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Re: [Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry

To :   Luiz Oosterbeek <loost@ipt.pt>
Subject :   Re: [Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry
From :   Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>
Date :   Fri, 19 Mar 2010 08:33:07 +0000

Caro professor, esqueceu-se de uma terceira tendência - a dos que
defendem a criação de uma ordem e que, ao contrário de si, não se
importam que se crie um sindicato.

Já agora, talvez me possa responder a esta pergunta: porque é que,
havendo assim tantos defensores da criação de um sindicato, não se
procedeu ainda à sua efectivação?

E já agora, também, porque é que acha que uma Ordem - que ainda não
existe nem tem estatutos - iria "rejeitar Licenciados em História,
Geologia ou as diversas Ciências Naturais em Portugal" quando o
próprio RTA determina que "os pedidos de autorização para a realização
de trabalhos arqueológicos só podem ser apresentados por licenciados
cujo curriculum vitae esteja dentro dos critérios de acesso à carreira
de arqueólogo na função pública"?

Quanto ao caso das formações estrangeiras em Portugal, devolvo-lhe a
pergunta: e como é que é, quando um arqueólogo português quer
trabalhar como profissional, por exemplo, no Reino Unido? Ou em
França?






Em 19 de março de 2010 07:43, Luiz Oosterbeek <loost@ipt.pt> escreveu:
> A poucas horas de um debate onde não poderei estar, tal como muitos
> estudantes e alguns docentes do nosso programa de Mestrado, é com satisfação
> que vejo consolidarem-se duas tendências. Uma é a da necessidade de
> construir um sindicato que defenda os interesses dos assalariados em
> arqueologia, reforçando o que os une na diversidade de formações
> disciplinares (tendo em consideração a natureza interdisciplinar deste campo
> de conhecimento). A outra é a da clarificação, apesar de minoritária nas
> mensagens,sobre o que pode significar uma reacção corporativa baseada num
> difuso sentimento de insegurança e numa desorientada "fuga para a frente"
> (no espírito de que "mais vale fazer alguma coisa"). A proposta de uma
> Ordem, como o Gonçalo Velho, a Sara Cura ou a Ana Mesquita penso que
> explicaram bem, escamoteia as contradições de interesses entre
> "arqueólogos"e iliba o Estado das suas responsabilidades.
> Acrescem, a meu ver, três aspectos.
> Desde logo, não creio ser razoável e eficiente uma discussão em que a
> dimensão supra-nacional do mercado laboral é ignorada. Se se formasse uma
> Ordem, ela admitiria o exercício profissional de arqueólogos formados em
> Países Europeus sem cursos de Licenciatura em Arqueologia (a começar pela
> vizinha Espanha)? É que este são a esmagadora maioria na Europa. Se esses
> profissionais forem aceites, como rejeitar Licenciados em História, Geologia
> ou as diversas Ciências Naturais em Portugal? E se não forem, como evitar
> uma condenação em Bruxelas por violação proteccionista das normas do mercado
> Europeu de trabalho? Ou a solução será ad-hoc? E, neste caso, como evitar
> condenações em Tribunal, por violação do princípio da igualdade de direitos
> e deveres? Esta questão, por espantoso que possa parecer, não é nova, e
> discute-se em contextos como a Associação Europeia de  Arqueólogos.
