Re: [Archport] Forma çã o acad é mica e exerc í cio profissional: perguntas afinal com resposta
Title: Re: [Archport] Formação académica e exercício profissional: perguntas afinal com resposta
Do meu ponto de vista de professor universitário desde o ano lectivo de 1972/73, e como “arqueólogo de campo” em directa relação com a primeira actividade, o meu ponto de vista sucintamente é o seguinte:
- as licenciaturas com tese, antes do 25 de Abril, tinham automática correspondência em países europeus a uma pós-graduação: Master no Reino Unido, DEA em França. É óbvio que mesmo assim seria exigível (visto agora retrospectivamente), para se ter uma autorização de direcção de escavações, um comprovado curriculum de experiência de participação em escavações, nomeadamente de qualidade, como as que faziam os colegas alemães no Zambujal, por exemplo, ou a escola de Conimbriga. Mas nesses tempos a arqueologia não estava minimamente organizada em Portugal, imperando o amadorismo;
- após o 25 de Abril assistu-se a uma diversidade de licenciaturas, e após muitas vicissitudes em 1999/2000 a UP conseguiu finalmente criar a primeira licenciatura só em arqueologia, de 4 anos (já tinha criado o primeiro mestrado de Arqueologia em 1989/90). Não tendo as universidades meios nem verbas para deslocar alunos ao campo de forma continuada que uma escavação exige, nunca pôde haver oficialmente um currículo completo (uma formação prática oficialmente integrada) de arqueologia, continuando professores e alunos a fazer ou participar em escavações conseguidas como sempre à custa de outros meios. Quer dizer, nas universidades (e politécnicos), onde se formam os profissionais (ou seja, onde se atribuem graus), nunca houve os meios para integralmente os formar, para integrar uma cadeira de escavações, por exemplo, formalmente, no curriculo dos cursos. Comparando toscamente, e o mesmo que uma faculdade de medicina não disponibilizar aos seus alunos um hospital em doentes em que exercer a aprendizagem da prática clínica.
- se o arqueólogo é antes de mais um investigador, neste sentido a carta de alforria é o doutoramento. Quer dizer, só um indivíduo habilitado com o grau de doutor pode dirigir trabalhos que envolvam investigação, em bom rigor. Claro que há muitas pessoas sem esse grau (ou mesmo sem o grau de mestre) que podem ter muito mais capacidade, porque um grau não concede ou garante, só por si, qualidades práticas que aliás em arqueologia são muito diversificadas.
- pessoalmente discordo da direcção unipessoal de escavações. Penso que uma escavação deveria ser sempre dirigida por uma equipa (como numa operação cirúrgica) embora pudesse naturalmente ter uma espécie de cirurgião-chefe como último responsável.
- ao lado da arqueologia que visa a investigação, e que seria a sua vocação teoricamente mais “pura”, desenvolveu-se, tal como noutros países e disciplinas, toda uma arqueologia prática, empresarial ou não, que não precisa de estar em contradição com a investigação, mas devia funcionar em rede de parcerias com pessoas/equipas/instituções fazendo ou promovendo projectos de investigação, que é o que a arqueologia basicamente é. Toda esta actividade implica negociação cm o conjunto da sociedade, como e óbvio.
- tendo o sstema de Bolonha vindo introduzir alterações profundas, relacionadas com a sociedade acelarada em que nos encontramos, de produção rápida de diplomados que serve de écrã a toda uma profunda mercantilização dos saberes/poderes/práticas produtivas, no quadro de uma população ainda pouco motivada para o que seria uma arqueologia de qualidade, etc., penso que deveria haver um conselho de arqueólogos realmente representativo de todos os tipos de actividades que se desenrolam nesta área (conselho esse cujos membros tivessem mandatos rotativos) que aconselhasse as entidades da tutela e que propusesse, caso a caso, o que se deveria fazer e quem, independentemente do grau, poderia ou deveria ter a responsabilidade x ou y no contexto por exemplo de um estudo de impacte, e também de uma escavação, que é ainda o acto nuclear da arqueologia.
- naturalmente que aos organismos centrais, regionais e locais do Estado competiria orquestrar toda esta máquina, adaptando a legislação existente às novas realidades e assegurando condições mínimas de equidade e de equidistância entre os multiplos interesses em jogo.
- já se vê , para concluir, que há muito de utópico nisto que sugiro, mas o facto de algo ser inconcretizável por mitas razões não nos impede de pensar, indo o pensamento a arrasto de interesses exteriores ao que se considera ser correcto, ou seja, assumindo a submissão como prática e a negligência mais ou menos controlada nos excessos como política.
