Uma Cultura para o Século
XXI
Sexta-feira, 3 de
Julho de 2009
Manifesto - Por Uma Cultura Para o
Século XXI
1. A atenção dispensada ao sector da
cultura pela agenda política e governamental tem-se em geral caracterizado,
desde o 25 de Abril de 1974, pelo menosprezo e pela inconsistência, apesar dos
imperativos claramente expressos na Constituição. Ao longo dos últimos 35 anos,
dificilmente se conseguirá identificar um programa de actuação planeado,
coerente e capaz de dignificar a cultura portuguesa de acordo com um projecto
claro e sustentado. A única tentativa de o levar a cabo de forma consequente
ocorreu entre os anos de 1995 e 2000, sendo ainda hoje a solitária excepção à
regra.
2. Foi também esse o período em que a
cultura portuguesa assumiu uma vincada marca de cosmopolitismo, simultaneamente
direccionada para o intercâmbio com os demais países de expressão lusófona e com
os nossos parceiros da União Europeia, vindo este último movimento a traduzir-se
na criação de um Plano Operacional da Cultura que então triplicou as habituais
dotações orçamentais da UE para esta área, sendo assumido como um eixo decisivo
de um programa de desenvolvimento equilibrado para o nosso país. O período de
vigência desse plano concluiu-se em 2006, e lamentavelmente o POC foi extinto.
Entretanto, as ambições do QREN que lhe sucedeu - 2007-2013 -pareceram
esgotar-se na miragem de um horizonte tecnológico.
3. Nos últimos 10 anos tem sido
sucessivamente prometido como horizonte realista para o financiamento do sector
da Cultura a meta de 1% do Orçamento Geral do Estado. No entanto, essa meta
nunca foi cumprida e está hoje mais distante e inatingível do que em finais do
século passado. Como inevitável consequência de tal estado de coisas, as
políticas e estratégias para a cultura desceram ao nível zero, apesar do
dinamismo e da qualidade dos agentes no terreno. Do programa de governo
publicado há quatro anos destacam-se excelentes propostas que nunca foram
cumpridas; da acção do governo nesta área destaca-se o episódico anúncio de
iniciativas nunca antes propostas. A decepção é geral.
4. Com efeito, o decréscimo de
investimento na área da Cultura, não gerando qualquer poupança significativa aos
cofres de um estado que se mostra pródigo e perdulário perante outros sectores
económicos, como exemplos recentes demonstram, aumenta significativamente os
custos da ignorância, da insociabilidade, do isolamento e do correspondente
atraso estrutural. Pois a Economia da Cultura raramente é discutida, ou sequer
pensada, nas suas mais óbvias e elementares consequências: quanto custa o
desprezo pelo património, a indefinição de uma política museológica, a
insegurança das carreiras artísticas, a indecisão de objectivos e prioridades, a
errância das políticas?
5. A Cultura não é decoração ou
ornamento. É produção de saber e de sentido, é formação da percepção e da
sensibilidade, é a condição e o resultado da Educação. É ao mesmo tempo um
penhor do passado, uma via para o futuro e um diálogo entre todos os tempos. É
factor de dinamização e de coesão social. É aquilo que estrutura os valores e a
identidade nacional ? uma identidade que é necessariamente forjada no contacto,
por vezes até no conflito, com outras identidades, e que tem portanto de ser
permanentemente reinventada. É esse o contínuo labor de quem trabalha nesta
área, onde a ideia de serviço público encontrará porventura a sua melhor
expressão.
6. Não cabe ao mercado suprir as funções
do Estado. Sem uma intervenção responsável do Estado, que seja simultaneamente
estrutural e estratégica, não pode existir uma política cultural digna desse
nome: a defesa do património, o apoio à criação e à internacionalização, a
garantia da diversidade, o direito à plena fruição cultural, não podem ser
deixados ao sabor das flutuações ou constrangimentos do mercado. E, sobretudo,
não podem confundir-se os produtos do mercado com a salvaguarda e dinamização de
uma cultura identitária e criativa. Sem uma estratégia para a Cultura, não há
uma estratégia para o país.
