[Archport] rabiscos e tacanhices
Olá a todos os archportianos!
Sendo um arqueólogo a trabalhar no vale do Côa desde 2005, deixo aqui
a minha contribuição para a discussão.
Dos artigos de opinião de Miguel Sousa Tavares (MST) e Helena Matos
(HM), surgem algumas questões fulcrais para a discussão do tema. Em
primeiro lugar, a contraposição entre a barragem do Sabor e a barragem
do Côa, com a afirmação de que a primeira apenas surge como
contrapartida da não construção da segunda; em segundo lugar, o mais
que estafado tema da autenticidade paleolítica das gravuras; em
terceiro e último, uma questão essencial, que é se valeu ou não a pena
a decisão de 1995, e se o Côa, o Parque e as gravuras corresponderam à
expectativas criadas, tanto do ponto de vista económico como científico.
É indubitável que há uma corrente de opinião que acha que a barragem
do Sabor apenas surge porque não se construiu a do Côa, mas tal não é
verdade. O projecto da barragem do Sabor, tal como o do Côa, integra o
plano nacional de barragens há muito tempo, e a ideia de levar a cabo
o empreendimento surge em força no ano de 1994, estando a barragem do
Côa em plena construção e antes do desencadear da polémica, tendo o
ano de 2005 como horizonte para a construção. O caso do Côa altera
efectivamente os dados da questão, mas o resultado efectivo é o
atrasar da construção. Ou seja, sem a polémica, o mais provável é que
a barragem do Sabor já estivesse construída ou em construção por esta
altura, conjuntamente com a barragem do Côa e todas as restantes
barragens previstas em cascata para o Côa e Cova da Beira abaixo até
ao Tejo, uma vez que a barragem do Côa era uma peça fulcral do plano
de transvazes de água da bacia do Douro para as bacias do Tejo e
Guadiana, como foi na altura discutido (na minha opinião, um plano
economicamente desastroso e uma atrocidade ambiental, em boa hora
colocado na gaveta, onde esperamos que se perca para todo o sempre).
Pensávamos que a questão da cronologia das gravuras do Côa já estava
mais do que ultrapassada, a partir do momento em que a escavação no
sítio do Fariseu provou cientificamente a cronologia paleolítica das
gravuras da Rocha 1 do Fariseu (e inerentemente, a mesma cronologia
para todas as outras rochas no Côa com motivos similares; literatura
sobre este e outros assuntos pode ser encontrada e livremente
descarregada no site do PAVC). Presumimos que MST não se deu ao
trabalho de pesquisar o tema, uma vez que conhece a opinião da "maior
autoridade mundial na matéria", a qual decretou em 1995 que todas as
gravuras conhecidas no Côa eram recentes. Embora MST não refira o seu
nome, supomos que se esteja a referir a Robert Bednarik, um dos
especialistas em datação directa de gravuras contratados pela EDP.
Não sabemos se este se considera a si próprio como a maior autoridade
mundial em arte rupestre, mas parece-nos que o seu clube de
admiradores se poderá talvez resumir a MST, pois seguramente que a
comunidade arqueológica mundial em geral não o considera e nunca
considerou como tal, e muito menos depois do desastre ético e
científico que foi a sua participação na polémica do Côa. Para quem
não conheça o tema, recomendamos vivamente a leitura da refutação
feita por João Zilhão das datações apresentadas por Bednarik e
Watchman (Zilhão, J. (1995), disponível em
http://www.ipa.min-cultura.pt/coa/).
A cronologia paleolítica de grande parte das gravuras do Côa é um
dado adquirido (é como o debate sobre a teoria da evolução dentro dos
meios científicos: discute-se os detalhes, acerbamente se necessário,
não se questiona a evidência). Era evidente em 1995, face às numerosas
imagens vindas a público, e para quem conhecesse um pouco da arte
paleolítica europeia (o estudo da qual, recorde-se, se desenvolve com
grande intensidade desde há mais de 100 anos, sendo indubitavelmente
um dos grandes temas da arqueologia europeia) que aqueles inúmeros
motivos estilisticamente paleolíticos só podiam ser ... paleolíticos
(afirmar convictamente o contrário é um pouco como tentar convencer os
especialistas em arte e arquitectura medieval que o Mosteiro da
Batalha não passa de uma reles falsificação neo-gótica)! Se MST acha
que a sua opinião vale mais que a da UNESCO e da quase totalidade da
comunidade arqueológica nacional e internacional, sobrepondo-se à
prova científica existente, pois está à vontade, afinal de contas o
disparate e o ridículo são livres e não pagam imposto.