- torna-se óbvio que um licenciado pelo sistema de Bolonha, mesmo com um bom curriculum, não pode ser considerado um arqueólogo profissional, e que mesmo no caso de um mestre isso teria de ser reconhecido caso a caso por um conselho idóneo, sem desmerecer ou esquecer em primeiro lugar a APA ou qualquer outra entidade igualmente idónea existente, que teriam sempre uma palavra a dizer, e tendo em conta que estamos muito longe de ter uma massa critica que justifique a criação de uma Ordem dos Arqueólogos.
- o grau de doutor, lamentavelmente muito caro de obter (teria de se insistir na criação de mais bolsas) pareceria um contra-senso não corresponder de forma imediata à capacidade de um indivíduo ter o direito de dirigir ou co-dirigir escavações.
- em tudo isto, agora como há dez, vinte ou trnta anos, uma parceria universidades/poltécnicos e outros organismos do Estado que tutelam a arqueologia, para além de empresas, autarquias locais, associações, etc, pareceria indispensável.
- escrevo estas notas com pouco tempo, e não tendo seguido em detalhe todas as asgumentações em torno do assunto, pelo que, para além destas notas de estarem muito imperfeitas em termos formais, podem conter lapsos ou incorrecções. Devido a excesso de trabalho, raramente posso agora fazer o que sempre procurei: tentar contribuir para pensar a arqueologia, desde as suas bases mais básicas, até às suas implicações mais filosóficas, arriscando, é claro, expor a minha necessária incompetência (como aliás de qualquer indivíduo isolado - acredito que isto tem se ser um trabalho colectivo), ou ser mal entendido.
- uma coisa é certa: a matéria sobre a qual a arqueologia se debruça está por definição em constante transformação (nomeadamente em termos destrutivos) e no terreno actuam forças que ultrapassam a nossa “razão”, e perante as quais mesmo os nossos apelos veementes não passam de murmúrios ou mesmo de silêncios inaudíveis. A arqueologia, para ser audível, nomeadamente junto dos(s) poder(es) tem ainda de fazer um grande (hercúleo) esforço. Senão pode ser facilmente ridicularizada (é fundamental um discurso não se expor à sua fácil desmontagem por quem pode saber menos, mas tem o poder de ridicularizar ou ignorar) ou até, em última análise, parecer a velha história do servo que constitui a sua subjectividade (não tem outro método para tal) identificando-se com o desejo do senhor, isto é, de quem o faz servo.
Vitor Oliveira Jorge
On 09/06/05 10:36, "Alexandre Monteiro" <no.arame@gmail.com> wrote:
Pelo que percebi, a resposta do IGESPAR, casuística, partindo de um caso em particular, tenta justificar o indeferimento com o injustificável. Dando de barato que põe os pés pelas mãos (e que o RTA é uma verdadeira aberração, pondo no mesmo plano de de igualdade um passeio pelo campo com o intuito de prospectar a existência ou ausência de materiais cerâmicos e a escavação destrutiva de uma cidade romana inteira, por exemplo), não se compreende como é que a uma licenciatura das "antigas" (quais? as de 4 ou as de 5 anos?) equivale hoje em dia a um grau de mestrado dos "novos".
É que, para todos os efeitos (legais, académicos, profissionais), um mestre "bolonhês" é equivalente, em termos de qualificação, a um mestre dos de antanho. Mais, se nos reportarmos ao caso da arqueologia, nada na legislação habilita particularmente um mestre a ser director de escavação - friso, não é o número de semestres, de aulas frequentadas, de teses elaboradas que torna alguém um bom director de escavação. O que o habilitará é apenas a prática, a tutoria que vier a experimentar sob a direcção de colegas mais velhos e o traquejo (à falta de melhor termo) que só muitos anos de terreno, de congressos e de artigos publicados e revistos pelos seus pares confere.
Mas vejamos o que diz a lei. De acordo com o Decreto-Lei n.o 74/2006, de 24 de Março, sabe-se que:
"A análise da experiência europeia mostra que ao 1.o ciclo correspondem, por norma, 180 créditos, isto é, três anos curriculares de trabalho.
Para algumas profissões—poucas—são internacionalmente exigidas formações mais longas, correspondentes a quatro, cinco ou seis anos curriculares de trabalho."
E cita algumas dessas excepções, pormenorizando três casos distintos:
1- "Contam-se neste grupo, desde logo, aquelas que são objecto de normas comunitárias de coordenação das condições mínimas de formação, como as constantes da Directiva n.o 2005/36/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro (Jornal Oficial, n.o L 255, de 30 de Setembro de 2005), onde se incluem os médicos, os enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, os médicos dentistas, os médicos veterinários, os enfermeiros especializados em saúde materna e obstetrícia, os farmacêuticos e os arquitectos."
2 - "Por outro lado, aquelas cuja duração mais longa resulta de uma prática estável e consolidada na União Europeia, como é o caso de algumas áreas de engenharia de concepção."