7. A Cultura é por isso demasiado
importante para que possa ser impunemente entregue à casuística e às decisões
tomadas ao sabor das circunstâncias. Uma política cultural digna desse nome tem
de ser orientada por princípios de racionalidade e por uma estratégia
independente das contingências eleitorais. Por conseguinte, as propostas
políticas para o sector da Cultura não deveriam ser gizadas com vista a uma mera
disputa eleitoral. Elas têm de ser orientadas por objectivos mais abrangentes,
públicos e visionários.
8. Uma política cultural digna desse nome
deve ? até por imperativo constitucional ? permear todas as restantes áreas de
acção do Governo. Não pode reduzir-se a intervenções casuísticas relacionadas
com o Turismo ou a Economia, e muito menos estar subordinada à lógica destas.
Exige, pelo contrário, uma articulação persistente e ágil, especialmente com o
sector da Educação, cujas batalhas nunca serão ganhas sem a participação plena
da Cultura em todos os graus de ensino e de aprendizagem.
9. Acresce que, especialmente em épocas
de crise, a Cultura pode ser uma área prioritária de investimento. Para tal, o
país dispõe de excepcionais recursos humanos, acrescidos todos os anos, e que
estão subaproveitados e desalentados. Dispõe também de uma rede de equipamentos
recentes que devem promover a descentralização, o multiculturalismo e a
internacionalização. O que falta é uma orientação sagaz, actual e determinada,
que corrija os retrocessos dos últimos anos e entenda a pertinência estratégica
desta área com uma visão prospectiva e capacitante. Caso contrário, todos os
magros factores de riqueza se transformarão quotidianamente em
desperdício.
10. No campo do cinema e do audiovisual,
por exemplo, o que sempre persistentemente se exigiu aos diferentes governos foi
a implementação de políticas activas no sector que, no campo da produção,
defendam a natureza e especificidade da criação portuguesa e, na distribuição,
os interesses dos espectadores portugueses, os quais devem ter acesso a uma
imagem diversificada do que é a produção internacional nesta área. No presente,
isso passa inevitavelmente pelo reforço da sustentação financeira do sector,
reequacionando o papel da televisão pública e do sector das telecomunicações,
também ele distribuidor cinematográfico. Uma articulação estratégica dos
sectores da cultura e da comunicação é, hoje, um imperativo
incontornável.
11. No campo do livro e da leitura, face
às profundas alterações do mercado, é urgente respeitar a periodicidade da
revisão das leis do Preço Fixo do Livro e da Cópia Privada, reavaliar a questão
do Porte Pago dos livros e da incidência fiscal sobre os mesmos, criar condições
para que a exportação de livros para os países de língua portuguesa se torne
praticável, internacionalizar as obras dos autores portugueses mantendo o
programa de apoio à tradução de autores portugueses para línguas estrangeiras e
reforçando a presença da DGLB e do Instituto Camões nas principais feiras do
livro internacionais com a indispensável articulação com os organismos do
Ministério da Economia, fortalecer o orçamento e a acção do Plano Nacional de
Leitura e da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, e apoiar decisivamente a
modernização e o alargamento da rede livreira tradicional e das livrarias
independentes, também, nestes últimos objectivos, em conjunção estreita com as
outras responsabilidades nestes sectores, nomeadamente o Ministério da Educação,
o Ministério dos Assuntos Parlamentares, as Autarquias, o Ministério das
Finanças e o Ministério da Economia.
12. No campo do património e da
museologia, o Governo multiplicou-se em intenções tão variadas como
discricionárias, de resto inexplicavelmente repartidas por várias tutelas, sem
inscrição nem no programa do governo nem numa política adequada ao sector,
assistindo-se, também aqui, a uma desorçamentação cada vez mais grave, que ilude
a noção de que os museus têm de continuar a ser lugares de elaboração de saber,
científico, museológico e educativo. Por outro lado, a reorganização de serviços
e competências gerou novos e graves problemas, como no caso da dissolução das
responsabilidades da extinta Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
entre o IGESPAR e as várias delegações regionais de cultura. O Estado está a
perder os contributos de uma geração de técnicos altamente capacitados e
demorará décadas a repor esta alienada capacidade de planeamento, gestão,
fiscalização e acompanhamento operacional. O meritório esforço de diversas
autarquias esbarra assim na incapacidade do Ministério da Cultura para articular
e superiormente representar as dinâmicas em presença, quer em relação à Rede
Portuguesa de Museus, quer à salvaguarda e valorização dos patrimónios
edificados e dos centros históricos. Nem os monumentos consagrados como
Património Mundial pela Unesco têm escapado a este generalizado demissionismo.
