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[Archport] Ainda os detectores de metais (Pelo Professor Doutor Luís Raposo, Director do Museu Nacional de Arqueologia)

Subject :   [Archport] Ainda os detectores de metais (Pelo Professor Doutor Luís Raposo, Director do Museu Nacional de Arqueologia)
From :   "Filipe Paiva" <trialmotor@gmail.com>
Date :   Thu, 21 Aug 2008 14:34:00 +0100

Achados avulso e detectores
Achados fortuitos, detectores de metais e arqueologia:uma situação grave de que todos somos responsáveis




Circunstâncias profissionais fizeram-me nos últimos meses tomar conhecimento directo, e de certa forma intervir, num terreno explosivo que antes procurara evitar: o mundo das "descobertas fortuitas", decorrentes de trabalhos agrícolas, de meros passeios no campo ou, como sabemos acontecer com crescente frequência, do uso de detectores de metais.

Na perspectiva em que agora me coloco não importam especialmente os contornos exactos do episódio que assim me fez sair do meu cómodo alheamento relativamente a toda aquela realidade. Devo aliás começar por reconhecer este alheamento, e penitenciar-me do mesmo. É que, tendo eu sido uma das vozes que mais clamou contra a inexistência em Portugal de legislação limitativa do uso de detectores de metais , tendo sido pedida justamente a mim a preparação do dossiê que habilitou o Grupo Parlamentar do Partido Socialista a propor e fazer passar na Assembleia da República um texto (projecto de lei n.º 676/VII) sobre detectores de metais, que viria a ser adoptado como lei e hoje continua em vigor (Lei nº 12/99, de 20 de Agosto), sinto-me vinculado, não apenas por obrigação, mas por convicção, à ordenação jurídica que o mesmo instituiu. E ainda que me fossem regularmente chegando ecos das consequências nefastas que a deficiente aplicação desta lei vinha suscitando, continuava a prevalecer em mim a ideia de que tudo se corrigiria como tempo.

Infelizmente, acabo por concluir que assim não está a acontecer e não posso por mais tempo deixar de emitir opinião sobre matéria de que me sinto co-responsável. Não pretendo que se diga no futuro, como julgo vir a ser o caso se nada for feito urgentemente, que a nossa geração, a geração das "grandes causas revolucionárias", foi afinal a que mais contribuiu, de facto e na prática, para o saque a que o património arqueológico está sujeito no nosso país, por ter ousado pensar que o mundo se poderia endireitar à força de regulamentos emanados de vanguardas iluminadas, servidas pela autoridade do Estado.

Todo o edifício jurídico da arqueologia portuguesa no presente está eivado deste tipo de proselitismo ideológico – do qual, em todo o caso, me distanciei já bastas vezes, inclusive nas páginas desta revista. O actual Regulamento de Trabalhos Arqueológicos, só para dar um exemplo, é um autêntico colete-de-forças policial, onde se chega ao ponto, ridículo, de pretender que todas as acções de prospecção arqueológica (e não apenas as "prospecções sistemáticas", como na legislação anterior) tenham de obter prévia autorização estatal. Mas, enfim, pouco mal vem ao Mundo destes excessos, porque se situam e gerem dentro do domínio corporativo dos arqueólogos e das suas instituições. O problema está quando tais excessos atingem o todo social, como acontece com a regulamentação dos aspectos relacionados com achados avulso, fortuitos ou não, decorrentes de mera procura de superfície ou do uso de detectores de metais.

Recordo-me bem de ter chamado a atenção, durante a preparação do actual lei, para a necessidade imperiosa de incluir nesse diploma a possibilidade de legalização do uso de detectores de metais através do seu adequado registo – o que ali veio a ser feito. Recordo-me ainda de ter insistido no direito a recompensa por parte dos achadores, quando estivessem em causa objectos de valor venal, fossem quais fossem os meios usados para realizar o achado (golpe de vista, enxadas, retro-escavadoras ou... detectores de metais) – o que não foi expressamente incluído na lei acima citada, por me fazerem sentir que extravasava muitíssimo o seu âmbito circunscrito, mas viria a ter depois acolhimento na legislação geral de enquadramento (§ 2º, do artº 78º da actual Lei de Bases do Património Cultural Português, por exemplo).

