A poucas horas de um debate onde não poderei estar,
tal como muitos estudantes e alguns docentes do nosso programa de Mestrado, é
com satisfação que vejo consolidarem-se duas tendências. Uma é a da necessidade
de construir um sindicato que defenda os interesses dos assalariados em
arqueologia, reforçando o que os une na diversidade de formações disciplinares
(tendo em consideração a natureza interdisciplinar deste campo de conhecimento).
A outra é a da clarificação, apesar de minoritária nas mensagens,sobre o que
pode significar uma reacção corporativa baseada num difuso sentimento de
insegurança e numa desorientada "fuga para a frente" (no espírito de que "mais
vale fazer alguma coisa"). A proposta de uma Ordem, como o Gonçalo Velho, a Sara
Cura ou a Ana Mesquita penso que explicaram bem, escamoteia as contradições
de interesses entre "arqueólogos"e iliba o Estado das suas
responsabilidades.
Acrescem, a meu ver, três aspectos.
Desde logo, não creio ser razoável e
eficiente uma discussão em que a dimensão supra-nacional do mercado laboral
é ignorada. Se se formasse uma Ordem, ela admitiria o exercício profissional de
arqueólogos formados em Países Europeus sem cursos de Licenciatura em
Arqueologia (a começar pela vizinha Espanha)? É que este são a esmagadora
maioria na Europa. Se esses profissionais forem aceites, como rejeitar
Licenciados em História, Geologia ou as diversas Ciências Naturais em
Portugal? E se não forem, como evitar uma condenação em Bruxelas por violação
proteccionista das normas do mercado Europeu de trabalho? Ou a solução será
ad-hoc? E, neste caso, como evitar condenações em Tribunal, por violação do
princípio da igualdade de direitos e deveres? Esta questão, por espantoso
que possa parecer, não é nova, e discute-se em contextos como a Associação
Europeia de Arqueólogos.
Em segundo lugar, mas na verdade em primeira
preocupação, estranho que no debate esteja quase ausente (sublinho o "quase") a
dimensão dos interesses da sociedade, dos cidadãos e dos diferentes grupos
sociais. Como a Ana Mesquita bem explica, o cerne da ordem jurídica das Ordens é
o interesse público, não gerado a partir de considerações corporativas mas, bem
pelo contrário, da consideração (polémica, é certo) de que em certas áreas de
interesse social vital (para os cidadãos, não para os profissionais de um
determinado sector enquanto tais), o Estado não será o melhor garante do bem
colectivo. Seria assim no eixo da saúde (medicina, talvez enfermagem), na
vertente da gestão de conflitos (advocacia) e na dimensão das infraestruturas
essenciais à sobrevivência (engenharia, talvez arquitectura). Note-se que estes
sectores têm corpos de profissionais que exercem competências razoavelmente bem
delimitadas, estruturadas academicamente em percursos formativos razoavelmente
idênticos nos diferentes Países (Europeus e não só), ainda que com variações, e
respondem a "funções pressentidas como vitais pela maioria da
população". Não vejo como inserir a arqueologia nesse quadro.
Em terceiro lugar, é bom compreender que quando se
define uma fronteira, fica esclarecido quem não pode entrar, mas também onde
deixa de poder ir quem entrou. Uma Ordem é, na verdade, um ghetto, e não
beneficia, em geral, de grande simpatia social. Se, contra os vários argumentos
que se têm aduzido contra a Ordem, esta for criada (talvez para corresponder a
um simpático apelo do Governo!), ficaremos talvez mais esclarecidos sobre quem
não pode fazer arqueologia. E se os profissionais dos Museus fizerem amanhã a
sua Ordem, ou os gestores de bens culturais a sua, para onde irão trabalhar os
arqueólogos que exercem essas funções? Dir-me-ão que num Museu haverá sempre
lugar para arqueólogos, tal como para juristas, e que eu estou a ser demagógico
ou no mínimo ignorante. Mas a verdade é que, para além dos acompanhamentos de
arqueologia de contrato (que ao fim de uns anos se tornam difíceis de
prosseguir) e dos estudos e relatórios (que não exigem, em termos demográficos,
assim tantas pessoas...e Portugal já entá entre os 5 países Europeus com maior
percentagem de arqueólogos per capita e por Km2), o que resta são exercícios
profissionais que...não decorrem da profissão de arqueólogo, se esta tivesse de
ser estritamente definida (o que seria imperioso em ternos jurídicos para a
formação de uma Ordem). Restaria a definição da profissão de arqueólogo como
profissão de desgaste rápido...mas acho difícil.