3 - "Finalmente, aquelas a que, por força de normas legais nacionais actualmente em vigor, deva ser fixada uma duração superior a 180 créditos."
Ora, não me parece que a arqueologia que se exerce em Portugal se encaixe em algum destes casos. Mais: querer fazer passar a atribuição de uma direcção de escavação apenas a quem demonstre ter mestrado é querer, ao arrepio da lei, promover " a adopção de formações artificialmente longas " o que, fora os contexto europeus de referência acima descritos, "não é naturalmente aceitável, não só pelo que representaria em desperdício de recursos, como pelo prejuízo em que se traduziria para os estudantes dos estabelecimentos de ensino superior portugueses."
Sabendo-se que a grande maioria dos licenciados que terminam agora o seus cursos bolonheses opta por ingressar directamente no mestrado - uma tendência que só beneficia as universidades que, como bem sabemos, estão a precisar de propinas como de pão para a boca - por medo de lhes ser negado o exercício da profissão, pergunto-me então: concluído o mestrado, estando potencialmente dotados de qualificação suficiente para dirigir uma escavação, que experiência terão estes putativos directores, tendo em conta que terão passado a maioria deles, quando muito, três ou quatro meses a remover entulho, a desmatar jazidas e a lavar materiais? Que aconteceu ao tirocínio de anos e anos, em que um recém-licenciado ia adquirindo conhecimentos de escavação, de interpretação de cortes, de identificação de materiais, de traquejo, enfim? Que currículo terão para apresentar ao IGESPAR?
2009/6/5 Presidente APA <presidente@aparqueologos.org>
FORMAÇÃO ACADÉMICA E EXERCÍCIO PROFISSIONAL:
COMENTÁRIOS A UMA RESPOSTA
Face às profundas transformações que se têm produzido no contexto do
exercício da profissão de arqueólogo, e também na formação académica
na área científica de arqueologia, a APA tem procurado debater esta
questão no sentido de propor às entidades competentes a alteração do
enquadramento jurídico da profissão.
Nesse âmbito, dirigimos ao IGESPAR uma série de perguntas concretas,
para as quais obtivemos a resposta que agora divulgamos. A posição
que IGESPAR nos transmitiu sobre os critérios que adopta para análise
dos pedidos de autorização para trabalhos arqueológicos (PATA) –
embora espoletada a partir de um caso concreto – tem um alcance
significativo no exercício da profissão, pelo que nos parece
importante não só divulgá-la como comentá-la.
Este comentário, bem como toda a documentação de suporte do mesmo,
pode ser consultado em http://aparqueologos.org/ , destacando-se em
síntese os seguintes pontos:
- numa interpretação extensiva da Lei, decorrente do vazio
criado pela extinção da carreira de arqueólogo na administração
pública, o IGESPAR vem dizer que para dirigir trabalhos arqueológicos
a habilitação académica adequada é a conclusão do 2º ciclo de estudos
superiores na área específica de arqueologia;
- a definição de que o IGESPAR faz de “área específica de
arqueologia” é baseada na formação que inclua “trabalho arqueológico
de campo que confira prática profissional curricularmente comprovada
e avaliada”, tendo como critério de reconhecimento da habilitação
académica um número de 300 créditos de formação;
- esta contabilização revela-se completamente desadequada da
oferta disponível nos estabelecimentos de ensino superior público, já
que nenhum deles oferece – no conjunto dos 2 ciclos de formação –
mais do que 251 créditos em unidades curriculares (UC) específicas da
área de arqueologia, descendo esse número para um valor máximo de
201, se considerarmos apenas as UC com componente prática de formação;
- a APA considera que o principal problema na análise desta
questão radica no facto do RTA se encontrar desajustado aos actuais
contextos de formação académica e exercício profissional, conferindo
ao mecanismo de apreciação de PATA um peso excessivo, que confunde a
autorização para realização de trabalhos arqueológicos com a
certificação profissional;
- é para nós essencial rever o RTA, introduzindo, no que a este
tema diz respeito, diferentes níveis de responsabilização individual
e colectiva na execução dos trabalhos;
- o Estado deve reservar para si a faculdade de autorizar a
realização de trabalhos arqueológicos, baseada numa rigorosa análise
da adequação do plano de trabalhos à situação concreta na qual se
pretende intervir, e deverá ser nesse âmbito que se avalia a
experiência e formação (académica e profissional) do(s) arqueólogo(s)
que se propõem executar o plano de trabalhos em causa.
Mais uma vez, aproveitamos a ocasião para manifestar publicamente a
disponibilidade da APA em contribuir para que o processo de revisão
do RTA e de validação de competências profissionais dos arqueólogos
possa ser o mais rigoroso, transparente e eficaz possível.
A Direcção da APA
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