Todavia, nunca até hoje foram plenamente postas em prática as determinações ou orientações da legislação indicada. Ou antes: foram-no, parcialmente apenas, no domínio da arqueologia subaquática e dos achados em meio marinho e litoral. Em geral, continuamos ainda a viver o paradoxo que eu já assinalei há anos, segundo o qual o Estado se dispõe e possui até legislação operacional suficiente para "compensar" os achadores de bens arqueológicos debaixo de água e, segundo parece e erradamente nos pretendem fazer crer, se vê impedido de fazer o mesmo em relação a bens encontrados em terra. O mesmo se passa em relação ao tema específico dos detectores de metais, cujo "registo" (pressupondo eventuais subsequentes recompensas monetárias) já existe em domínio marinho e litoral, e que eu saiba nunca até aqui foi feito em terra firme. Porquê ? Porque faltam "apenas" os diplomas regulamentares, dizem-nos. Tendo em conta o tempo que já passou e os danos gravíssimos que a actual situação vem causando no património arqueológico nacional, eu diria que falta algo mais: faltou em passado recente a sensatez de reconhecer que a gestão e salvaguarda do património arqueológico constitui terreno de compromisso social, insusceptível de ser tratado na ponta das baionetas, por elites momentaneamente detentores do aparelho de Estado; falta porventura ainda hoje a auto-crítica de alguns (entre os quais eu me incluo), tomando consciência dos malefícios do seu pudico alheamento em relação a este tipo de questões "demasiado sensíveis", mais sociais do que científicas; e faltará finalmente também e talvez a clarividência, ousadia intelectual e visão estratégica uns tantos outros, com funções administrativas nestes domínios.

O caso específico do uso de detectores de metais, entroncando na questão geral das recompensadas por achados avulsos, é no entanto mais complexo. Tinha já consciência há meia dúzia de anos, pela análise de experiências estrangeiras a que tivera acesso, de como seria ilusório pretender que tudo se resolveria por acto administrativo radical (proibição do seu uso, puro e simples), passando a tratar todas as infracções como meros casos de polícia. Tinha consciência de que o "mundo dos detectoristas" compreendia noutros países, como inevitavelmente haveria de acontecer em Portugal, situações assaz diversas, nem todas igualmente recriminatórias do ponto de vista social e algumas até eventualmente benéficas do ponto de vista científico e patrimonial. O tempo tem vindo a reforçar em mim estas convicções. Tenho para o efeito presente quer a situação portuguesa, quer o contacto directo que entretanto tive com experiências ocorridas em países como a Alemanha ou a Croácia, ambos confrontados actualmente com situações que, na sequência de profundas modificações políticas (unificação de dois Estados, no primeiro caso; guerra regional e criação de um novo estado, no segundo), obrigam à revisão profunda de toda a legislação relacionada com a arqueologia, especialmente na vertente dos achados avulsos e do uso de detectores de metais.

A diversidade do "mundo detectorista" pode ser facilmente exemplificada, em abstracto. Ela compreende desde os mentores de redes de obtenção e tráfico ilegal de bens arqueológicos (as mais das vezes sediados em países diferentes daqueles onde os seus agentes actuam) até meros camponeses desempregados que vêm nesta ocupação uma oportunidade obtenção de recursos, às vezes vitais. Quer do ponto de vista jurídico, quer sobretudo do ponto de vista da recriminação social, trata-se de situações diferentes. Por outro lado, haveria que distinguir o achado fortuito, mesmo que servido por detector de metais, do achado decorrente da vandalização sistemática realizada em local arqueológico conhecido e delimitado. No meio fica toda uma gama variada de situações possíveis em que a actividade detectorista se realiza em locais não reconhecidos como de interesse arqueológico ou apenas vagamente identificados em cartas arqueológicas ou noutros inventários, mas não verdadeiramente delimitados – situações que, devidamente enquadradas, poderiam até ser altamente favoráveis ao aprofundamento do conhecimento de tais sítios e à recuperação de bens patrimoniais. O exemplo inglês dos "clubes de detectoristas", devidamente reconhecidos e legalizados, vem-nos sempre à cabeça: é através deles que a esmagadora maioria dos chamados "tesouros" arqueológicos tem sido incorporada nos museus britânicos.

A conclusão a retirar da diversidade indicada é a de que, como na guerra, a trincheira que nos deve separar, enquanto arqueólogos, do "mundo dos detectoristas" não passa por acantoná-los todos do lado do exército inimigo; e quando, para além de arqueólogos, reflectimos também como defensores do património nacional e, mais ainda, quando actuamos como responsáveis legais do mesmo, então é imperioso trazer para o "nosso lado" uma boa parte dos detectoristas, especialmente aqueles que actuam no terreno por mero "hobby" ou o fazem (a mando de outros ou por iniciativa própria) na esperança de arranjarem uns trocos para viverem.