> Em segundo lugar, mas na verdade em primeira preocupação, estranho que no
> debate esteja quase ausente (sublinho o "quase") a dimensão dos interesses
> da sociedade, dos cidadãos e dos diferentes grupos sociais. Como a Ana
> Mesquita bem explica, o cerne da ordem jurídica das Ordens é o interesse
> público, não gerado a partir de considerações corporativas mas, bem pelo
> contrário, da consideração (polémica, é certo) de que em certas áreas de
> interesse social vital (para os cidadãos, não para os profissionais de um
> determinado sector enquanto tais), o Estado não será o melhor garante do bem
> colectivo. Seria assim no eixo da saúde (medicina, talvez enfermagem), na
> vertente da gestão de conflitos (advocacia) e na dimensão das
> infraestruturas essenciais à sobrevivência (engenharia, talvez
> arquitectura). Note-se que estes sectores têm corpos de profissionais que
> exercem competências razoavelmente bem delimitadas, estruturadas
> academicamente em percursos formativos razoavelmente idênticos nos
> diferentes Países (Europeus e não só), ainda que com variações, e respondem
> a "funções pressentidas como vitais pela maioria da população". Não vejo
> como inserir a arqueologia nesse quadro.
> Em terceiro lugar, é bom compreender que quando se define uma fronteira,
> fica esclarecido quem não pode entrar, mas também onde deixa de poder ir
> quem entrou. Uma Ordem é, na verdade, um ghetto, e não beneficia, em geral,
> de grande simpatia social. Se, contra os vários argumentos que se têm
> aduzido contra a Ordem, esta for criada (talvez para corresponder a um
> simpático apelo do Governo!), ficaremos talvez mais esclarecidos sobre quem
> não pode fazer arqueologia. E se os profissionais dos Museus fizerem amanhã
> a sua Ordem, ou os gestores de bens culturais a sua, para onde irão
> trabalhar os arqueólogos que exercem essas funções? Dir-me-ão que num Museu
> haverá sempre lugar para arqueólogos, tal como para juristas, e que eu estou
> a ser demagógico ou no mínimo ignorante. Mas a verdade é que, para além dos
> acompanhamentos de arqueologia de contrato (que ao fim de uns anos se tornam
> difíceis de prosseguir) e dos estudos e relatórios (que não exigem, em
> termos demográficos, assim tantas pessoas...e Portugal já entá entre os 5
> países Europeus com maior percentagem de arqueólogos per capita e por Km2),
> o que resta são exercícios profissionais que...não decorrem da profissão de
> arqueólogo, se esta tivesse de ser estritamente definida (o que seria
> imperioso em ternos jurídicos para a formação de uma Ordem). Restaria a
> definição da profissão de arqueólogo como profissão de desgaste rápido...mas
> acho difícil.
> Creio que reconhecer as contradições na vida, e os interesses sociais
> contraditórios, é fundamental para contribuições inscritas na dinâmica da
> realidade, e é por isso que, reconhecendo a seriedade e boa intenção de
> muitos defensores da Ordem (como antes o fiz em relação a defensores de
> outras soluções institucionais que foram sendo extintas ou se extinguiram),
> creio que estão errados. E é por isso que creio que o Sindicato tem, pelo
> menos, a vantagem de se inscrever numa lógica de dinâmica de reconhecimento
> da natureza contraditória dos interesses que se movem na arqueologia e na
> sociedade. Não é isso que estudamos quando estudamos arqueologia?
> Um abraço,
>
>
> Luiz Oosterbeek
> ---------------------------------------------------------------
> Director do Gabinete de Relações Internacionais
> do Instituto Politécnico de Tomar
> Av. Dr. Cândido Madureira 13
> P-2300 TOMAR
>
> Secretary-General
> UISPP - International Union of Prehistoric and Protohistoric Sciences
>
> tel. (+351) 249346363; fax. (+351) 249346366
>
> www.ipt.pt
> www.ciarte.eu
> www.arqueomacao.tv
>
> ----- Original Message -----
> From: Ana Mesquita
> To: archport
> Sent: Thursday, March 18, 2010 6:12 PM
> Subject: [Archport] "A ordem não cria a vida" - Antoine de Saint-Exupéry
> Caros Colegas,
>
> Ficam aqui algumas achegas a esta discussão, até porque, infelizmente, não
> poderei transmitir o meu ponto de vista em pessoa na discussão agendada para
> o próximo Sábado. Sem me centrar em nenhuma intervenção em particular, mas
> depois de as ler todas, cá vai.
