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Re: [Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry

To :   "Ana Mesquita" <isis.ankh@gmail.com>, "archport" <archport@ci.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry
From :   "Luiz Oosterbeek" <loost@ipt.pt>
Date :   Fri, 19 Mar 2010 07:43:33 -0000

A poucas horas de um debate onde não poderei estar, tal como muitos estudantes e alguns docentes do nosso programa de Mestrado, é com satisfação que vejo consolidarem-se duas tendências. Uma é a da necessidade de construir um sindicato que defenda os interesses dos assalariados em arqueologia, reforçando o que os une na diversidade de formações disciplinares (tendo em consideração a natureza interdisciplinar deste campo de conhecimento). A outra é a da clarificação, apesar de minoritária nas mensagens,sobre o que pode significar uma reacção corporativa baseada num difuso sentimento de insegurança e numa desorientada "fuga para a frente" (no espírito de que "mais vale fazer alguma coisa"). A proposta de uma Ordem, como o Gonçalo Velho, a Sara Cura ou a Ana Mesquita penso que explicaram bem, escamoteia as contradições de interesses entre "arqueólogos"e iliba o Estado das suas responsabilidades.
Acrescem, a meu ver, três aspectos.
Desde logo, não creio ser razoável e eficiente uma discussão em que a dimensão supra-nacional do mercado laboral é ignorada. Se se formasse uma Ordem, ela admitiria o exercício profissional de arqueólogos formados em Países Europeus sem cursos de Licenciatura em Arqueologia (a começar pela vizinha Espanha)? É que este são a esmagadora maioria na Europa. Se esses profissionais forem aceites, como rejeitar Licenciados em História, Geologia ou as diversas Ciências Naturais em Portugal? E se não forem, como evitar uma condenação em Bruxelas por violação proteccionista das normas do mercado Europeu de trabalho? Ou a solução será ad-hoc? E, neste caso, como evitar condenações em Tribunal, por violação do princípio da igualdade de direitos e deveres? Esta questão, por espantoso que possa parecer, não é nova, e discute-se em contextos como a Associação Europeia de  Arqueólogos.
Em segundo lugar, mas na verdade em primeira preocupação, estranho que no debate esteja quase ausente (sublinho o "quase") a dimensão dos interesses da sociedade, dos cidadãos e dos diferentes grupos sociais. Como a Ana Mesquita bem explica, o cerne da ordem jurídica das Ordens é o interesse público, não gerado a partir de considerações corporativas mas, bem pelo contrário, da consideração (polémica, é certo) de que em certas áreas de interesse social vital (para os cidadãos, não para os profissionais de um determinado sector enquanto tais), o Estado não será o melhor garante do bem colectivo. Seria assim no eixo da saúde (medicina, talvez enfermagem), na vertente da gestão de conflitos (advocacia) e na dimensão das infraestruturas essenciais à sobrevivência (engenharia, talvez arquitectura). Note-se que estes sectores têm corpos de profissionais que exercem competências razoavelmente bem delimitadas, estruturadas academicamente em percursos formativos razoavelmente idênticos nos diferentes Países (Europeus e não só), ainda que com variações, e respondem a "funções pressentidas como vitais pela maioria da população". Não vejo como inserir a arqueologia nesse quadro.
Em terceiro lugar, é bom compreender que quando se define uma fronteira, fica esclarecido quem não pode entrar, mas também onde deixa de poder ir quem entrou. Uma Ordem é, na verdade, um ghetto, e não beneficia, em geral, de grande simpatia social. Se, contra os vários argumentos que se têm aduzido contra a Ordem, esta for criada (talvez para corresponder a um simpático apelo do Governo!), ficaremos talvez mais esclarecidos sobre quem não pode fazer arqueologia. E se os profissionais dos Museus fizerem amanhã a sua Ordem, ou os gestores de bens culturais a sua, para onde irão trabalhar os arqueólogos que exercem essas funções? Dir-me-ão que num Museu haverá sempre lugar para arqueólogos, tal como para juristas, e que eu estou a ser demagógico ou no mínimo ignorante. Mas a verdade é que, para além dos acompanhamentos de arqueologia de contrato (que ao fim de uns anos se tornam difíceis de prosseguir) e dos estudos e relatórios (que não exigem, em termos demográficos, assim tantas pessoas...e Portugal já entá entre os 5 países Europeus com maior percentagem de arqueólogos per capita e por Km2), o que resta são exercícios profissionais que...não decorrem da profissão de arqueólogo, se esta tivesse de ser estritamente definida (o que seria imperioso em ternos jurídicos para a formação de uma Ordem). Restaria a definição da profissão de arqueólogo como profissão de desgaste rápido...mas acho difícil.
Creio que reconhecer as contradições na vida, e os interesses sociais contraditórios, é fundamental para contribuições inscritas na dinâmica da realidade, e é por isso que, reconhecendo a seriedade e boa intenção de muitos defensores da Ordem (como antes o fiz em relação a defensores de outras soluções institucionais que foram sendo extintas ou se extinguiram), creio que estão errados. E é por isso que creio que o Sindicato tem, pelo menos, a vantagem de se inscrever numa lógica de dinâmica de reconhecimento da natureza contraditória dos interesses que se movem na arqueologia e na sociedade. Não é isso que estudamos quando estudamos arqueologia?
Um abraço,
 