É esta a conclusão a que chegaram por exemplo os Estados alemães outrora incluídos na RDA. Depois de décadas de vigência de uma férrea legislação impeditiva do uso de detectores de metais, a qual apenas era viável em situação de isolamento político, com fronteiras fechadas, servidas aliás por poderes musculados e de forte pendor policial, verificou-se que a situação emergente da democratização política e da abertura de fronteiras conduziu a uma verdadeira sangria dos respectivos patrimónios arqueológicos, sem haver polícia que valesse. O caso da recuperação em 2002, in extremis e algo rocambolescamente, do célebre disco de Nebra (descoberto 1999 e julgado perdido para o património do Estado de Saxónia-Anhalt) constituiu na Alemanha e a este respeito o momento de viragem: quantos tesouros idênticos não terão sido perdidos nos últimos anos, enquanto os arqueólogos e autoridades germânicas continuavam a gabar-se do rigor da sua legislação, confortados nas suas infantis consciências ?

Em Portugal e mesmo sem manifestamente possuirmos o sentido de disciplina e obediência à lei dos alemães, continuamos a não querer abrir os olhos e aprender com a realidade. Continuamos a ter bravata de pretender que tudo se resolve como casos de polícia. Ou, como fica bem aos nossos brandos costumes, assobiamos para o lado sempre que algo mais incómodo nos sai pela frente.

Imagine-se que um qualquer trabalhador rural desempregado adquire por iniciativa própria ou por ter sido aliciado para o efeito por um qualquer "doutor" residente na cidade, ou comerciante vindo de Espanha, um detector de metais. E que, quando o trabalho falta, percorre os campos, em cabeços onde os vizinhos lhe dizem haver vestígios "do tempo dos mouros", à procura de coisas antigas, talvez valiosas. Haverá GNR que baste para impedir este comportamento ? E será ele pura e simplesmente recriminatório ? A resposta à primeira pergunta é óbvia: não há ! E, em meu entender, a resposta à segunda pergunta é também negativa, dentro de certas condições.

Imagine-se ainda que o mesmo trabalhador descobre efectivamente algo, seja pelo uso do dito detector de metais, seja em resultado fortuito da sua actividade agrícola. O seu primeiro e mais natural ímpeto será obviamente o de imediatamente avisar o tal "doutor" ou comerciante. E assim é feito quase todos os dias, de tal modo que é legítimo temer que o património arqueológico nacional tem sido mais delapidado nas duas últimas décadas do que em todas os séculos anteriores. Delapidado, sem sequer termos sabido que existe. Desaparecido sem deixar rasto: o crime perfeito !

Imagine-se, porém, caso certamente raro (motivado talvez por algum resquício de "espírito patriótico"), que o mesmo trabalhador rural avisa do achado um arqueólogo que por acaso viu andar nos campos da sua terra. E lhe diz o que descobriu, prestando-se a entregar-lho, desde que seja recompensado, senão no valor que o tal "doutor" de lhe pagaria, pelo menos em algum montante, metade ou um terço desse valor. Que resposta terá esse arqueólogo e teremos todos nós, arqueólogos, defensores do património arqueológico ou responsáveis pela gestão do mesmo, para dar àquele homem ? Dizemos-lhe que não nos é possível entrar em tal tipo de acordos porque não existe regulamentação da lei, e, por compreensão humana para com ele, deixamos a coisa passar-nos ao lado ? Denunciamo-lo à polícia ? Aceitamos, mediante certas condições (conhecimento do local exacto do achado, garantia de não realização nesse local de acções detectoristas, etc.), entabular negociações que possam acabar numa recompensa monetário pela sua descoberta ?

Há muito que eu me interrogava sobre estas questões e me questionava a mim próprio como lhes responderia quando surgissem, especialmente se tal ocorresse no âmbito das funções oficiais que me fazem sentir co-responsável pelos destinos do nosso património arqueológico. Devo agora afirmar, sem subterfúgios, que, quando surgiram, optei decididamente pela última via indicada. Não estou disso arrependido.

Admito que qualquer das duas primeiras opções fosse a seguida por quem não quer sujeitar-se a aborrecimentos ou por quem prefere meter a cabeça na areia, enquanto o património arqueológico do País vai sendo delapidado. No caso do alheamento (infelizmente tão comum entre nós e quase imagem de marca de uma certa forma de ser funcionário público) restaria esperar, na melhor da hipóteses, que o achado viesse um dia a ressurgir num qualquer antiquário, sendo apresentado como herança de família, sem exacta indicação de proveniência e condições de descoberta. Passaria então a ser pacífica a sua eventual aquisição, certamente muito mais cara do ponto de vista financeiro e muito mais pobre do ponto de vista científico, por falta de contextualização. No caso da participação à polícia, poderia até admitir-se uma vitória imediata (que em todo caso seria problemática, porque haveria que provar, em cada situação, a origem ilegal dos achados feitos, o que talvez não seja assim tão simples…). Mas pergunta-se quantos achados idênticos se perderiam para sempre, enquanto naquele trabalhador rural e em todos os outros que soubessem da história permanecesse ainda a lembrança de tal procedimento. Se existem antecipadamente vitórias pírricas, esta seria certamente uma delas. Isto para já não falar no sentimento de intolerável injustiça que não deixaria de, com alguma razão convenhamos, sentir esse trabalhador agrícola e toda a população ao ver que um tal dano patrimonial era objecto de sanção, quando por todo lado prossegue impunemente a destruição maciça de sítios arqueológicos, esventrados através de poderosas máquinas (e não meras enxadas ou detectores de metais…), para plantio de olivais ou reflorestação e sem que ninguém pareça poder intervir.