Creio que reconhecer as contradições na vida, e os
interesses sociais contraditórios, é fundamental para contribuições inscritas na
dinâmica da realidade, e é por isso que, reconhecendo a seriedade e boa intenção
de muitos defensores da Ordem (como antes o fiz em relação a defensores de
outras soluções institucionais que foram sendo extintas ou se extinguiram),
creio que estão errados. E é por isso que creio que o Sindicato tem, pelo menos,
a vantagem de se inscrever numa lógica de dinâmica de reconhecimento da natureza
contraditória dos interesses que se movem na arqueologia e na sociedade. Não é
isso que estudamos quando estudamos arqueologia?
Um abraço,
Luiz
Oosterbeek --------------------------------------------------------------- Director
do Gabinete de Relações Internacionais do Instituto Politécnico de
Tomar Av. Dr. Cândido Madureira 13 P-2300 TOMAR
Secretary-General UISPP - International Union of Prehistoric and
Protohistoric Sciences
tel. (+351) 249346363; fax. (+351) 249346366
----- Original Message -----
Sent: Thursday, March 18, 2010 6:12
PM
Subject: [Archport] "A ordem não cria a
vida" - Antoine de Saint-Exupéry
Caros Colegas,
Ficam aqui algumas achegas a esta
discussão, até porque, infelizmente, não poderei transmitir o meu ponto de
vista em pessoa na discussão agendada para o próximo Sábado. Sem me centrar em
nenhuma intervenção em particular, mas depois de as ler todas, cá
vai.
A razão da existência de ordens profissionais deve ser bem
salientada, porque elas não existem como instrumento de afirmação de grupos
profissionais na sociedade ou por razões económicas, comerciais ou de outro
qualquer tipo. As ordens profissionais existem porque são o instrumento mais
adequado para exercer poderes de regulação de uma determinada actividade
profissional, cujas características aconselham a que não seja a administração
directa do Estado a fazê-lo mas, sim, a auto-regulação. É nestes casos
concretos, e não em todos os outros, que devem existir ordens profissionais -
revestindo-se, assim, de carácter excepcional, consoante o estipulado no n.º 2
do art. 2.º da Lei n.º 6/2008.
Ora, diz esse mesmo artigo que «a
constituição de associações públicas profissionais é excepcional e visa a
satisfação de necessidades específicas, podendo apenas ter lugar nos casos
previstos no número anterior, quando a regulação da profissão envolver um
interesse público de especial relevo que o Estado não deva prosseguir por si
próprio». Aqui levanta-se logo uma primeira dúvida na minha cabeça... Será que
o interesse público da Arqueologia e da sua regulação não deve ser
prosseguido pelo Estado? Parece-me que a leveza com que a sra. Ministra da
Cultura quer despachar esta questão da Ordem é suspeita. Mais me parece que se
pretende é desresponsabilizar o Governo de mais um "bico de
obra"...
Neste sentido, é preciso lembrar que, ao contrário do que por
vezes se diz, quando não há ordem profissional, isso não significa que exista
um vazio jurídico, um vazio de fiscalização ou um vazio de regulação. Quando
não há ordem profissional, é o Estado que tem o papel de regular, de
fiscalizar e de acompanhar a prática profissional nessa área. Portanto, não há
nenhum vazio jurídico, por contraposição à existência de ordens profissionais.
Assim, muitos dos problemas sentidos têm precisamente a ver com esta falta de
intervenção do Estado enquanto ente regulador que, pelo contrário, deveria
exercê-la com todas as prerrogativas que lhe assistem para esse fim. No caso
actual da Arqueologia, o Estado é o titular dos deveres de fiscalização
deontológica e de punição das infracções em relação ao mau exercício
profissional, embora se calhar não exerça essa competência.
Tentemos
olhar para um panorama mais abrangente e pensemos num pequeno exercício: se só
as ordens defendem a deontologia e a dignidade profissionais, então a solução
para a organização do país teria de ser a multiplicidade de ordens em todas as
profissões e subprofissões que existem nas várias áreas. Mas não é. Nem pode
ser, até porque é absolutamente abusivo pensar que só as ordens defendem a
deontologia e a dignidade profissionais. Existe uma tutela geral do Estado
quanto à deontologia e a dignidade profissional só pode ser alcançada com
condições... dignas (!) para exercer o trabalho: horários cumpridos, salários
em dia, horas extraordinárias pagas, ordenados decentes, fim dos falsos
recibos verdes e da precariedade que grassa, etc., etc.