 
Luiz Oosterbeek
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Director do Gabinete de Relações Internacionais
do Instituto Politécnico de Tomar
Av. Dr. Cândido Madureira 13
P-2300 TOMAR
 
Secretary-General
UISPP - International Union of Prehistoric and Protohistoric Sciences
 
tel. (+351) 249346363; fax. (+351) 249346366
 
----- Original Message -----
Sent: Thursday, March 18, 2010 6:12 PM
Subject: [Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry

Caros Colegas,

Ficam aqui algumas achegas a esta discussão, até porque, infelizmente, não poderei transmitir o meu ponto de vista em pessoa na discussão agendada para o próximo Sábado. Sem me centrar em nenhuma intervenção em particular, mas depois de as ler todas, cá vai.

A razão da existência de ordens profissionais deve ser bem salientada, porque elas não existem como instrumento de afirmação de grupos profissionais na sociedade ou por razões económicas, comerciais ou de outro qualquer tipo. As ordens profissionais existem porque são o instrumento mais adequado para exercer poderes de regulação de uma determinada actividade profissional, cujas características aconselham a que não seja a administração directa do Estado a fazê-lo mas, sim, a auto-regulação. É nestes casos concretos, e não em todos os outros, que devem existir ordens profissionais - revestindo-se, assim, de carácter excepcional, consoante o estipulado no n.º 2 do art. 2.º da Lei n.º 6/2008.

Ora, diz esse mesmo artigo que «a constituição de associações públicas profissionais é excepcional e visa a satisfação de necessidades específicas, podendo apenas ter lugar nos casos previstos no número anterior, quando a regulação da profissão envolver um interesse público de especial relevo que o Estado não deva prosseguir por si próprio». Aqui levanta-se logo uma primeira dúvida na minha cabeça... Será que o interesse público da Arqueologia e da sua regulação não deve ser prosseguido pelo Estado? Parece-me que a leveza com que a sra. Ministra da Cultura quer despachar esta questão da Ordem é suspeita. Mais me parece que se pretende é desresponsabilizar o Governo de mais um "bico de obra"...

Neste sentido, é preciso lembrar que, ao contrário do que por vezes se diz, quando não há ordem profissional, isso não significa que exista um vazio jurídico, um vazio de fiscalização ou um vazio de regulação. Quando não há ordem profissional, é o Estado que tem o papel de regular, de fiscalizar e de acompanhar a prática profissional nessa área. Portanto, não há nenhum vazio jurídico, por contraposição à existência de ordens profissionais. Assim, muitos dos problemas sentidos têm precisamente a ver com esta falta de intervenção do Estado enquanto ente regulador que, pelo contrário, deveria exercê-la com todas as prerrogativas que lhe assistem para esse fim. No caso actual da Arqueologia, o Estado é o titular dos deveres de fiscalização deontológica e de punição das infracções em relação ao mau exercício profissional, embora se calhar não exerça essa competência.

Tentemos olhar para um panorama mais abrangente e pensemos num pequeno exercício: se só as ordens defendem a deontologia e a dignidade profissionais, então a solução para a organização do país teria de ser a multiplicidade de ordens em todas as profissões e subprofissões que existem nas várias áreas. Mas não é. Nem pode ser, até porque é absolutamente abusivo pensar que só as ordens defendem a deontologia e a dignidade profissionais. Existe uma tutela geral do Estado quanto à deontologia e a dignidade profissional só pode ser alcançada com condições... dignas (!) para exercer o trabalho: horários cumpridos, salários em dia, horas extraordinárias pagas, ordenados decentes, fim dos falsos recibos verdes e da precariedade que grassa, etc., etc.