Agora, com a alteração proposta de um novo Regime Geral dos Bens do Domínio
Público, entregam-se aos privados desmesuradas responsabilidades na gestão da
salvaguarda de bens patrimoniais classificados, competências e garantias que
são, e deverão continuar a ser, estruturalmente do Estado.
13. O panorama não é mais animador no
campo das artes performativas, sistematicamente suborçamentadas e dependentes de
orientações erráticas e inconsequentes, mas agora também sujeitas a uma inédita
burocratização de processos ? em tudo contrária, de resto, à desburocratização
apregoada pelo governo para outros sectores. Continua ainda por definir um
estatuto das carreiras artíticas que concilie a precariedade e a mobilidade
inerentes a essas actividades com o reconhecimento de um estatuto profissional
adequado e um são relacionamento com a Segurança Social. Mas as artes precisam
de mais: carecem de uma intervenção estratégica que as conceba como lugares de
invenção e experimentação ? com todos os riscos que isso comporta ?, mas que o
mesmo tempo entenda o seu valor na formação, na educação, na coesão social. A
sua circulação e divulgação, particularmente nos demais países lusófonos, nunca
foi tão escassa, é urgente contrariar este estado de coisas.
14. E entretanto nunca se convocou, desde
2000, o Conselho Nacional de Cultura, instrumento indispensável de governação
competente e democrática, prevista na lei orgânica do ministério e onde estão
representados os consumidores, as fundações, e as autarquias, além de diversas e
eminentes personalidades da cultura portuguesa.
15. É assim urgente que seja considerado
um imperativo nacional, naturalmente trans-partidário, que a Cultura tenha no
seu Ministério o exemplo da sua indiscutível dignidade. É exigível que se
redefina e se dê finalmente conteúdo a uma verdadeira Política Cultural, que se
estabeleçam objectivos, clarifiquem funções, assumam responsabilidades e metas.
E que o discurso politico, em vez de as fomentar ? pela sua gaguez ou pelo seu
excesso retórico ? estanque o cíclico uso e abuso de ?novidades? e de ?anúncios?
que apenas desresponsabilizam em relação à necessária maturação dos meios de
produção, de criação, de circulação e de consumo culturais.
16. Desafiamos pois os partidos e as
organizações políticas a que, no período eleitoral que se avizinha e nos
programas que venham a apresentar a sufrágio, avancem propostas claras sobre
estes temas, que necessitam de ser pensados, não sob a pressão de circunstâncias
efémeras, mas com uma autêntica visão de futuro.
17. Os signatários, unidos por estes
princípios e preocupações, animados por um genuíno pluralismo e pela convicção
da crescente importância das actividades culturais no actual contexto de crise
financeira, económica e de valores, irão suscitar o debate público em torno
destes problemas, procurando alargar a reflexão acerca deles e tendo em vista a
refundação das políticas culturais do Estado Português.
SIGNATÁRIOS:
Adolfo Luxúria Canibal, cantor
Ágata Mandillo, actriz
Alberto Seixas Santos,
realizador
Alice Vieira,
escritora
Amílcar Dias,
compositor
Ana Maria Pereirinha, editora
Ana Tostões,
arquitecta
António
Escudeiro,
realizador
António
Pinho Vargas,
compositor
António de
Sousa Dias,
compositor
Antonino
Solmer,
actor e encenador
Ângela Pinto, actriz
Artur Fernandes, músico e
compositor
Beatriz
Batarda,
actriz
Carlos Alberto
Augusto,
compositor
Carlos da
Veiga Ferreira, editor
Carlos Pimenta, actor e
encenador
Catarina
Alves Costa,
realizadora
Catarina
Mourão,
realizadora
Catarina
Portas,
empresária
Cristina L.