Quanto a estes
últimos aspectos (talvez os mais determinantes para quem quer exercer a
profissão), é evidente que uma ordem profissional não resolve o problema
laboral da classe. A situação laboral é grave, há claros e múltiplos motivos
de contestação à situação em que vivem os arqueólogos, mas estes problemas
laborais não se resolvem por via de uma ordem profissional. Resolvem-se no
plano da afirmação dos direitos dos trabalhadores nesta matéria, ou seja, no
plano sindical.
O problema será também que temos, dessa perspectiva,
quem esteja praticamente em lados opostos da questão: por um lado os
arqueólogos empregadores, das empresas de arqueologia, e, por outro lado, a
"carne para canhão" que lida diariamente com condições de trabalho bastante
penosas (e os recém-licenciados aqui levam pela medida grande). Por isso, não
me espanta que alguns não vejam a questão do sindicato com bons olhos, não vão
agora os arqueólogos querer receber mais, e a horas, e mais horas extra e,
deus nos livre, reivindicar contratos colectivos ou acordos de empresa. Porque
também estas empresas, por norma pequenas e médias, se confrontam com uma
realidade de trabalho difícil e se sentem desapoiadas. No entanto, há que
separar as águas porque esta é outra discussão: é a do ponto de vista do
empresário e não propriamente do arqueólogo.
Em geral, subscrevo as
opiniões do Gonçalo Leite Velho acerca deste assunto. Sem entrar pelo
argumento corporativista, confesso que me desagrada sobremaneira que um grupo
restrito de pessoas estipule quem pode aceder ou não à profissão. Parece-me
que isso devia ser competência do Estado, efectivada pela homologação dos
cursos de Ensino Superior de forma coerente e cuidada. A componente da
experiência e trabalho prático também deveria ser incluída nos cursos e todos
os alunos deveriam poder beneficiar desse aspecto, nomeadamente os que têm
mais dificuldades económicas e os trabalhadores-estudantes. Não se pode é
vedar o mercado de trabalho a quem não tem experiência. Isso é cortar o
direito ao trabalho a quem não tem recursos económicos para fazer voluntariado
até ao dia em que alguém considere que, agora sim, já tem experiência
suficiente para começar a trabalhar na sua área de formação.
Discordo
da observação que afirma serem a Ordem e o Sindicato complementares. Não creio
que o sejam, apesar de existirem profissões em que ambos convivem (Médicos,
Enfermeiros). Não são duas instituições antagónicas mas nem sempre têm o mesmo
entendimento sobre o que é melhor para a classe que representam.
Inclusivamente, posso até relembrar um caso precisamente da Ordem dos
Enfermeiros há algum tempo atrás, que entrou em confronto directo com o
Sindicato, quando este último convocou uma greve e a primeira apelou aos
profissionais que não a cumprissem, extravasando claramente as suas
competências e intervindo no campo sindical, o que lhe é vetado por lei. Casos
são casos, é certo, mas é sintomático.
Quanto ao Bastonário...
Sinceramente, pelos paupérrimos exemplos que temos tido de bastonários das
Ordens mais conhecidas, pessoas completamente desacreditadas pelos parceiros
sociais e até pelos profissionais que representam, temo que se esteja a fazer
da robusta camponesa que "fede a homem" (como diria Sancho Pança) uma bela
Dulcineia, a mais formosa das mulheres. Centrar a discussão nesta figura
parece-me um erro - é apenas uma pessoa, não um santo milagreiro.
Até
ao momento, das intervenções aqui produzidas, nenhuma me levou a pensar que
uma Ordem era efectivamente necessária para os Arqueólogos. Pelo contrário,
reforçaram ainda mais a minha inclinação para querer que exista um Sindicato,
ideia que se tem fortalecido também com a minha curta experiência profissional
e com os contactos que nesse âmbito tenho estabelecido com outros arqueólogos
precários.
Para mim, não é certamente a Ordem que cria a vida (passe o
trocadilho). Mas, na minha opinião, é o Sindicato que a defende.
Faço
votos para que a discussão prossiga com toda a cordialidade e que seja muito
profícua, tanto aqui como no MNA.
Saudações Arqueológicas,
Ana
Mesquita
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