[Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry
Caros Colegas,
Ficam aqui algumas achegas a esta discussão, até porque, infelizmente, não poderei transmitir o meu ponto de vista em pessoa na discussão agendada para o próximo Sábado. Sem me centrar em nenhuma intervenção em particular, mas depois de as ler todas, cá vai.
A razão da existência de ordens profissionais deve ser bem salientada, porque elas não existem como instrumento de afirmação de grupos profissionais na sociedade ou por razões económicas, comerciais ou de outro qualquer tipo. As ordens profissionais existem porque são o instrumento mais adequado para exercer poderes de regulação de uma determinada actividade profissional, cujas características aconselham a que não seja a administração directa do Estado a fazê-lo mas, sim, a auto-regulação. É nestes casos concretos, e não em todos os outros, que devem existir ordens profissionais - revestindo-se, assim, de carácter excepcional, consoante o estipulado no n.º 2 do art. 2.º da Lei n.º 6/2008.
Ora, diz esse mesmo artigo que «a constituição de associações públicas profissionais é excepcional e visa a satisfação de necessidades específicas, podendo apenas ter lugar nos casos previstos no número anterior, quando a regulação da profissão envolver um interesse público de especial relevo que o Estado não deva prosseguir por si próprio». Aqui levanta-se logo uma primeira dúvida na minha cabeça... Será que o interesse público da Arqueologia e da sua regulação
não deve ser prosseguido pelo Estado? Parece-me que a leveza com que a sra. Ministra da Cultura quer despachar esta questão da Ordem é suspeita. Mais me parece que se pretende é desresponsabilizar o Governo de mais um "bico de obra"...
Neste sentido, é preciso lembrar que, ao contrário do que por vezes se diz, quando não há ordem profissional, isso não significa que exista um vazio jurídico, um vazio de fiscalização ou um vazio de regulação. Quando não há ordem profissional, é o Estado que tem o papel de regular, de fiscalizar e de acompanhar a prática profissional nessa área. Portanto, não há nenhum vazio jurídico, por contraposição à existência de ordens profissionais. Assim, muitos dos problemas sentidos têm precisamente a ver com esta falta de intervenção do Estado enquanto ente regulador que, pelo contrário, deveria exercê-la com todas as prerrogativas que lhe assistem para esse fim. No caso actual da Arqueologia, o Estado é o titular dos deveres de fiscalização deontológica e de punição das infracções em relação ao mau exercício profissional, embora se calhar não exerça essa competência.
Tentemos olhar para um panorama mais abrangente e pensemos num pequeno exercício: se só as ordens defendem a deontologia e a dignidade profissionais, então a solução para a organização do país teria de ser a multiplicidade de ordens em todas as profissões e subprofissões que existem nas várias áreas. Mas não é. Nem pode ser, até porque é absolutamente abusivo pensar que só as ordens defendem a deontologia e a dignidade profissionais. Existe uma tutela geral do Estado quanto à deontologia e a dignidade profissional só pode ser alcançada com condições... dignas (!) para exercer o trabalho: horários cumpridos, salários em dia, horas extraordinárias pagas, ordenados decentes, fim dos falsos recibos verdes e da precariedade que grassa, etc., etc.
Quanto a estes últimos aspectos (talvez os mais determinantes para quem quer exercer a profissão), é evidente que uma ordem profissional não resolve o problema laboral da classe. A situação laboral é grave, há claros e múltiplos motivos de contestação à situação em que vivem os arqueólogos, mas estes problemas laborais não se resolvem por via de uma ordem profissional. Resolvem-se no plano da afirmação dos direitos dos trabalhadores nesta matéria, ou seja, no plano sindical.
O problema será também que temos, dessa perspectiva, quem esteja praticamente em lados opostos da questão: por um lado os arqueólogos empregadores, das empresas de arqueologia, e, por outro lado, a "carne para canhão" que lida diariamente com condições de trabalho bastante penosas (e os recém-licenciados aqui levam pela medida grande). Por isso, não me espanta que alguns não vejam a questão do sindicato com bons olhos, não vão agora os arqueólogos querer receber mais, e a horas, e mais horas extra e, deus nos livre, reivindicar contratos colectivos ou acordos de empresa. Porque também estas empresas, por norma pequenas e médias, se confrontam com uma realidade de trabalho difícil e se sentem desapoiadas. No entanto, há que separar as águas porque esta é outra discussão: é a do ponto de vista do empresário e não propriamente do arqueólogo.
Em geral, subscrevo as opiniões do Gonçalo Leite Velho acerca deste assunto. Sem entrar pelo argumento corporativista, confesso que me desagrada sobremaneira que um grupo restrito de pessoas estipule quem pode aceder ou não à profissão. Parece-me que isso devia ser competência do Estado, efectivada pela homologação dos cursos de Ensino Superior de forma coerente e cuidada. A componente da experiência e trabalho prático também deveria ser incluída nos cursos e todos os alunos deveriam poder beneficiar desse aspecto, nomeadamente os que têm mais dificuldades económicas e os trabalhadores-estudantes. Não se pode é vedar o mercado de trabalho a quem não tem experiência. Isso é cortar o direito ao trabalho a quem não tem recursos económicos para fazer voluntariado até ao dia em que alguém considere que, agora sim, já tem experiência suficiente para começar a trabalhar na sua área de formação.
Discordo da observação que afirma serem a Ordem e o Sindicato complementares. Não creio que o sejam, apesar de existirem profissões em que ambos convivem (Médicos, Enfermeiros). Não são duas instituições antagónicas mas nem sempre têm o mesmo entendimento sobre o que é melhor para a classe que representam. Inclusivamente, posso até relembrar um caso precisamente da Ordem dos Enfermeiros há algum tempo atrás, que entrou em confronto directo com o Sindicato, quando este último convocou uma greve e a primeira apelou aos profissionais que não a cumprissem, extravasando claramente as suas competências e intervindo no campo sindical, o que lhe é vetado por lei. Casos são casos, é certo, mas é sintomático.
Quanto ao Bastonário... Sinceramente, pelos paupérrimos exemplos que temos tido de bastonários das Ordens mais conhecidas, pessoas completamente desacreditadas pelos parceiros sociais e até pelos profissionais que representam, temo que se esteja a fazer da robusta camponesa que "fede a homem" (como diria Sancho Pança) uma bela Dulcineia, a mais formosa das mulheres. Centrar a discussão nesta figura parece-me um erro - é apenas uma pessoa, não um santo milagreiro.
Até ao momento, das intervenções aqui produzidas, nenhuma me levou a pensar que uma Ordem era efectivamente necessária para os Arqueólogos. Pelo contrário, reforçaram ainda mais a minha inclinação para querer que exista um Sindicato, ideia que se tem fortalecido também com a minha curta experiência profissional e com os contactos que nesse âmbito tenho estabelecido com outros arqueólogos precários.
Para mim, não é certamente a Ordem que cria a vida (passe o trocadilho). Mas, na minha opinião, é o Sindicato que a defende.
Faço votos para que a discussão prossiga com toda a cordialidade e que seja muito profícua, tanto aqui como no MNA.
Saudações Arqueológicas,
Ana Mesquita