Duarte,
socióloga
Eduardo
Pitta,
escritor
Elvis
Veiguinha, músico
Emanuel Frazão, gestor das artes
/compositor
Emília
Silvestre, actriz
Fernando Lopes,
realizador
Fernando
Mora Ramos, actor e
encenador
Fernando
Pêra,
gestor das artes
Fernando Pinto do
Amaral,
escritor
Fernanda
Fragateiro, artista
plástica
Francisco
Capelo
Gabriel Gomes, músico e
compositor
Gastão
Cruz,
escritor
Graça
Morais,
pintora
Hélder Teixeira
e Sousa,
gestor das artes
Inês
Pedrosa,
escritora e directora da Casa Fernando Pessoa
Isabel Soveral,
compositora
João
Botelho,
realizador
João
Brigola,
Universidade de Évora
João Canijo,
realizador
João
Fiadeiro,
coreógrafo
João
Henriques, técnico de voz e de
elocução
João
Madureira,
compositor
João Mário
Grilo,
realizador
João Paulo
Cotrim,
jornalista e escritor
João Reis, actor
João Rodrigues, editor
João Salaviza,
realizador
Joaquim
Benite,
encenador
Jorge
Custódio
Jorge Pereirinha Pires
Jorge Pinto, actor
Jorge Salavisa, director do Teatro
Municipal São Luiz
José
Aguiar,
presidente do ICOMOS
José Carlos Almeida de
Sousa,
compositor
José Carlos
Alvarez,
teatrólogo
José F.
Pinheiro,
realizador
José Luís
Ferreira,
compositor
José Miguel
Rodrigues, Fac. de
Arquitectura da Univ. do Porto
Luís Miguel Cintra, actor e
encenador
Luís
Raposo,
arqueólogo
Luís
Represas, cantor
Luís Soares Carneiro, Fac. de
Arquitectura da Univ. do Porto
Manuel Alberto Valente, editor
Manuel Rosa, editor
Margarida Cardoso,
realizadora
Maria João Mayer,
produtora
Maria João Seixas,
jornalista
Maria do Rosário Pedreira, editora
Mário Barradas,
encenador
Mário de Carvalho,
escritor
Miguel Azguime,
compositor
Né Barros,
coreógrafa
Nuno Júdice,
escritor
Nuno M. Cardoso,
encenador
Nuno Peixoto de Pinho,
compositor
Olga Roriz,
coreógrafa
Patrícia Reis,
escritora
Patrícia Sucena,
compositora
Paula de Castro Guimarães, gestora das artes
/compositora
Paulo Branco,
produtor
Paulo Ferreira-Lopes,
compositor
Paulo Ribeiro,
coreógrafo
Paulo Rocha,
realizador
Paulo Trancoso,
produtor
Pedro Abrunhosa, músico e
compositor
Pedro Amaral,
compositor
Pedro Caldeira Cabral, músico e
compositor
Pedro Carneiro, músico e
compositor
Pedro Rebelo,
compositor
Pedro Rocha,
compositor
Pedro Tamen, escritor e
tradutor
Perseu de Azevedo Mandillo,
realizador
Raquel Henriques da Silva,
historiadora
Ricardo Pais,
encenador
Rita Blanco, actriz
Rui Jorge Garcia Ramos, Fac. de
Arquitectura da Univ. do Porto
Rui Pereira, gestor das
artes
Rui Penha,
compositor
Sara Carvalho,
compositora
Serge Tréfaut,
realizador
Sérgio Godinho, cantor e
compositor
Suzana Borges, actriz
Teresa Gafeira, actriz
Teresa Villaverde,
realizadora
Tomás Henriques,
compositor
Vera Mantero,
coreógrafa
Violeta Barradas, economista e
gestora das artes
Walter Rossa, Fac. de
Arquitectura da Univ. de Coimbra