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Re: [Archport] rabiscos e tacanhices

Subject :   Re: [Archport] rabiscos e tacanhices
From :   "Alexandre Monteiro" <no.arame@gmail.com>
Date :   Fri, 11 Jul 2008 22:18:04 +0100

Parabéns. Excelente texto, a elevar a classe para um patamar que eu
achava já muito rebaixado, tendo em conta os dislates e os ataques ad
hominen que por aqui foram publicados relativamente ao MST.

Gostava muito de ler esta resposta no Público. Afinal, mais do que
catequizar os já evangelizados, importa é fazer ouvir uma voz sensata
e argumentativamente bem fundamentada junto do grande público. Espero,
por isso, que faça chegar esse seu email ao director do Público.

2008/7/11  <marioreissoares@sapo.pt>:
>
> Olá a todos os archportianos!
> Sendo um arqueólogo a trabalhar no vale do Côa desde 2005, deixo aqui
> a minha contribuição para a discussão.
>
> Dos artigos de opinião de Miguel Sousa Tavares (MST) e Helena Matos
> (HM), surgem algumas questões fulcrais para a discussão do tema. Em
> primeiro lugar, a contraposição entre a barragem do Sabor e a barragem
> do Côa, com a afirmação de que a primeira apenas surge como
> contrapartida da não construção da segunda; em segundo lugar, o mais
> que estafado tema da autenticidade paleolítica das gravuras; em
> terceiro e último, uma questão essencial, que é se valeu ou não a pena
> a decisão de 1995, e se o Côa, o Parque e as gravuras corresponderam à
> expectativas criadas, tanto do ponto de vista económico como científico.
> É indubitável que há uma corrente de opinião que acha que a barragem
> do Sabor apenas surge porque não se construiu a do Côa, mas tal não é
> verdade. O projecto da barragem do Sabor, tal como o do Côa, integra o
> plano nacional de barragens há muito tempo, e a ideia de levar a cabo
> o empreendimento surge em força no ano de 1994, estando a barragem do
> Côa em plena construção e antes do desencadear da polémica, tendo o
> ano de 2005 como horizonte para a construção. O caso do Côa altera
> efectivamente os dados da questão, mas o resultado efectivo é o
> atrasar da construção. Ou seja, sem a polémica, o mais provável é que
> a barragem do Sabor já estivesse construída ou em construção por esta
> altura, conjuntamente com a barragem do Côa e todas as restantes
> barragens previstas em cascata para o Côa e Cova da Beira abaixo até
> ao Tejo, uma vez que a barragem do Côa era uma peça fulcral do plano
> de transvazes de água da bacia do Douro para as bacias do Tejo e
> Guadiana, como foi na altura discutido (na minha opinião, um plano
> economicamente desastroso e uma atrocidade ambiental, em boa hora
> colocado na gaveta, onde esperamos que se perca para todo o sempre).
>        Pensávamos que a questão da cronologia das gravuras do Côa já estava
> mais do que ultrapassada, a partir do momento em que a escavação no
> sítio do Fariseu provou cientificamente a cronologia paleolítica das
> gravuras da Rocha 1 do Fariseu (e inerentemente, a mesma cronologia
> para todas as outras rochas no Côa com motivos similares; literatura
> sobre este e outros assuntos pode ser encontrada e livremente
> descarregada no site do PAVC). Presumimos que MST não se deu ao
> trabalho de pesquisar o tema, uma vez que conhece a opinião da "maior
> autoridade mundial na matéria", a qual decretou em 1995 que todas as
> gravuras conhecidas no Côa eram recentes. Embora MST não refira o seu
> nome, supomos que se esteja a referir a Robert Bednarik, um dos
> especialistas em datação directa de gravuras contratados pela EDP.
> Não sabemos se este se considera a si próprio como a maior autoridade
> mundial em arte rupestre, mas parece-nos que o seu clube de
> admiradores se poderá talvez resumir a MST, pois seguramente que a
> comunidade arqueológica mundial em geral não o considera e nunca
> considerou como tal, e muito menos depois do desastre ético e
> científico que foi a sua participação na polémica do Côa. Para quem
> não conheça o tema, recomendamos vivamente a leitura da refutação
> feita por João Zilhão das datações apresentadas por Bednarik e
> Watchman (Zilhão, J. (1995), disponível em
> http://www.ipa.min-cultura.pt/coa/).
>        A cronologia paleolítica de grande parte das gravuras do Côa é um
> dado adquirido (é como o debate sobre a teoria da evolução dentro dos
> meios científicos: discute-se os detalhes, acerbamente se necessário,
> não se questiona a evidência). Era evidente em 1995, face às numerosas
> imagens vindas a público, e para quem conhecesse um pouco da arte
> paleolítica europeia (o estudo da qual, recorde-se, se desenvolve com
> grande intensidade desde há mais de 100 anos, sendo indubitavelmente
> um dos grandes temas da arqueologia europeia) que aqueles inúmeros
> motivos estilisticamente paleolíticos só podiam ser ... paleolíticos
> (afirmar convictamente o contrário é um pouco como tentar convencer os
> especialistas em arte e arquitectura medieval que o Mosteiro da
> Batalha não passa de uma reles falsificação neo-gótica)! Se MST acha
> que a sua opinião vale mais que a da UNESCO e da quase totalidade da