Apenas resta, pois, a terceira via, a opção do bom-senso. Por maiores dúvidas éticas ou legais que ela possa suscitar, a opinião pública e a história julgá-la-ão, assim como ambas julgarão o papel que os responsáveis pela arqueologia nacional têm tido no que fazem, ou deixam de fazer, para travar a sangria indecorosa a que está sujeito o nosso património arqueológico. Daqui a algumas décadas se verá quem melhor defendeu o património nacional: se aqueles que, a pretexto da lei ou da falta dela, actuam como "talibans" e provocam o sumiço puro e simples do nosso património arqueológico, se quem acima de tudo tenta acautelar-lhe o destino. Insisto em que não chega nestes casos, em meu entender, sossegar o espírito, "chamando a polícia". Trata-se de uma realidade sobejamente demonstrada, em todos os países e em todas as épocas. E já a legislação do Marquês de Pombal assim o tinha entendido, ao estabelecer um mecanismo expedito e imediato de satisfazer, ainda que precariamente, os proprietários pelo "justo valor" dos seus achados. Se era assim no século XVIII, muito mais o é no nosso tempo, onde o trabalho da terra é muito mais extensivo e servido por meios muito mais poderosos e onde a ausência de fronteiras facilita enormemente a exportação ilícita de quaisquer achados.

Pouco me reconforta, porém, estar de bem com a minha consciência de arqueólogo, cidadão e gestor patrimonial, conseguindo salvaguardar para o País este ou aquele bem patrimonial, mesmo correndo o risco de pisar terrenos sensíveis, de ficar exposto a recriminações informais ou até a censuras e procedimentos oficiais. O que verdadeiramente desejaria e me leva a redigir estas linhas é que a nossa geração pudesse colectivamente assumir os desaires que temos sofrido no tratamento destas matérias e deles tirássemos as devidas ilações. Importa criar com urgência um sistema de registo de detectoristas em terra; importa instituir mecanismos expeditos de recompensa em caso de achados de valor venal (avaliação e adiantamento imediato de algum montante, tendo por exemplo por base o preço do metal, acrescido de um coeficiente por antiguidade, raridade e importância histórica); importa distinguir entre o uso de detectores de metais em sítios arqueológicos devidamente delimitados (que deve ser pura e simplesmente interdito), em locais não positivamente identificados (ainda que referidos em efabulários locais ou até em cartas arqueológicas) ou no território em geral (que poderá ser autorizado a detectoristas registados, mediante a condição da imediata informação dos achados, dando ao Estado a preferência da sua aquisição, sob a forma da recompensa prevista na Lei de bases do Património Cultural); importa organizar acções de informação e sensibilização das populações das aldeias para os danos provocados pelos detectores de metais, promovendo em todo o caso o registo e reconhecimento oficial daqueles que os possuírem, que desejavelmente deveriam organizar-se associativamente; importa depois estabelecer relações de confiança com todos e especialmente com os ditos detectoristas registados, o que fatalmente implicará o tratamento expedito e diligente de alguns casos emblemáticos, susceptíveis de servirem de exemplo e desbloquearam naturais desconfianças mútuas.

No dia em que, de forma clara e transparente, um qualquer achado fortuito, resultante de trabalhos agrícolas ou do uso de detectores de metais, for apresentado publicamente num museu, com o envolvimento anímico tanto do povo da terra onde tenha ocorrido como do achador, tendo este sido previamente recompensado, teremos obtido uma primeira vitoria sustentada na luta contra o mundo subterrâneo das redes de tráfico de antiguidades. Depois, resta apenas esperar que, pela repetição, estes procedimentos se tornem banais. Então sim, a fractura entre "bons" e "maus" estará situada onde deve: apenas os malfeitores, os traficantes e falso antiquários ficarão do lado de lá. E será mais fácil tratá-los como meros casos de polícia, que, esses sim, efectivamente são.









Autor:Dr. Luis Raposo, Director do Museu Nacional de Arqueologia
Artigo publicado: Na revista "Almadan" Nº13

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Publicado em: 2005-10-03 (467 leituras)

 


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Filipe Paiva
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