavação no sítio do Fariseu provou cientificamente a cronologia paleolítica das gravuras da Rocha 1 do Fariseu (e inerentemente, a mesma cronologia para todas as outras rochas no Côa com motivos similares; literatura sobre este e outros assuntos pode ser encontrada e livremente descarregada no site do PAVC). Presumimos que MST não se deu ao trabalho de pesquisar o tema, uma vez que conhece a opinião da "maior autoridade mundial na matéria", a qual decretou em 1995 que todas as gravuras conhecidas no Côa eram recentes. Embora MST não refira o seu nome, supomos que se esteja a referir a Robert Bednarik, um dos especialistas em datação directa de gravuras contratados pela EDP. Não sabemos se este se considera a si próprio como a maior autoridade mundial em arte rupestre, mas parece-nos que o seu clube de admiradores se poderá talvez resumir a MST, pois seguramente que a comunidade arqueológica mundial em geral não o considera e nunca considerou como tal, e muito menos depois do desastre ético e científico que foi a sua participação na polémica do Côa. Para quem não conheça o tema, recomendamos vivamente a leitura da refutação feita por João Zilhão das datações apresentadas por Bednarik e Watchman (Zilhão, J. (1995), disponível em http://www.ipa.min-cultura.pt/coa/). A cronologia paleolítica de grande parte das gravuras do Côa é um dado adquirido (é como o debate sobre a teoria da evolução dentro dos meios científicos: discute-se os detalhes, acerbamente se necessário, não se questiona a evidência). Era evidente em 1995, face às numerosas imagens vindas a público, e para quem conhecesse um pouco da arte paleolítica europeia (o estudo da qual, recorde-se, se desenvolve com grande intensidade desde há mais de 100 anos, sendo indubitavelmente um dos grandes temas da arqueologia europeia) que aqueles inúmeros motivos estilisticamente paleolíticos só podiam ser ... paleolíticos (afirmar convictamente o contrário é um pouco como tentar convencer os especialistas em arte e arquitectura medieval que o Mosteiro da Batalha não passa de uma reles falsificação neo-gótica)! Se MST acha que a sua opinião vale mais que a da UNESCO e da quase totalidade da comunidade arqueológica nacional e internacional, sobrepondo-se à prova científica existente, pois está à vontade, afinal de contas o disparate e o ridículo são livres e não pagam imposto. Façamos por fim um pequeno balanço da actividade do Parque. Afirmam MST e HM que as hordas de turistas não apareceram, ao contrário do prometido. No entanto, todos os anos o Parque e as gravuras tem tido vários milhares de visitantes, com um máximo de 20.000 nos primeiros tempos e um mínimo de 14.000, estando actualmente nos 16.000. É bem verdade que estamos muito longe dos 100 ou 200 mil visitantes anuais que alguém em má hora lançou a público, num exagerado arroubo de entusiasmo. Comparando, no ano de 2006 o museu mais visitado em Portugal foi o Museu do Coches, com 195.690 entradas, seguido de Conímbriga com 110.355 e do Museu Nacional de Arqueologia com 109.312. Tendo em conta que estamos numa região deprimida do interior, com maus acessos e falta de investimentos, até nem parece tão mau quanto isso. Mas, pessoalmente, considero que o Côa pode e tem condições para receber bastantes mais visitantes que os que tem actualmente. Tudo indica que o futuro museu (cuja construção está quase pronta) terá capacidade para receber um fluxo extra de visitantes que os núcleos de gravuras actualmente abertos a visitas manifestamente não tem, particularmente tendo em conta os parcos meios disponíveis. Quanto ao que a região ganha com isso, podemos colocar a seguinte questão: se a barragem tivesse ido adiante, já estaria terminada há muito tempo, e a dinâmica económica da construção igualmente terminada. Que visitantes ocorreriam então, trazidos pela barragem? Não sendo esta, ao contrario do Alqueva, uma barragem construída a pensar no turismo, é de presumir que teria um nível de visitantes semelhante ao da maioria das barragens deste pais, ou seja, quase nulo. Finalmente, uma outra questão se coloca, e que é saber em que medida o Côa respondeu às expectativas científicas levantadas na altura da polémica. De facto, quando o Côa se revela, aquilo que na altura se descobriu parecia indicar que muito mais estaria por descobrir, e parte do entusiasmo científico da altura jaz nesta expectativa. Será que, após estes anos de investigação no Côa, essa esperança foi correspondida? Alguns números podem ajudar a responder. O Côa é revelado ao público essencialmente com alguma das gravuras do sítio da Canada do Inferno, mas já na altura outros sítios eram conhecidos. Em finais de 1995, já com a construção suspensa, estão inventariadas 137 rochas em 23 sítios diferentes, das quais a imensa maioria tinha motivos paleolíticos, mas já se conhecendo uma apreciável quantidade de rochas e motivos das outras três grandes fases da Arte do Côa, a Pré-História Recente, a Idade do Ferro e a Época Moderna/Contemporânea. Em finais de 1997, concluído o relatório que serviu de fundamentação à decisão final de suspender a barragem, e também de base à UNESCO para a classificação do Côa como Património Mundial, este número tinha aumentado para 199 rochas em 26 sítios, mantendo-se os motivos paleolíticos em vastíssima maioria. A partir dai, a investigação prosseguiu, até hoje, e todos os anos, sem excepção, se descobriram novas rochas e novos sitos, com um incremento notável nos últimos anos (de tal maneira que um balanço da situação que foi apresentado numa conferência em Salamanca em meados de 2006, e ainda não publicado por razões que nos são alheias, se encontra já totalmente desactualizado). Neste momento, temos inventariadas cerca de 880 rochas em 47 sítios, e este registo deverá rapidamente ficar desactualizado (estritamente falando, nem todas são rochas propriamente ditas, existem alguns casos de pedras soltas com gravuras, mas contam-se pelos dedos das mãos ; por outro lado, note-se que este número não inclui as 60 ou 70 placas gravadas encontradas na escavação do sítio paleolítico do Fariseu). De todas estas rochas, um pouco menos de metade tem motivos paleolíticos, mantendo-se as gravuras deste período em grande maioria face às restantes, ainda que a diferença seja bem menos acentuada do que no princípio, particularmente no que toca à Idade do Ferro, que já supera as 300 rochas. Uma vez que a Arte do Côa não se estende indefinidamente, tendo limites que já conhecemos razoavelmente, e face à realidade e à distribuição conhecida no terreno, podemos tentar fazer uma estimativa do que poderá haver ainda por descobrir, com os evidentes riscos dessa tentativa poder vir a revelar-se longe da verdade. Assim, pessoalmente, arriscaria conservadoramente que ainda poderá haver umas 300 rochas por descobrir, mais coisa menos coisa, e incluindo nesta estimativa as rochas que estão presentemente submersas e inacessíveis debaixo das águas da albufeira da barragem do Pocinho.

Mário Reis






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