> comunidade arqueológica nacional e internacional, sobrepondo-se à
> prova científica existente, pois está à vontade, afinal de contas o
> disparate e o ridículo são livres e não pagam imposto.
>        Façamos por fim um pequeno balanço da actividade do Parque. Afirmam
> MST e HM que as hordas de turistas não apareceram, ao contrário do
> prometido. No entanto, todos os anos o Parque e as gravuras tem tido
> vários milhares de visitantes, com um máximo de 20.000 nos primeiros
> tempos e um mínimo de 14.000, estando actualmente nos 16.000. É bem
> verdade que estamos muito longe dos 100 ou 200 mil visitantes anuais
> que alguém em má hora lançou a público, num exagerado arroubo de
> entusiasmo. Comparando, no ano de 2006 o museu mais visitado em
> Portugal foi o Museu do Coches, com 195.690 entradas, seguido de
> Conímbriga com 110.355 e do Museu Nacional de Arqueologia com
> 109.312. Tendo em conta que estamos numa região deprimida do interior,
> com maus acessos e falta de investimentos, até nem parece tão mau
> quanto isso. Mas, pessoalmente, considero que o Côa pode e tem
> condições para receber bastantes mais visitantes que os que tem
> actualmente. Tudo indica que o futuro museu (cuja construção está
> quase pronta) terá capacidade para  receber um fluxo extra de
> visitantes que os núcleos de gravuras actualmente abertos a visitas
> manifestamente não tem, particularmente tendo em conta os parcos meios
> disponíveis. Quanto ao que a região ganha com isso, podemos colocar a
> seguinte questão: se a barragem tivesse ido adiante, já estaria
> terminada há muito tempo, e a dinâmica económica da construção
> igualmente terminada. Que visitantes ocorreriam então, trazidos pela
> barragem? Não sendo esta, ao contrario do Alqueva, uma barragem
> construída a pensar no turismo, é de presumir que teria um nível de
> visitantes semelhante ao da maioria das barragens deste pais, ou seja,
> quase nulo.
>        Finalmente, uma outra questão se coloca, e que é saber em que medida
> o Côa respondeu às expectativas científicas levantadas na altura da
> polémica. De facto, quando o Côa se revela, aquilo que na altura se
> descobriu parecia indicar que muito mais estaria por descobrir, e
> parte do entusiasmo científico da altura jaz nesta expectativa. Será
> que, após estes anos de investigação no Côa, essa esperança foi
> correspondida? Alguns números podem ajudar a responder. O Côa é
> revelado ao público essencialmente com alguma das gravuras do sítio da
> Canada do Inferno, mas já na altura outros sítios eram conhecidos. Em
> finais de 1995, já com a construção suspensa, estão inventariadas 137
> rochas em 23 sítios diferentes,  das quais a imensa maioria tinha
> motivos paleolíticos, mas já se conhecendo uma apreciável quantidade
> de rochas e motivos das outras três grandes fases da Arte do Côa, a
> Pré-História Recente, a Idade do Ferro e a Época
> Moderna/Contemporânea. Em finais de 1997, concluído o relatório que
> serviu de fundamentação à decisão final de suspender a barragem, e
> também de base à UNESCO para a classificação do Côa como Património
> Mundial, este número tinha aumentado para 199 rochas em 26 sítios,
> mantendo-se os motivos paleolíticos em vastíssima maioria.   A partir
> dai, a investigação prosseguiu, até hoje, e todos os anos, sem
> excepção, se descobriram novas rochas e novos sitos, com um incremento
> notável nos últimos anos (de tal maneira que um balanço da situação
> que foi apresentado numa conferência em Salamanca em meados de 2006, e
> ainda não publicado por razões que nos são alheias, se encontra já
> totalmente desactualizado). Neste momento, temos inventariadas cerca
> de 880 rochas em 47 sítios, e este registo deverá rapidamente ficar
> desactualizado (estritamente falando, nem todas são rochas
> propriamente ditas, existem alguns casos de pedras soltas com
> gravuras, mas contam-se pelos dedos das mãos ; por outro lado, note-se
> que este número não inclui as 60 ou 70 placas gravadas encontradas na
> escavação do sítio paleolítico do Fariseu). De todas estas rochas, um
> pouco menos de metade tem motivos paleolíticos, mantendo-se as
> gravuras deste período em grande maioria face às restantes, ainda que
> a diferença seja bem menos acentuada do que no princípio,
> particularmente no que toca à Idade do Ferro, que já supera as 300
> rochas. Uma vez que a Arte do Côa não se estende indefinidamente,
> tendo limites que já conhecemos razoavelmente, e face à realidade e à
> distribuição conhecida no terreno, podemos tentar fazer uma estimativa
> do que poderá haver ainda por descobrir, com os evidentes riscos dessa
> tentativa poder vir a revelar-se longe da verdade. Assim,
> pessoalmente, arriscaria conservadoramente que ainda poderá haver umas
> 300 rochas por descobrir, mais coisa menos coisa, e incluindo nesta
> estimativa as rochas que estão presentemente submersas e inacessíveis
> debaixo das águas da albufeira da barragem do Pocinho.
>
> Mário Reis
>
>
>
>
> _______________________________________________
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