>
> A razão da existência de ordens profissionais deve ser bem salientada,
> porque elas não existem como instrumento de afirmação de grupos
> profissionais na sociedade ou por razões económicas, comerciais ou de outro
> qualquer tipo. As ordens profissionais existem porque são o instrumento mais
> adequado para exercer poderes de regulação de uma determinada actividade
> profissional, cujas características aconselham a que não seja a
> administração directa do Estado a fazê-lo mas, sim, a auto-regulação. É
> nestes casos concretos, e não em todos os outros, que devem existir ordens
> profissionais - revestindo-se, assim, de carácter excepcional, consoante o
> estipulado no n.º 2 do art. 2.º da Lei n.º 6/2008.
>
> Ora, diz esse mesmo artigo que «a constituição de associações públicas
> profissionais é excepcional e visa a satisfação de necessidades específicas,
> podendo apenas ter lugar nos casos previstos no número anterior, quando a
> regulação da profissão envolver um interesse público de especial relevo que
> o Estado não deva prosseguir por si próprio». Aqui levanta-se logo uma
> primeira dúvida na minha cabeça... Será que o interesse público da
> Arqueologia e da sua regulação não deve ser prosseguido pelo Estado?
> Parece-me que a leveza com que a sra. Ministra da Cultura quer despachar
> esta questão da Ordem é suspeita. Mais me parece que se pretende é
> desresponsabilizar o Governo de mais um "bico de obra"...
>
> Neste sentido, é preciso lembrar que, ao contrário do que por vezes se diz,
> quando não há ordem profissional, isso não significa que exista um vazio
> jurídico, um vazio de fiscalização ou um vazio de regulação. Quando não há
> ordem profissional, é o Estado que tem o papel de regular, de fiscalizar e
> de acompanhar a prática profissional nessa área. Portanto, não há nenhum
> vazio jurídico, por contraposição à existência de ordens profissionais.
> Assim, muitos dos problemas sentidos têm precisamente a ver com esta falta
> de intervenção do Estado enquanto ente regulador que, pelo contrário,
> deveria exercê-la com todas as prerrogativas que lhe assistem para esse fim.
> No caso actual da Arqueologia, o Estado é o titular dos deveres de
> fiscalização deontológica e de punição das infracções em relação ao mau
> exercício profissional, embora se calhar não exerça essa competência.
>
> Tentemos olhar para um panorama mais abrangente e pensemos num pequeno
> exercício: se só as ordens defendem a deontologia e a dignidade
> profissionais, então a solução para a organização do país teria de ser a
> multiplicidade de ordens em todas as profissões e subprofissões que existem
> nas várias áreas. Mas não é. Nem pode ser, até porque é absolutamente
> abusivo pensar que só as ordens defendem a deontologia e a dignidade
> profissionais. Existe uma tutela geral do Estado quanto à deontologia e a
> dignidade profissional só pode ser alcançada com condições... dignas (!)
> para exercer o trabalho: horários cumpridos, salários em dia, horas
> extraordinárias pagas, ordenados decentes, fim dos falsos recibos verdes e
> da precariedade que grassa, etc., etc.
>
> Quanto a estes últimos aspectos (talvez os mais determinantes para quem quer
> exercer a profissão), é evidente que uma ordem profissional não resolve o
> problema laboral da classe. A situação laboral é grave, há claros e
> múltiplos motivos de contestação à situação em que vivem os arqueólogos, mas
> estes problemas laborais não se resolvem por via de uma ordem profissional.
> Resolvem-se no plano da afirmação dos direitos dos trabalhadores nesta
> matéria, ou seja, no plano sindical.