Façamos por fim um pequeno balanço da actividade do Parque. Afirmam
MST e HM que as hordas de turistas não apareceram, ao contrário do
prometido. No entanto, todos os anos o Parque e as gravuras tem tido
vários milhares de visitantes, com um máximo de 20.000 nos primeiros
tempos e um mínimo de 14.000, estando actualmente nos 16.000. É bem
verdade que estamos muito longe dos 100 ou 200 mil visitantes anuais
que alguém em má hora lançou a público, num exagerado arroubo de
entusiasmo. Comparando, no ano de 2006 o museu mais visitado em
Portugal foi o Museu do Coches, com 195.690 entradas, seguido de
Conímbriga com 110.355 e do Museu Nacional de Arqueologia com
109.312. Tendo em conta que estamos numa região deprimida do interior,
com maus acessos e falta de investimentos, até nem parece tão mau
quanto isso. Mas, pessoalmente, considero que o Côa pode e tem
condições para receber bastantes mais visitantes que os que tem
actualmente. Tudo indica que o futuro museu (cuja construção está
quase pronta) terá capacidade para receber um fluxo extra de
visitantes que os núcleos de gravuras actualmente abertos a visitas
manifestamente não tem, particularmente tendo em conta os parcos meios
disponíveis. Quanto ao que a região ganha com isso, podemos colocar a
seguinte questão: se a barragem tivesse ido adiante, já estaria
terminada há muito tempo, e a dinâmica económica da construção
igualmente terminada. Que visitantes ocorreriam então, trazidos pela
barragem? Não sendo esta, ao contrario do Alqueva, uma barragem
construída a pensar no turismo, é de presumir que teria um nível de
visitantes semelhante ao da maioria das barragens deste pais, ou seja,
quase nulo.
Finalmente, uma outra questão se coloca, e que é saber em que medida
o Côa respondeu às expectativas científicas levantadas na altura da
polémica. De facto, quando o Côa se revela, aquilo que na altura se
descobriu parecia indicar que muito mais estaria por descobrir, e
parte do entusiasmo científico da altura jaz nesta expectativa. Será
que, após estes anos de investigação no Côa, essa esperança foi
correspondida? Alguns números podem ajudar a responder. O Côa é
revelado ao público essencialmente com alguma das gravuras do sítio da
Canada do Inferno, mas já na altura outros sítios eram conhecidos. Em
finais de 1995, já com a construção suspensa, estão inventariadas 137
rochas em 23 sítios diferentes, das quais a imensa maioria tinha
motivos paleolíticos, mas já se conhecendo uma apreciável quantidade
de rochas e motivos das outras três grandes fases da Arte do Côa, a
Pré-História Recente, a Idade do Ferro e a Época
Moderna/Contemporânea. Em finais de 1997, concluído o relatório que
serviu de fundamentação à decisão final de suspender a barragem, e
também de base à UNESCO para a classificação do Côa como Património
Mundial, este número tinha aumentado para 199 rochas em 26 sítios,
mantendo-se os motivos paleolíticos em vastíssima maioria. A partir
dai, a investigação prosseguiu, até hoje, e todos os anos, sem
excepção, se descobriram novas rochas e novos sitos, com um incremento
notável nos últimos anos (de tal maneira que um balanço da situação
que foi apresentado numa conferência em Salamanca em meados de 2006, e
ainda não publicado por razões que nos são alheias, se encontra já
totalmente desactualizado). Neste momento, temos inventariadas cerca
de 880 rochas em 47 sítios, e este registo deverá rapidamente ficar
desactualizado (estritamente falando, nem todas são rochas
propriamente ditas, existem alguns casos de pedras soltas com
gravuras, mas contam-se pelos dedos das mãos ; por outro lado, note-se
que este número não inclui as 60 ou 70 placas gravadas encontradas na
escavação do sítio paleolítico do Fariseu). De todas estas rochas, um
pouco menos de metade tem motivos paleolíticos, mantendo-se as
gravuras deste período em grande maioria face às restantes, ainda que
a diferença seja bem menos acentuada do que no princípio,
particularmente no que toca à Idade do Ferro, que já supera as 300
rochas. Uma vez que a Arte do Côa não se estende indefinidamente,
tendo limites que já conhecemos razoavelmente, e face à realidade e à
distribuição conhecida no terreno, podemos tentar fazer uma estimativa
do que poderá haver ainda por descobrir, com os evidentes riscos dessa
tentativa poder vir a revelar-se longe da verdade. Assim,
pessoalmente, arriscaria conservadoramente que ainda poderá haver umas
300 rochas por descobrir, mais coisa menos coisa, e incluindo nesta
estimativa as rochas que estão presentemente submersas e inacessíveis
debaixo das águas da albufeira da barragem do Pocinho.
Mário Reis