Quanto a estes últimos aspectos (talvez os mais determinantes para quem quer exercer a profissão), é evidente que uma ordem profissional não resolve o problema laboral da classe. A situação laboral é grave, há claros e múltiplos motivos de contestação à situação em que vivem os arqueólogos, mas estes problemas laborais não se resolvem por via de uma ordem profissional. Resolvem-se no plano da afirmação dos direitos dos trabalhadores nesta matéria, ou seja, no plano sindical.

O problema será também que temos, dessa perspectiva, quem esteja praticamente em lados opostos da questão: por um lado os arqueólogos empregadores, das empresas de arqueologia, e, por outro lado, a "carne para canhão" que lida diariamente com condições de trabalho bastante penosas (e os recém-licenciados aqui levam pela medida grande). Por isso, não me espanta que alguns não vejam a questão do sindicato com bons olhos, não vão agora os arqueólogos querer receber mais, e a horas, e mais horas extra e, deus nos livre, reivindicar contratos colectivos ou acordos de empresa. Porque também estas empresas, por norma pequenas e médias, se confrontam com uma realidade de trabalho difícil e se sentem desapoiadas. No entanto, há que separar as águas porque esta é outra discussão: é a do ponto de vista do empresário e não propriamente do arqueólogo.

Em geral, subscrevo as opiniões do Gonçalo Leite Velho acerca deste assunto. Sem entrar pelo argumento corporativista, confesso que me desagrada sobremaneira que um grupo restrito de pessoas estipule quem pode aceder ou não à profissão. Parece-me que isso devia ser competência do Estado, efectivada pela homologação dos cursos de Ensino Superior de forma coerente e cuidada. A componente da experiência e trabalho prático também deveria ser incluída nos cursos e todos os alunos deveriam poder beneficiar desse aspecto, nomeadamente os que têm mais dificuldades económicas e os trabalhadores-estudantes. Não se pode é vedar o mercado de trabalho a quem não tem experiência. Isso é cortar o direito ao trabalho a quem não tem recursos económicos para fazer voluntariado até ao dia em que alguém considere que, agora sim, já tem experiência suficiente para começar a trabalhar na sua área de formação.

Discordo da observação que afirma serem a Ordem e o Sindicato complementares. Não creio que o sejam, apesar de existirem profissões em que ambos convivem (Médicos, Enfermeiros). Não são duas instituições antagónicas mas nem sempre têm o mesmo entendimento sobre o que é melhor para a classe que representam. Inclusivamente, posso até relembrar um caso precisamente da Ordem dos Enfermeiros há algum tempo atrás, que entrou em confronto directo com o Sindicato, quando este último convocou uma greve e a primeira apelou aos profissionais que não a cumprissem, extravasando claramente as suas competências e intervindo no campo sindical, o que lhe é vetado por lei. Casos são casos, é certo, mas é sintomático.

Quanto ao Bastonário... Sinceramente, pelos paupérrimos exemplos que temos tido de bastonários das Ordens mais conhecidas, pessoas completamente desacreditadas pelos parceiros sociais e até pelos profissionais que representam, temo que se esteja a fazer da robusta camponesa que "fede a homem" (como diria Sancho Pança) uma bela Dulcineia, a mais formosa das mulheres. Centrar a discussão nesta figura parece-me um erro - é apenas uma pessoa, não um santo milagreiro.

Até ao momento, das intervenções aqui produzidas, nenhuma me levou a pensar que uma Ordem era efectivamente necessária para os Arqueólogos. Pelo contrário, reforçaram ainda mais a minha inclinação para querer que exista um Sindicato, ideia que se tem fortalecido também com a minha curta experiência profissional e com os contactos que nesse âmbito tenho estabelecido com outros arqueólogos precários.

Para mim, não é certamente a Ordem que cria a vida (passe o trocadilho). Mas, na minha opinião, é o Sindicato que a defende.

Faço votos para que a discussão prossiga com toda a cordialidade e que seja muito profícua, tanto aqui como no MNA.

Saudações Arqueológicas,

Ana Mesquita


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