>
> O problema será também que temos, dessa perspectiva, quem esteja
> praticamente em lados opostos da questão: por um lado os arqueólogos
> empregadores, das empresas de arqueologia, e, por outro lado, a "carne para
> canhão" que lida diariamente com condições de trabalho bastante penosas (e
> os recém-licenciados aqui levam pela medida grande). Por isso, não me
> espanta que alguns não vejam a questão do sindicato com bons olhos, não vão
> agora os arqueólogos querer receber mais, e a horas, e mais horas extra e,
> deus nos livre, reivindicar contratos colectivos ou acordos de empresa.
> Porque também estas empresas, por norma pequenas e médias, se confrontam com
> uma realidade de trabalho difícil e se sentem desapoiadas. No entanto, há
> que separar as águas porque esta é outra discussão: é a do ponto de vista do
> empresário e não propriamente do arqueólogo.
>
> Em geral, subscrevo as opiniões do Gonçalo Leite Velho acerca deste assunto.
> Sem entrar pelo argumento corporativista, confesso que me desagrada
> sobremaneira que um grupo restrito de pessoas estipule quem pode aceder ou
> não à profissão. Parece-me que isso devia ser competência do Estado,
> efectivada pela homologação dos cursos de Ensino Superior de forma coerente
> e cuidada. A componente da experiência e trabalho prático também deveria ser
> incluída nos cursos e todos os alunos deveriam poder beneficiar desse
> aspecto, nomeadamente os que têm mais dificuldades económicas e os
> trabalhadores-estudantes. Não se pode é vedar o mercado de trabalho a quem
> não tem experiência. Isso é cortar o direito ao trabalho a quem não tem
> recursos económicos para fazer voluntariado até ao dia em que alguém
> considere que, agora sim, já tem experiência suficiente para começar a
> trabalhar na sua área de formação.
>
> Discordo da observação que afirma serem a Ordem e o Sindicato
> complementares. Não creio que o sejam, apesar de existirem profissões em que
> ambos convivem (Médicos, Enfermeiros). Não são duas instituições antagónicas
> mas nem sempre têm o mesmo entendimento sobre o que é melhor para a classe
> que representam. Inclusivamente, posso até relembrar um caso precisamente da
> Ordem dos Enfermeiros há algum tempo atrás, que entrou em confronto directo
> com o Sindicato, quando este último convocou uma greve e a primeira apelou
> aos profissionais que não a cumprissem, extravasando claramente as suas
> competências e intervindo no campo sindical, o que lhe é vetado por lei.
> Casos são casos, é certo, mas é sintomático.
>
> Quanto ao Bastonário... Sinceramente, pelos paupérrimos exemplos que temos
> tido de bastonários das Ordens mais conhecidas, pessoas completamente
> desacreditadas pelos parceiros sociais e até pelos profissionais que
> representam, temo que se esteja a fazer da robusta camponesa que "fede a
> homem" (como diria Sancho Pança) uma bela Dulcineia, a mais formosa das
> mulheres. Centrar a discussão nesta figura parece-me um erro - é apenas uma
> pessoa, não um santo milagreiro.
>
> Até ao momento, das intervenções aqui produzidas, nenhuma me levou a pensar
> que uma Ordem era efectivamente necessária para os Arqueólogos. Pelo
> contrário, reforçaram ainda mais a minha inclinação para querer que exista
> um Sindicato, ideia que se tem fortalecido também com a minha curta
> experiência profissional e com os contactos que nesse âmbito tenho
> estabelecido com outros arqueólogos precários.
>
> Para mim, não é certamente a Ordem que cria a vida (passe o trocadilho).
> Mas, na minha opinião, é o Sindicato que a defende.
>
> Faço votos para que a discussão prossiga com toda a cordialidade e que seja
> muito profícua, tanto aqui como no MNA.
>
> Saudações Arqueológicas,
>
> Ana Mesquita
>
> ________________________________
>
> _______________________________________________
> Archport mailing list
> Archport@ci.uc.pt
> http://ml.ci.uc.pt/mailman/listinfo/archport
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